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- JANUS 2008 -



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Cadeias de valor dinâmicas (e globais)

Sandro Mendonça *

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A “cadeia de valor” é um conceito utilizado em análise económica, estratégia empresarial e gestão de operações. Mas é um conceito que pode ser estendido para iluminar a natureza internacionalmente articulada dos sistemas produtivos contemporâneos.

A “cadeia de valor” alerta-nos para a natureza institucional do processo produtivo. Ou seja, gerar valor económico não é apenas transformar matérias primas em resultados com interesse para o cliente final. A acção produtiva não se pode reduzir a um acto isolado de conversão de inputs em outputs como resposta a preços observados no mercado. A produção é um processo tecnológico e organizacional que está assente numa base de relações duradouras (tão definidas em contratos como dependentes de sentimentos de confiança mútua) que sincronizam contributos complementares de diversos participantes situados em vários territórios. Esses participantes são detentores de conhecimentos (por exemplo, de design) e de activos intangíveis (por exemplo, reputação junto dos compradores) e tangíveis (por exemplo, pontos de venda com acesso a nichos sofisticados).

Na essência, a cadeia de valor fornece um quadro de referência que representa a actividade económica como uma sequência de etapas e de procedimentos de acompanhamento que permitem a transformação dos elementos iniciais em experiências com valor para o utilizador último. Contudo, entender a actividade produtiva nestes moldes tem implicações não triviais para a compreensão dos desafios competitivos actuais numa economia do conhecimento global em acelerada evolução. O conceito de cadeia de valor permite trazer para o centro das preocupações o relacionamento contratualmente complexo, tecnologicamente mutável e geograficamente deslocalizado entre fornecedores e clientes industriais.

 

A natureza institucional e cognitiva da produção

A cadeia de valor é um instrumento conceptual que desmistifica a noção abstracta da actividade económica enquanto encontro automático entre procura e oferta. O funcionamento real do fenómeno económico requer uma interpretação mais abrangente e detalhada da diversidade de entidades, competências e interdependências em jogo. A produção é um processo baseado num articulado mais ou menos longo de tarefas diferenciadas, distribuídas por um conjunto heterogéneo de actores, os quais, além de serem fornecedores de cada tipo de recurso são também consumidores de vários outros produtos intermédios. Nestes moldes o “produto final” é tido como o resultado da combinação complexa de recursos transformados (como sejam matérias-primas, matérias subsidiárias como a energia, ou ainda informação) e de recursos transformadores (equipamento fabril, pessoas, ideias).

Esta perspectiva, a da construção multifaseada de um produto com valor económico para o cliente final, permite uma apreciação sobre a estrutura institucional da actividade produtiva. Uma empresa não é uma mera unidade de produção, mas antes uma componente de um sistema interligado de relações tecno-organizacionais cruzadas. Ou seja, é também preciso compreender que a “cadeia de valor” é uma metáfora limitada; cada vez mais trata-se de uma rede de colaborações (as empresas são, ao mesmo tempo, elos de várias correntes). O retorno financeiro que uma empresa tem o direito de reclamar pela sua participação na resolução de problemas económicos não depende somente da sua presença na rede de actividades, mas também da fase produtiva em que se posiciona no seio das “redes de valor”. Exportar não é meramente o acto de vender para os mercados estrangeiros, mas antes um processo árduo de criação de contactos, de orquestração polifónica de colaborações regulares, de desenvolvimento de canais de distribuição, e da sustentação do interesse de vários nichos locais.

 

A cadeia de valor num mercado mundial em mutação

A questão principal para os decisores de política pública torna-se, assim, o alinhamento de todos os elementos de uma rede de negócios encadeados. Por exemplo, em Portugal têm sido desenvolvidos esforços para congregar pacotes de medidas coerentes para a “fileira” couro-calçado como um todo ou ainda para o “cacho” de actividades dos componentes automóveis. Esta visão da política industrial parte da evidência de que o contexto influencia significativamente o desempenho das empresas, isto é, factores como a colaboração próxima com os fornecedores, a exigência dos utilizadores, a existência de intermediários empreendedores, a sofisticação da regulamentação nacional e sectorial, a abertura das universidades a colaborações de investigação aplicada, etc.

A cadeia de valor tem, assim, um papel útil enquanto ferramenta de decisão na era da globalização e da inovação. Porém, este conceito analítico tende também a ser encarado numa perspectiva demasiado estática. No presente artigo, e no contexto da economia global do conhecimento, queremos chamar a atenção para a evolução da cadeia de valor. Esta evolução tem origem em duas fontes de mobilidade:

1) a importância de cada fase da cadeia de valor para a determinação do lucro está em alteração constante, recomposições tipicamente causadas por inovações tecnológicas;

2) os contributos para cada fase podem ter origem em vários pontos do planeta, e estes podem não ser os mesmos à medida que o tempo passa.

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Compreender a evolução das cadeias de valor será uma tarefa analítica e estratégica cada vez mais crítica. Neste sentido, a questão principal para os decisores empresariais consiste em detectar e adaptar-se a mudanças na rede de que faz parte. Em particular: i - redefinir constantemente a divisão de trabalho com o resto da rede (uma organização pode ter dificuldade em integrar todas as fases de produção, sobretudo quando os produtos se tornam cada vez mais complexos; veja-se como no sector automóvel os “fabricantes” se definem como integradores de subsistemas e detentores de marcas globais); ii - detectar migrações das bolsas de valor ao longo da cadeia de fornecimentos (nas últimas duas décadas do século XX a IBM passou da produção física de computadores, para a implementação de software , para a consultoria); iii - estar a atento à mudança de vantagens comparativas entre os diversos lugares físicos da rede (os produtos Apple são concebidos na Califórnia, mas fabricados na China); iv- estar preparado para continuar a melhorar a qualidade das suas relações com os outros actores da rede (boa parte das empresas de vestuário portuguesa passou da simples sub-contratação para um regime de co-contratação, coordenando tarefas de estilismo e de escolha dos subfornecedores de tecidos).

 

O futuro das cadeias de valor

Como em qualquer elaboração de cenários sobre o futuro existem mudanças de “baixa-frequência”, que podemos tomar como constantes num horizonte de curto-médio prazo, e mudanças de “alta-frequência”, cuja cadência é mais rápida e os impactos mais incertos e carentes de monitorização mais intensa.

O que continuará estável? As tendências que já se verificavam nas décadas finais do século XX deverão permanecer.

O alargamento dos mercados globais deverá continuar a incentivar estratégias de especialização por parte dos agentes privados. No início do século XX uma empresa como a Ford internalizava completamente a sua produção, detendo inclusive as terras onde pastavam as ovelhas de onde era retirada a lã para encher os bancos do famoso Modelo T. Já no final do século XX, as empresas praticavam crescentemente o outsourcing (de actividades auxiliares como a limpeza, a contabilidade, a alimentação dos seus funcionários, ou a segurança das instalações), preferindo focar as energias nas actividades-chave para a prossecução dos seus objectivos junto dos segmentos-alvo. Esta tendência leva a que a actividade de produção esteja a ser crescentemente decomposta num número cada vez mais elevado de etapas elementares, as quais terão ciclos de vida cada vez mais rápidos. Por exemplo, veja-se como na indústria da moda as relações públicas e a gestão de eventos surgem e se reinventam a cada estação, como nas montras o vitrinismo é uma arte crescentemente valorizada, como dentro das lojas as colecções mudam e várias vezes na mesma estação, como várias lojas da mesma insígnia exibem simultaneamente colecções diferenciadas, como vai evoluindo a linguagem do estilo que define cada artigo exposto, e como os tecidos e as componentes de cada artigo vão mudando, etc., etc.

O grau de sofisticação e a complexidade técnica dos produtos transaccionados deverá também continuar a aumentar. Por um lado, nas indústrias tradicionais a inovação é já um método central para elevar a capacidade de sobrevivência perante a concorrência vinda dos países de baixo custo. Em sectores como os têxteis, a importância da inovação nas fibras é cada vez maior (por exemplo, fibras inteligentes que voltam à forma original uma vez amarrotadas) e no calçado a proposta de novos materiais é um atributo não trivial para a funcionalidade (permitindo novos modelos, maior leveza, durabilidade superior, etc.). Isso significa que é possível continuar a esperar que novos actores como universidades, laboratórios e consultores privados continuem a ter um papel cada vez mais importante de apoio às actividades tradicionais. Por outro lado, nos sectores de alta tecnologia (como electrónica de telecomunicações) continuará a haver oportunidades para pequenos e hábeis especialistas tecnológicos. Por exemplo, a exploração de nichos bem definidos que são valorizados por grandes empresas globais tem sido uma estratégia que um grupo de empresas portuguesas tem conseguido implementar com sucesso (Quadriga, YDreams, Critical Software, etc.).

O que está a alterar-se? As empresas habitam cadeias de valor que “aprendem” cada vez mais rapidamente. Mas os efeitos deste processo não são claros porque surgem de uma mudança permanente a vários níveis: originada por um número cada vez maior de intervenientes, num conjunto cada vez mais numeroso de etapas, tratadas explicitamente por novos especialistas que não existiam antes, etc. E também não é claro para onde vão migrando as “bolsas de valor”, isto é, quais são os elos que se vão tornando mais lucrativos ao longo das cadeias de valor.

Permanecer nas cadeias de valor é cada vez mais difícil, mas a ênfase crescente na criatividade e na rápida adaptação aos mercados abre a todo o momento oportunidades frescas para reposicionamento. No passado, houve empresas portuguesas das áreas têxtil, do vestuário e calçado que conseguiram sair de um regime de subcontratação (reagindo passivamente a encomendas por parte de empresas com acesso aos mercados mais atractivos na Europa e nos EUA) para um regime de co-contratação (em que elas próprias já internalizavam os princípios dos seus parceiros e sugeriam elas próprias as colecções, garantindo a coordenação dos fornecedores de fibras e materiais). A pergunta é como e quantas empresas superarão, por sua vez, este posicionamento. Por outras palavras, quantas conseguirão impor a sua imagem nos mercados internacionais e propor linguagens que os consumidores reconheçam e apreciem?

É possível que empresas portuguesas se comecem a sentir mais preparadas para disputar os lugares mais altos dos sistemas de colaboração em que estão activas e passem a ser animadoras de redes internacionais de produção e inovação. Mas quais os negócios em que isso acontecerá, e com que dimensão? A competitividade da economia portuguesa dependerá menos do tipo de cadeias de valor em que as suas empresas se inscrevam (indústrias “high-tech” ou “low-tech”) e mais da qualificação dos contributos e da capacidade de integração nas cadeias de valor, quaisquer que estas sejam.

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Informação Complementar

Modelos de delimitação da actividade económica

Existem diversos métodos de partição do sistema produtivo, derivados de tradições distintas de pensamento económico ou simplesmente adaptados a propósitos analíticos diferentes:

Filière : Conceito desenvolvido na escola francesa de economia industrial da década de 1970. Enfatiza a sucessão de operações separáveis de transformação (fluxos de matérias) e ligadas entre si por encadeamentos de técnicas (fluxos de saber-fazer). A noção de fileira privilegia o encandeamento entre indústrias a montante e a jusante, e não tanto as operações ou as actividades como a cadeia de valor.

Cluster : As actividades produtivas são organizadas no espaço, e os contextos territoriais importam para o desempenho das empresas num determinado sector. Não raramente várias actividades relacionadas (indústrias de suporte, serviços às empresas, infra-estruturas técnicas, oferta educacional, etc.) estão co-localizadas, ou seja, juntas como num “cacho”.

Sistemas sectoriais de inovação : Com origem na escola de pensamento neo-schumpeteriana este modelo de análise evidencia a constelação de actores e instituições que contribuem para a aprendizagem num determinado negócio. A configuração de intervenientes e fontes de mudança técnica varia significativamente de sector para sector.

 

Classificação de indústrias por intensidade tecnológica

As nomenclaturas utilizadas pelos organismos oficiais fornecem regras internacionalmente harmonizadas, embora com certos particularismos nacionais, para agrupar as empresas em sectores. Em Portugal a Classificação das Actividades Económicas (CAE, Rev.2) agrega as unidades produtoras segundo a sua actividade principal. A CAE identifica 17 sectores, um dos quais sendo a indústria transformadora. Por sua vez, dada a importância das actividades industriais, a OCDE desenvolve um esquema de partição que enfatiza a intensidade tecnológica, medida pelo peso das despesas em investigação e desenvolvimento no valor acrescentado. As quatro grandes classes da OCDE são:

Indústrias de alta-tecnologia – Aeroespacial, Farmacêutica, Computadores, Equipamento de Telecomunicações, Instrumentos de Precisão;

Indústrias de média-alta-tecnologia – Equipamento Mecânico e Eléctrico, Automóveis, Química, Automóveis e outros Equipamentos de Transporte;

Indústrias de média-baixa-tecnologia – Reparação Naval, Borracha e Plásticos, Metais e Outros Produtos Minerais, incluindo Derivados do Petróleo;

Indústrias de baixa-tecnologia – Papel, Alimentação e Bebidas, Têxteis e Calçado.

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* Sandro Mendonça

Investigador no Departamento de Economia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa e no SPRU, Universidade de Sussex.

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