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- JANUS 2008 -



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Saúde e novas formas de governação

João Arriscado *, Ângela Filipe ** e Marisa Matias ***

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Os processos de globalização, de cunho neoliberal, têm gerado desigualdades crescentes, bem visíveis no domínio da saúde, entre os que estão no centro e na periferia e entre os que têm e os que não têm acesso a cuidados de saúde, bem como aquilo que tem vindo a ser descrito como a sua crise de governação.

 

A governação em saúde

A privatização dos cuidados de saúde, a transformação da saúde em mercadoria e a domiciliarização de cuidados de saúde são algumas das manifestações mais visíveis da emergência da ordem neoliberal na saúde durante as últimas décadas. Em alguns países, como Portugal, tem sido evidente a retracção do Estado no plano da prestação de cuidados de saúde e a crescente tendência para deslocar a governação da saúde para entidades não-estatais, incluindo seguradoras privadas e organizações internacionais ou não-governamentais.

O enquadramento legal do direito à saúde e dos seus determinantes encontra-se na Convenção Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1) (1966). No 14.º Comentário Geral (2) (2000), o direito à saúde é definido como um direito inclusivo, integrando, além dos cuidados de saúde, o acesso, os recursos, a aceitação de práticas culturais, a qualidade dos serviços de saúde e os determinantes sociais da saúde ligados, entre outros, ao saneamento básico, à habitação, à não-discriminação, à educação e informação em saúde e à liberdade de deslocação. No mesmo sentido outras convenções dirigidas a grupos ou problemas específicos (discriminação contra as mulheres (3), 1979; tortura e outras formas de tratamento cruel, desumano ou degradante (4), 1984; direitos da criança (5), 1989; segurança e saúde no trabalho, 1981) (6) contemplam o direito à saúde. A Declaração de Alma-Ata (1978) (7), aprovada por unanimidade na Conferência Internacional sobre Cuidados de Saúde Primários, patrocinada pela Organização Mundial de Saúde, define a saúde como um “estado de bem-estar físico, mental e social” e “um direito humano fundamental”, “um objectivo social ao nível mundial cuja realização requer a acção de muitos outros sectores sociais e económicos, além do sector da saúde”. São denunciadas “as enormes desigualdades no estatuto de saúde dos povos sobretudo entre países desenvolvidos e em desenvolvimento” como um facto “política, social e economicamente inaceitável e (…), dessa forma, uma preocupação comum a todos os países”. Esta perspectiva da saúde como direito humano fundamental permite, por um lado, olhar para a salvaguarda da dignidade de todas as pessoas e daquelas que são mais vulneráveis, e, por outro lado, tomando como centrais os determinantes da saúde, configura uma crítica às políticas públicas de saúde que se limitam aos aspectos médicos e sanitários, secundarizando as condições sociais, económicas e políticas das populações e, em particular, o envolvimento das famílias e das comunidades.

Nesse sentido, a saúde constitui-se como um desafio para a governação global, suscitando importantes questões sobre igualdade e justiça no mundo. Assim, é vísivel o crescente apoio e mobilização em torno do problema da distribuição mais equitativa de recursos na área da saúde, em termos de cuidados médicos ou de medicamentos disponíveis, que permita prevenir e tratar as doenças mais comuns e que afectam a maioria da população mundial, reduzindo consideravelmente o seu impacto.

 

Os movimentos sociais na saúde: as organizações de doentes

A orientação neoliberal hoje dominante condiciona as prioridades da investigação e desenvolvimento na indústria farmacêutica e na biotecnologia, orientadas para a produção de medicamentos e para a inovação em meios de diagnóstico e terapias dirigidos às doenças que afectam sobretudo as populações mais ricas do Norte, que constituem mercados solvíveis para esses produtos. Este problema do desenvolvimento da investigação biomédica é extensível por sua vez às doenças órfãs ou raras que afectam grupos considerados de dimensão demasiado reduzida para que se justifique o seu investimento. Um outro fenómeno é o da privatização da saúde ao qual tem estado associado um processo, bem estudado em países como os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha, de domicialiarização de cuidados de saúde, especialmente em situações de doença crónica. Esta domicialiarização é muitas vezes acompanhada de uma celebração de novos recursos tecnológicos, nomeadamente dos que permitem, através de tecnologias de informação e comunicação, a monitorização à distância do estado dos doentes, muitas vezes pelos próprios doentes.

Essas tendências de privatização e mercadorização na governação da saúde têm sido, paralelamente, questionadas por parte de diversos actores, entre os quais actores colectivos que se têm constituído em movimentos sociais e iniciativas à escala nacional e internacional que procuram responder aos problemas do acesso à saúde e aos cuidados de saúde e que têm vindo a ser definidos como “movimentos sociais na saúde”.

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Para além desses movimentos de contestação à perspectiva dominante de governação em saúde, outros actores colectivos como associações e organizações de doentes têm vindo, sobretudo na Europa, América do Norte e América Latina, a assumir um papel crescente na transformação do campo da saúde. Essa transformação passa pela abertura de novos espaços de participação para os doentes e para os que lhes prestam cuidados fora do âmbito profissional médico e de enfermagem, como forma de promoção da defesa dos seus direitos e, em particular, do direito efectivo ao acesso a cuidados de saúde pelos doentes ou pessoas portadoras de deficiência. As associações de doentes promovem práticas inovadoras de mediação entre participantes heterogéneos no campo da saúde, como os profissionais e as instituições de prestação de cuidados, os governantes e decisores políticos, as comunidades científicas e de investigação, os prestadores de cuidados não-convencionais e a indústria farmacêutica.

A promoção e organização de plataformas e de federações de associações e de coligações entre estas e outros actores, nacionais como transnacionais, constituem uma das formas mais eficazes de ampliar a sua visibilidade e capacitação enquanto actores políticos, situação que é particularmente relevante no espaço da União Europeia. As associações têm-se envolvido, ainda, em actividades tradicionalmente consideradas como reserva de peritos, investigadores e profissionais de saúde, tais como a investigação biomédica. E é no seio da investigação que associações de doentes têm conseguido intervir activamente na redefinição de prioridades de investigação, na organização de ensaios clínicos, na angariação de fundos para financiamento de investigação e no processo de produção de conhecimento sobre situações e condições nas quais existe escassa ou nula produção científica. No campo das doenças órfãs, das doenças degenerativas, das doenças do foro mental e das várias formas de deficiência, as associações de doentes têm contribuído para o combate à doença e para a sua redefinição enquanto problema que é simultaneamente científico, clínico, moral, social e político, através de diversas práticas de sensibilização e difusão de informação. Precisamente neste campo, têm emergido alguns dos exemplos de plataformas mais fortes e activas no contexto europeu, de que são exemplos a EURORDIS – que teve um papel central na aprovação do Acto Europeu sobre Medicamentos – ou o European Disability Forum – cuja luta pelo reconhecimento social e pelos direitos das pessoas portadoras de deficiência foi fundamental.

 

As associações de doentes em Portugal

Tendo em conta a diversidade e as contingências históricas e sociais no universo das associações de doentes, o seu quadro de acção poderá ter diferenças significativas de país para país. No caso português, e pelo seu carácter emergente, a delimitação do universo das associações de doentes permanece em aberto. Contudo, a construção de uma base de dados no âmbito de um projecto europeu (8) permitiu identificar um total de 104 associações de doentes com actividade regular. Os dados a seguir resultam dessa base de dados e de um inquérito aplicado às associações identificadas.

Verifica-se uma forte concentração de associações em Lisboa (49% da totalidade das associações existentes). Se considerarmos a Área Metropolitana de Lisboa, esta concentração torna-se ainda mais visível, com cerca de 60% das associações existentes aí localizadas. Apenas cerca de 15% das associações existentes estão localizadas fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.

A esmagadora maioria (90,8%) das associações foram criadas já após a restauração do regime democrático em Portugal, ou seja, entre 1974 e 2007, tendo cerca de 50% delas menos de dez anos de existência.

Cerca de metade (48,6%) tem menos de 300 associados, e aproximadamente dois terços (67,6%) menos de 500 associados. A amplitude varia entre os 12 associados da organização de menor dimensão e os 12.549 associados da de maior dimensão.

À semelhança de outros países, o peso das associações dedicadas às chamadas doenças órfãs e/ou incapacitantes é bastante elevado (41%). Tem sido importante a sua contribuição para a redefinição dessas doenças enquanto problemas simultaneamente científicos, clínicos, morais, sociais e políticos. Concomitantemente com o processo de formação duma identidade colectiva, as associações promovem o reconhecimento de certos tipos de doença como problemas públicos e o apoio institucional aos doentes, aos seus familiares ou aos que lhes prestam cuidados.

Em resultado de um questionário aplicado às associações de doentes existentes em Portugal é ainda possível apontar outros elementos característicos. Desde logo, é fraca a profissionalização das associações (15% do total dos seus membros), sendo que um terço (35%) destas é constituído por associações que não empregam qualquer assalariado e três quartos (76%) têm menos de dez assalariados.

Estes dados parecem confirmar uma estrutura associativa muito dominada pelo voluntariado, e as famílias de doentes são uma componente fundamental. Ainda assim, a esmagadora maioria das associações (cerca de 94%) tem 50 ou menos voluntários – o que está relacionado com o facto de um número significativo das associações existentes ter um reduzido número de associados e ser de constituição recente.

Outro elemento a assinalar é o do público-alvo das associações em alguns domínios da sua actividade, nomeadamente no que se refere à divulgação de informação. A este respeito, a família é indicada como público-alvo do atendimento telefónico por cerca de 87% das associações e como público-alvo de periódicos como revistas e newsletters por 90,9% e 76,5% dos casos (conforme resultados de questionário).

No órgão directivo ou conselho de administração, encontramos em 35% dos casos familiares directos das pessoas afectadas (pais, cônjuges, irmãos, filhos). As outras grandes categorias que compõem os órgãos administrativos correspondem aos portadores da doença/deficiência (27%) ou simpatizantes (23%). Cerca de 20% das organizações tem uma denominação mista de “familiares e amigos” ou “pais e amigos”.

Em Portugal, as associações de doentes têm vindo a afirmar-se no espaço da governação da saúde, ainda que muitas vezes com capacidade limitada de influenciar as políticas públicas neste domínio. Apesar da sua forte internacionalização, é ainda limitada a colaboração que as associações estabelecem entre si no espaço nacional, mesmo que, em alguns casos, partilhem objectivos comuns. Ainda assim, a investigação que tem sido desenvolvida em outros países mostra-nos que seria um erro minimizar o papel central que as associações de doentes poderão desempenhar no futuro, quer como actores político quer como actores sociais.

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Informação Complementar

A saúde como direito

Várias convenções internacionais – tanto no enquadramento internacional dos direitos humanos, como no enquadramento não-convencional sobre desenvolvimento e ambiente – consagram o direito à saúde. Uma das concepções mais abrangentes foi trazida pela Declaração de Alma-Ata, em 1978, que avançou com o objectivo Saúde para Todos até ao ano 2000. Do mesmo modo, o direito à saúde e aos cuidados de saúde está consagrado na maioria das constituições (ou enquadramentos legais equivalentes) dos países da União Europeia (UE), tais como Bélgica, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Letónia, Lituânia, Polónia e Portugal. Ainda no âmbito da UE, na proposta inicial do Tratado Europeu (Artigo II-35) foi incluído o direito ao acesso a cuidados de saúde preventiva e o direito a aceder ao tratamento médico mediante o cumprimento das práticas e provisões legais dos diferentes Estados-membros. Na Convenção Europeia, o XI Grupo de Trabalho sobre Social Europe recomendou que fosse incluída uma referência ao “mais alto padrão de saúde” como objectivo fundamental da UE, proposta que foi, no entanto, revogada. De referir ainda que, apesar de o compromisso para a saúde ser assumido como um dos objectivos a longo prazo da UE, nomeadamente pelo Conselho da Europa, a Carta Social Europeia, nos seus artigos 11.º e 13.º, considera a saúde apenas a partir de uma perspectiva de prevenção da doença e não de promoção da saúde.

Apesar destas limitações, a saúde tem vindo a ganhar importância crescente no domínio das políticas europeias e o papel da UE nestes domínios tem vindo a ampliar-se ao longo dos últimos anos, também no sentido de uma participação cada vez maior da sociedade civil.

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1 - Artigo 12. Disponível em http://www.unhchr.ch/html/menu3/b/a_cescr.htm

2 - Comentário ao Artigo 12. Disponível em: http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(symbol)/E.C.12.2000.4.En?OpenDocument

3 - Artigo 12. Disponível em http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/cedaw.htm

4 - Disponível em http://www.ohchr.org/english/law/cat.htm

5 - Artigo 24. Disponível em http://www.ohchr.org/english/law/pdf/crc.pdf

6 - Texto disponível em http://www.ilo.org/ilolex/cgi-lex/convdf.pl?C155

7 - Texto da declaração disponível em http://www.who.int/hpr/NPH/docs/declaration_almaata.pdf

8 - MEDUSE – Governance, Health and Medicine: Opening Dialogue between Social Scientists and Users.

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* João Arriscado Nunes

Doutor em Sociologia. Professor Associado com Agregação da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Sociais.

 

** Ângela Filipe

Licenciada em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra. Mestranda em Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigadora júnior do Centro de Estudos Sociais.

 

*** Marisa Matias

Licenciada e Mestre em Sociologia. Doutoranda em Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigadora do Centro de Estudos Sociais.

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

Link em nova janela Associações de Doentes por ano de existência

Link em nova janela Tipologia das Associações de Doentes

Link em nova janela Membros da Direcção face à doença ou deficiência

Link em nova janela Voluntários por tipo de Associação (%)

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