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Onde estou: | Janus 2008> Índice de artigos > Aspectos da conjuntura internacional > [ Um balanço da guerra do Iraque ] | |||
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Uma estratégia errada Na iminência de invasão, Sadam decidira resistir ao ocupante com uma estratégia assimétrica que o desgastasse material e moralmente, reduzindo as suas capacidades e erodindo a sua vontade de combater. Subtrairia ao inimigo o apoio da população, no Iraque e nos EUA. A insegurança criada pela resistência sunita prolongar-se-ia, desgastando o ocupante. Os americanos perderiam a vontade de continuar a guerra, degradando-se o seu apoio à liderança política. Os chefes militares dos EUA, particularmente o CEME, general Shinseki, defenderam a necessidade de haver mais de 300.000 efectivos no teatro de operações (TO), na fase pós-conquista. Mas os neoconservadores, intoxicados por exilados iraquianos, agentes do Irão, confundiam a realidade com os seus desejos. Previam uma recepção apoteótica e uma vitória que transformaria o Médio Oriente. A partir do Iraque, seriam controlados os preços do petróleo, intimidados os países circundantes a eliminarem o terrorismo islamita, a região inundar-se-ia de democracias, e acabaria o conflito israelo-palestiniano como convinha a Israel, pois “o caminho de Jerusalém passava por Bagdad”. Bastariam 50.000 militares para consolidar a conquista. Shinseki foi demitido. Uma vez em Bagdad, somaram-se os erros: desmantelamento do exército iraquiano; saneamento da administração (dos baasistas); adopção de uma estratégia de operações de combate agressivas. Não elegeram como objectivo a conquista “dos corações e das mentes” da população. Esqueceram-se de que uma contra-insurreição, apesar de exigir segurança, só tem solução política. Os xiitas do Iraque e o Irão consolidam posições Jihadistas, aliados, pelo menos tácitos, da guerrilha movida por militares e baasistas “despedidos”, originaram uma insegurança tal, que as manobras político-ideológica e económico-social fraquejaram. A detenção e posterior julgamento dos líderes do regime deposto, também Sadam, não alteraram a situação. A insuficiência de forças terrestres dos EUA inviabilizou os reforços indispensáveis. Nem o recurso massivo a mercenários melhorou a segurança. O abandono do unilateralismo inicial e o pedido de apoios à ONU e a organizações aliadas também não surtiram efeito, devido às cisões políticas geradas pela invasão. A destruição de um templo xiita de Samarra, em Fevereiro de 2006, pelos jihadistas, disparou uma luta sectária, que se tornou na principal ameaça à estabilização do país. Despertando ódios e levantando muros, físicos e psicológicos, nas comunidades outrora multiculturais, o que fragmentou o país em enclaves, e provocou milhões de refugiados, centenas de milhares de deslocados no interior, cujo crescimento não pára, e dezenas de milhares de mortos. As eleições para a Constituição e as legislativas, exigidas sem delongas por Sistani, principal ayatollah xiita do Iraque, legitimaram o poder dos xiitas (e curdos). Com o auxílio do Irão, teceram-se redes de coacção dificilmente reversíveis, o que xiitizou as instituições políticas e de segurança nacionais. Os curdos ficaram quase independentes. Os norte-americanos só viram precisão dos sunitas, depois da agenda xiita, “ditada” pelo Irão, ser introduzida no essencial: um Estado “federado” no Sul xiita, rico em petróleo, como o Curdistão a Norte, empurrando os sunitas para uma região sem recursos; forças de segurança nacionais contaminadas por milicianos xiitas, das milícias Badr e Mahdi, e curdos, peshmergas. O governo, controlado apenas em parte pelos EUA, segue orientações americanas só em caso de necessidade, isto é, se recear acções de força ou a perda de apoios indispensáveis. O que atrasa e inviabiliza medidas exigidas pelos sunitas para participar no processo político. A duração da guerra; as poucas probabilidades de vitória; as baixas em combate; os gastos astronómicos; a repercussão dos erros cometidos, bem como os casos de tortura, sevícias e desrespeito da Convenção de Genebra; a situação calamitosa no Iraque, de generalizada insegurança e redução de bem-estar; tudo contribuiu para desgastar a Administração americana, pouco depois da reeleição de Bush, cuja popularidade se afundou. As eleições americanas de 2006, tendo o Iraque como tema-chave, deram a maioria do Congresso aos democratas, que exigem o regresso das forças. A encomenda do relatório Baker-Hamilton é o primeiro sinal de que a Administração admite a possibilidade de desistir dos objectivos iniciais, não atingindo a vitória. Elaborado por um grupo bipartidário, apresentaria uma solução para a situação difícil no Iraque. Na campanha eleitoral para as presidenciais, antecipada, também polarizada no Iraque, os democratas pedem a retirada imediata, e os republicanos procuram distanciar-se de Bush, aproximando-se das posições democratas aqueles que anseiam a reeleição para o Congresso. Vindo a lume, o relatório Baker reconhece a derrota e recomenda: preparação e treino do exército iraquiano, para assumir a segurança; uma retirada programada das brigadas de combate, embora admitindo reforços temporários; e negociações com os vizinhos, incluindo Irão e Síria. Rumsfeld, símbolo da guerra, demite-se. Bush não segue as propostas. Designando Petraeus como general comandante, determina o reforço de 21.000 efectivos (ultrapassarão 30.000) para melhorar a segurança das regiões de Bagdad e Anbar, concretizado entre Fevereiro e Junho de 2007, teimando na busca da vitória. Só agora (4 anos depois), chegaria a estratégia operacional aconselhada nas doutrinas de contra-insurreição Mas a campanha eleitoral para as presidenciais não vai dar o tempo alargado de que ela necessita, a escassez de forças terrestres não lhe permite a eficiência desejada, e o seu êxito depende da concertação política que o governo de Maliki terá de promover. Reconhecendo-o, Petraeus avisou publicamente que a guerra não tem solução militar e só pode ser resolvida politicamente. A distância, os acontecimentos posteriores indiciam que Bush, perante o relatório, viu necessidade de aplicar as suas propostas. Mas decidiu aliviar a pressão no terreno, para dar a imagem de actuar com iniciativa, decidir em, pelo menos, aparente posição de força e ganhar tempo para passar o ónus da retirada ao seu substituto. Preparando a retirada Só seis meses depois do reforço, Bush reconhece publicamente as dificuldades em que se encontra e procura apoios. Aceita uma conferência com os vizinhos do Iraque, incluindo o Irão, seguida de sucessivas reuniões EUA/Irão, onde terão sido colocadas as posições de cada um. Fazem-se reuniões com a Síria, a Turquia e o Irão, além de outros países, visando acabar com o apoio da Síria às redes de resistentes e com a permeabilidade da sua fronteira com o Iraque, bem como com a tensão entre a Turquia e os curdos iraquianos. Enfim, os EUA conseguem a ampliação do papel da ONU no país, para mediar actores internos e externos, particularmente aqueles que os americanos têm dificuldade de contactar. A estratégia adoptada tem pontos fracos. Apesar dos prazos definidos para o governo iraquiano tomar as medidas de conciliação exigidas pelos sunitas (especialmente, partilha do petróleo e amnistia dos baasistas), há sinais de que a maioria (xiita) do parlamento e os curdos lhes levantarão obstáculos. Aprofundam-se a quase exaustão do pessoal e as insuficiências no equipamento das forças americanas: Mullen (CEMGFA) diz que “ocorrerá a rotura do exército se o reforço permanecer para lá de Abril de 2008”, o que obrigaria as comissões de 12 meses, que já vão em 15, a aumentarem para 18. Petraeus conforma-se: recomenda a retirada gradual do reforço, cerca de ¼ dos efectivos, a partir de Setembro de 2007, voltando os efectivos ao nível “normal”, no Verão de 2008; e alerta para uma retirada prematura de mais forças. Os EUA quase não têm forças para usar noutras crises, existentes ou potenciais, o que deixa os actores que os contestam, particularmente a Rússia, com mais liberdade de acção para agir: Fallon (comandante do Central Command , que integra o Iraque), Casey (CEME) e Pace (anterior CEMGFA) recomendam uma redução substancial de forças, até ao fim de 2008, e Gates (secretário da Defesa) admite que os efectivos desçam para 100.000 até esta data. Finalmente, a campanha eleitoral “exigirá” que Bush faça regressar bastantes GIs do Iraque, para aumentarem as hipóteses dos candidatos republicanos à presidência e ao Congresso. O Irão depende dos EUA, embora os considere derrotados e tenda a agir neste pressuposto, tal como os EUA dependem do Irão – ambos têm interesse em derrotar a Al Qaeda, evitar a generalização do conflito à região e estabilizar o Iraque. Nenhum deles tem condições de o conseguir, impondo ao outro a sua vontade. Não podendo manter forças bastantes no Iraque, durante bastante tempo, os EUA, provavelmente, tentarão reduzir a dimensão da derrota, mudando os objectivos da invasão, o que implica um entendimento com o Irão, pelo menos tácito. Passariam apenas a defender as fronteiras do país, combater a Al Qaeda, e concentrar-se na preparação do exército iraquiano. Na avaliação da situação de Setembro último, a nível estratégico (sistema de informações americano, Departamento de Estado e Pentágono) e nível operacional (Petraeus e embaixador dos EUA em Bagdad), regista-se a aliança conseguida com as tribos sunitas contra a Al Qaeda, um importante ganho táctico que dá aos EUA outras opções, além da opção xiita, com potenciais repercussões estratégicas – positivas, se contribuir para o Irão fazer mais concessões para um eventual acordo com os EUA; negativas, se os sunitas, agora bem armados pelos americanos, tomarem a iniciativa de atacar os xiitas ou mesmo os próprios americanos. Mas aquela avaliação não mostra progressos susceptíveis de mudar o essencial da análise efectuada no relatório Baker-Hamilton. Maioritariamente, são pouco consistentes, facilmente reversíveis e elusivos. Será difícil consolidá-los suficientemente, já que prevalece a necessidade de evitar a rotura do exército. Bush aceitou as recomendações de Petraeus, condicionando-as à evolução da situação no terreno. Depois dos efectivos no Iraque regressarem a 130.000, a situação poderá deteriorar-se, na ausência de um entendimento com o Irão, pois parece pouco provável que haja a possibilidade de 130/140.000 fazerem o que fazem perto de 170.000. A degradação da situação obrigaria a repor o reforço, o que seria inviável, pelo motivo por que acabou – perigo de rotura do exército. Além disto, o partido republicano arrisca-se a uma profunda derrota eleitoral, como resultado de uma solução de meio termo – as forças que permanecem no Iraque, aparentemente insuficientes para conseguir a estabilização do país, são bastantes para ameaçar as ambições dos seus candidatos. O que, no Congresso, pode conduzir a uma aliança de alguns republicanos com os democratas, forçando uma viragem estratégica. Só uma estratégia de retirada de forças substanciais, negociada se possível, parece poder ajudar a resolver estes dois problemas. No entanto, se os sinais de deterioração não forem imediatos, a Casa Branca poderá teimar na manutenção da sua estratégia, o que provocará demoras susceptíveis de agravar a situação. Não se devem descartar cenários de fortes convulsões no Iraque. Embora os americanos tenham tentado acalmar Israel e os países árabes vizinhos (também com vultosos fornecimentos de armas), aqueles que se considerarem especialmente lesados nos seus interesses pela ascensão do Irão (Israel e Arábia Saudita) podem provocá-las, através dos sunitas, xiitas e curdos insatisfeitos. São ainda previsíveis lutas pelo poder entre as “famílias” xiitas mais poderosas – Abdu al-Hakim (favorita dos EUA) e Moqtada al-Sadr (favorita do Irão), ambas respaldadas pelas respectivas milícias (brigada Badr e exército Mahdi). E convém prevenir que os americanos venham a ser obrigados a uma retirada total pelo governo do Iraque (estimulado pelo Irão), que a maioria dos iraquianos apoiaria. Ou, sem acordo com o Irão, se vejam “embrulhados” numa guerra civil aberta entre facções por si armadas e com um exército nacional em frangalhos, que desmembrará o Iraque numa área xiita a Sul (satélite do Irão) e zonas curda e sunita (protegidas pelos EUA e seus aliados na região).
Conclusão Em conclusão. A invasão do Iraque e os erros cometidos favoreceram o Irão, serviram de incentivo ao jihadismo e estimularam a contestação à liderança norte-americana por grandes e médias potências. Quem perdeu foi o Ocidente e a estabilidade mundial. Paradoxalmente, surgiram condições susceptíveis de contribuir para o fim do conflito israelo-palestiniano, um dos objectivos iniciais da invasão, pela aliança dos países árabes com Israel, mais fracos face ao Irão – não pelas razões dos neocons, “passará o caminho de Jerusalém por Bagdad”?Informação Complementar Num Estado fraco, o poder tem horror ao vazio A insegurança generalizada levou os iraquianos a refugiar-se nas suas identidades primitivas, procurando a protecção que o Estado lhes não proporcionava. Famílias, clãs, tribos, facções religiosas e étnicas. Cada uma destas entidades, alargadas e apoiadas além fronteiras, procura responder à sua própria insegurança, contaminando e manipulando os instrumentos do Estado, o que faz a luta sectária assumir papel-chave no Iraque. Só depois dela resolvida, será possível avançar para a estabilidade. É uma luta pelo poder a que os scores eleitorais conferiram legitimidade “ocidental”. Enquanto ela continuar, as diversas facções não abdicarão das milícias, os seus “exércitos” privativos. Tanto sunitas como xiitas (só o partido Dawa não tem milícia) e curdas. Não parece provável acabar por um entendimento consistente. O poder disputa-se nos diversos locais do Iraque, para o transferir para Bagdad, se necessário pela guerra aberta, logo que os norte-americanos deixem de ter condições para o evitar. A situação e composição das milícias retratam a relação de forças internas do Iraque, todas com prolongamentos identitários ou políticos no exterior. O seu poder é tanto maior quanto mais fracos forem os organismos de poder nacionais. Disputam posições nas forças de segurança nacionais, organizadas com o patrocínio do ocupante – polícia e exército. Os partidos sem milícia terão pouca importância efectiva, enquanto não acabar a luta civil, excepto se apoiados pela força militar ocupante.* José Loureiro dos Santos General reformado. Autor de livros sobre assuntos de Estratégia, História Militar, Segurança e Defesa e Relações Internacionais. Analista destes assuntos na comunicação social. Foi Professor do IAEM, do IAEFA e do ISCSP. Foi Director do IAEM, assim como Vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Chefe do Estado-Maior do Exército e Ministro da Defesa Nacional.
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