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- JANUS 2007 -



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Sua Santidade o XIV Dalai Lama

Paulo Borges *

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Tenzin Gyatso, Sua Santidade o XIV Dalai Lama do Tibete, nasceu a 6 de Julho de 1935, numa pequena aldeia tibetana, filho de simples agricultores. Aos dois anos de idade, sendo reconhecido como o renascimento do anterior Dalai Lama e incarnação de Chenrezig, o bodhisattva da Compaixão, protector do Tibete, partiu com a família para a capital, Lhasa (“Terra dos Deuses”).

No Inverno de 1940 é nomeado líder espiritual dos tibetanos, tomando votos como noviço no Templo de Jokhang, onde lhe foi cortado o cabelo e vestido o manto monástico. A sua aprendizagem formal foi inteiramente espiritual e religiosa. Estudou profundamente a filosofia e a psicologia budistas, particularmente as obras da escola Gelugpa , à qual os Dalai Lamas pertencem. De acordo com o ensino tradicional, aprendeu de cor tratados de Sânscrito, Dialéctica, Lógica, Filosofia Religiosa e Metafísica, tendo obtido o título de Geshe Lhampara (Doutor em Budismo). Pela importância, destacam-se os estudos de Prajna Paramita (Perfeita Sabedoria Transcendente), Madhyamika (Via do Meio), Vinaya (Disciplina Monástica), Abhidharma (Metafísica) e Pramana (Lógica e Dialéctica). Firme defensor do pluralismo religioso, estudou também outras tradições budistas, bem como as grandes religiões mundiais. A formação e o estudo monásticos foram acompanhados por longas horas de meditação, orações e recitação de textos, por vezes em sessões na presença de mais de vinte mil monges.

O XIV Dalai Lama teve os primeiros contactos com a cultura ocidental em Lhasa, guiando os três carros importados pelo seu antecessor e instalando um projector de cinema na sua residência oficial, o Potala, onde via filmes vários, incluindo noticiários e aventuras de Tarzan, e conversava longamente com Heinrich Harrer (que escreveu as memórias desta experiência no livro Sete Anos no Tibete , depois adaptado ao cinema).

 

Esmagamento materialista e fulgor a Ocidente

Em 1950 a China invade o Tibete. Durante nove anos os tibetanos lutam pacificamente para manterem a sua identidade, sem resultado. Em 1959, após muitas insistências e vendo a própria sobrevivência do budismo e da cultura tibetana em perigo se continuasse no Tibete, o Dalai Lama exila-se refugiando--se em Dharamsala, no Norte da Índia. Aqui se encontra com Nehru, declarando: “Sou um adepto fervoroso da doutrina da não-violência, que foi ensinada pela primeira vez por Buda, sendo depois praticada pelo santo líder Gandhi”. Manteve-se firme nesta posição, exigindo mesmo que a resistência tibetana pusesse fim às actividades de guerrilha. Desde então, como expressa Tulku Pema Wangyal Rinpoche, o principal obreiro da sua vinda a Portugal, “o Dalai Lama torna-se no símbolo da luta dramática pela sobrevivência do Tibete enquanto nação.”

Em 1967 Sua Santidade visita pela primeira vez um país estrangeiro além da Índia, deslocando-se à Tailândia e ao Japão. Percorre depois todo o mundo, encontrando-se com a maioria dos líderes religiosos e temporais dos países visitados, incluindo S.S. o Papa Paulo VI e S.S. o Papa João Paulo II. Em 1989, com a atribuição do Prémio Nobel da Paz, o Ocidente reconhece formalmente a sua acção não violenta para preservar a cultura tibetana e a paz no mundo. Marcando esta ascensão a figura mundial, surge também Kundun , de Martin Scorsese (1997), que narra os episódios fundamentais da sua vida, bem como o genocídio cultural e racial do povo tibetano. O filme mostra o crepúsculo de um mundo, num duplo sentido: por um lado, o declínio de um dos últimos baluartes de uma vida social predominantemente orientada para a espiritualidade, esmagado pela civilização materialista chinesa, importada das ideologias ocidentais; por outro, numa notável ironia do jogo da história, o exílio de Sua Santidade, o êxodo massivo do povo tibetano e dos seus mestres espirituais acaba por levar ao despontar da sua milenar sabedoria no Ocidente, como no filme prediz um oráculo, contribuindo largamente para aquilo que Arnold Toynbee designou como “o acontecimento mais significativo do século XX” e que Mircea Eliade (1987) comparou com o efeito do “êxodo dos sábios bizantinos [...] após a queda de Constantinopla”. Kundun , tal como O Pequeno Buda , de Bertolucci (1993), entre outros documentos fílmicos, inscreve-se aliás no efeito “bola de neve” da presença do budismo na vida espiritual e cultural dos ocidentais dos séculos XX e XXI.

 

Factor de coesão nacional

Sua Santidade o XIV Dalai Lama, líder espiritual e temporal do Tibete, é um factor de manutenção da unidade nacional e da identidade cultural tibetana, mantendo coesos, para além das fronteiras de uma nação ocupada, tanto os que permanecem no Tibete como os exilados e seus descendentes. A sua actividade tem múltiplas vertentes. Uma é precisamente a preservação da cultura e identidade tibetanas, tendo organizado mais de meia centena de colónias na Índia e no Nepal e fundado institutos para preservar as artes, a história e a medicina tradicional. Outra é a transmissão do Dharma do Buda de forma não sectária, também para um crescente número de ocidentais, quer através de ensinamentos públicos, perante plateias de muitos milhares de pessoas – quase cem mil em Nova Iorque, em 2003 –, quer mediante grandes best-sellers mundiais, como Um Guia para a Vida e Ética para o Novo Milénio , que o mostram como referência ética e espiritual de dimensão planetária, para budistas e não budistas, apesar de recusar o proselitismo. Deve-se isso ao terceiro vector da sua actividade, promovendo, fora do estrito contexto budista, uma ética laica, fundada em valores humanos fundamentais como a paz, a compaixão e a responsabilidade universal. Acresce a isso a defesa e prática do diálogo inter-religioso, participando em encontros inéditos de dirigentes religiosos e comentando numa perspectiva budista os ensinamentos evangélicos, como em A Bondade do Coração . Esta projecção do XIV Dalai Lama para além dos meios estritamente budistas deve-se também à quarta vertente da sua actividade, a privilegiar o diálogo entre a espiritualidade budista e a ciência ocidental. Além de dar conferências em numerosas universidades europeias e norte--americanas, funda em 1987, com o neurocientista Francisco J. Varela e o empresário Adam Engle, o Mind and Life Institute , que desde então organiza encontros anuais entre Sua Santidade e alguns dos mais eminentes cientistas europeus e norte-americanos, entre os quais António Damásio, mostrando a notável convergência entre a ciência contemplativa budista tibetana e as ciências cognitivas ocidentais. Estes encontros conduziram ainda às recentíssimas experiências científicas sobre os efeitos da meditação no funcionamento cerebral, realizadas pelo Prof. Richard Davidson e sua equipa na universidade norte-americana de Wisconsin-Madison. Por influência directa do líder tibetano, muitos destacados cientistas ocidentais são hoje estudiosos, quando não praticantes, da espiritualidade e filosofia veiculadas pela tradição tibetana.

Por todos estes motivos Sua Santidade, que se descreve como “um simples monge budista”, é uma das personalidades mais marcantes, a nível planetário, da segunda metade do século XX, projectando-se ainda, no início do terceiro milénio, como uma das referências fundamentais para milhões de seres humanos, budistas ou não. É este o refluxo de um movimento de encontro de culturas de que os portugueses foram pioneiros, com a viagem do Padre António de Andrade e seus companheiros, os primeiros ocidentais a atravessar os Himalaias e a chegar ao Tibete, em 1624.

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* Paulo Borges

Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Autor de múltiplos livros e artigos em revistas científicas e obras colectivas, publicados em Portugal, Espanha, França, Itália e Brasil. Presidente da União Budista Portuguesa e da Associação Agostinho da Silva, Vice-Presidente da Casa da Cultura do Tibete. Preside à Comissão das Comemorações do Centenário do Nascimento de Agostinho da Silva. Integrou a Comissão Coordenadora da Primeira Visita de S.S. o Dalai-Lama a Portugal e integra a Comissão Dalai Lama Lisboa 2007.

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