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Onde estou: | Janus 2008> Índice de artigos > O que está a mudar no trabalho humano > O sentido humano e social do trabalho > [ Do trabalho feliz como novo Graal e utopia positiva ] | |||
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Recorda Robert Owen, fundador de New Harmony, na sua autobiografia : “Em 1815... eu tinha uma experiência de 25 anos na indústria... que me permitia formar um juízo exacto sobre a situação das crianças e operários que nela trabalhavam e se tinham tornado escravos das novas potências mecânicas. A escravatura branca nas manufacturas [inglesas] era, nessa época de inteira liberdade, mil vezes pior que nas casas de escravos que vi nas Índias e nos Estados Unidos”. A Inglaterra representa, na época, o pior dos cenários laborais da Europa e do Novo Mundo. Em 1843, na Revue des deux mondes , P. Grimblot descreve assim o trabalho infantil nas minas britânicas: “Nas galerias mais fundas, o putter , como uma besta de carga, preso ao carro por uma corrente que lhe passa entre as pernas, ligada a um cinturão de couro que lhe envolve o tronco, puxa o seu fardo rastejando ou de mãos no chão... É nos piores poços e nos trabalhos mais penosos que se empregam crianças da mais tenra idade (por vezes com sete anos, no País de Gales), e de preferência do sexo feminino”. Num relatório de 1839 para a Academia [francesa] das Ciências Morais e Políticas, um Dr. Villermé diz que muitas famílias vivem, “sobretudo nas grandes cidades manufactureiras, numa só divisão atulhada de colchões, arcas, bancos e cadeiras, teares e demais utensílios, onde sucessivamente dormem, trabalham, cozinham e comem, e podem dar-se por felizes quando esse chão não é o de uma cave húmida e sem luz, ou de um sótão escaldante no Verão e gelado no Inverno”. O mesmo relator acusa a maioria dos patrões de contratarem famílias em condições “que as levam à degradação moral e à corrupção dos costumes”, e ergue-se contra o trabalho infantil: “As crianças estão 15 ou 18 horas por dia em pé, numa sala fechada, sem mudar de lugar nem de atitude... é uma tortura, infligida a crianças de 6 a 8 anos, mal nutridas e mal vestidas, obrigadas a percorrer desde as 5 horas da manhã a longa distância que as separa das suas oficinas”. No seu Le nouveau monde industriel et sociétaire , de 1829, escreve Charles Fourier: “As regiões industrialistas estão mais cheias de mendigos que as outras, indiferentes a esta forma de progresso... Na tão gabada Inglaterra, metade da população trabalha 16 horas por dia em ateliês infectos para ganhar o equivalente a sete soldos franceses, num país onde a subsistência é mais cara que em França”. Na mesma primeira metade do séc. XIX, o progresso das máquinas já torna supletivo o trabalho humano, e o desemprego explode, bem como o não-escoamento da produção ilimitada em regime de livre concorrência. Escreve o calvinista Carlyle ( Past and Present , 1843): “Para que servem essas camisas que teceis? Ei-las penduradas aos milhões, enquanto vão nus os seres laboriosos que não têm com que as comprar para se cobrirem. As camisas são para vestir. Se não, tornam-se num insulto intolerável”. Proudhon ( Filosofia da miséria , 1846) levaria mais longe a ironia da contradição entre máquinas e trabalho humano: “Pena é que as máquinas não comprem os tecidos que fabricam! O ideal seria que sociedade, comércio, indústria e agricultura funcionassem sozinhas, sem necessidade de um só homem sobre a terra!” ...E não se pode exterminá-lo? A pouco mais de século e meio de distância, terão estas veementes descrições de um tempo em que o homem se tornara servo desprezível dos novos meios de produção mecânicos um mero valor evocativo e ultrapassado? Bem sabemos como Marx, respondendo rapidamente a Proudhon ( Miséria da filosofia , 1847, o mesmo ano do Manifesto Comunista ), o acusou de ver as árvores mas não a floresta, e sustentou que “os grandes progressos da divisão do trabalho começaram em Inglaterra depois da invenção das máquinas... As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas... Adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam o modo de produção, o modo como ganham a vida, e todas as suas relações sociais”. Mas também sabemos que esta visão optimista não impediu que a imagem fourierista do travail à la chaîne preocupasse políticos, sociólogos e artistas até ao “Metropolis” de Fritz Lang (1926), aos “Tempos Modernos” de Chaplin (1936)... e até aos dias de hoje. A realidade do mundo do trabalho nas economias emergentes do início do século XXI – com a China e a Índia à cabeça de um novo grupo de países –, bem como nas massas de migrantes que demandam as sociedades desenvolvidas, mostra-nos que não estamos irreversivelmente longe de certas formas de trabalho de que continuamos a pretender, sobretudo, libertar-nos. Sofremos de memória curta: bombardeados desde O Capital de Marx pela possibilidade de redução da jornada de trabalho, por exemplo, e ainda ontem alertados (nas sociedades mais desenvolvidas, precisamente) para a possibilidade de termos de “trabalhar menos para que um maior número possa trabalhar”, esquecemos que a proposta de diminuição, para seis horas, do dia de trabalho, data de 1515 e é de Thomas More na sua Utopia . Já no início do séc. XVI, portanto, a nossa pergunta sobre a necessidade do trabalho era “...e não se pode exterminá-lo?” Ora, como escreveu S. Moscovici no seu Essai sur l'histoire humaine de la nature , “o erro tem consistido em não ver... que o que substitui determinado trabalho nunca é o não-trabalho, mas sim outra forma de trabalho”. Num livro de 1949, La Part Maudite , Georges Bataille, seguindo de perto as propostas de Weber sobre a importância determinante da religião na economia, explicava que o trabalho, na era industrialista, reduziu o homem à dimensão das coisas produzidas e atribuiu à vida humana, com frequência, menos valor do que a essas mesmas coisas. E via, na reconstrução europeia do pós-guerra, como na economia planificada da União Soviética, dois modelos distintos da mesma redução radical ao mundo das coisas, onde a transcendência e a dimensão “soberana” da vida humana irremediavelmente se dissolviam. Hoje como ontem, o desafio fundamental que o trabalho coloca à espécie humana continua a ser o da sua coisificação radical. Nada é mais incerto do que a crença em que as sociedades contemporâneas, na sua diversidade e nas suas contradições, conseguirão encontrar esse graal tão desejado, as novas formas de trabalho que não humilhem nem aviltem a experiência humana do mundo e da vida.Informação Complementar A receita de Fourier para mudar o trabalho em 1835 “Outra forma de trabalho” era o que Charles Fourier propunha em La fausse industrie, morcelée, répugnante, mensongère, et l'antidote, l'industrie naturelle, combinée, attrayante, véridique, donnant quadruple profit , 2 volumes, Paris, 1835-1836. Eis o seu “Quadro da separação absoluta em matéria de procedimentos industriais”:
Método repugnante 1. Reunião mínima, uma só família desprovida de capitais, de créditos e de mecânicas. Ausência do regime accionista, do bem societário e das suas imensas economias. 2. Sessões longas, tristes, individuais, sem intriga. Solidão, monotonia das funções, instintos sufocados. 3. Lesão das capacidades, falta de repartição de tarefas entre homem, mulher e criança, exercício cumulativo e complicativo, obrigando o indivíduo a gerir todas as áreas do trabalho. 4. Conflito de discórdias, antipatias e desigualdades. Estatuto arbitrário e compressivo dos instintos. Disciplina monástica das massas. 5. Trabalho taciturno por necessidade e obrigação. Trabalhos inúteis, ingratos, insalubres. Obediência penosa ao indivíduo, domesticidade humilhante e falta de opções e de simpatia. 6. Má comida e amiúde insuficiente, estimulando ora excessos, ora privações. Espírito odioso e amotinado do povo desprovido. 7. Operário excluído da propriedade e do consumo: escravatura indirecta através da pobreza. Permanência do roubo em todas as relações. 8. Educação forçada, estudos lentos e estéreis: falseamento das faculdades sensuais e intelectuais; desenvolvimento subversivo e malsão das paixões e instintos, privados de duplos contrapesos. 9. Ridículo e ruína pela prática da verdade: perda da fortuna e da saúde nos prazeres, com o concurso da degradação climatérica e sanitária. 10. Luta entre os dois interesses colectivo e industrial: produção e consumo submetidas ao comércio: desgraças duplas, infelicidade compósita.
Método atractivo 1. Reunião máxima de 350 a 400 famílias, bem providas de capitais, créditos e meios. Fundos societários, dinheiro, terras, animais, utensílios, etc.: representação por acções negociáveis e reembolsáveis. 2. Sessões curtas e variadas, em grupos intrigados. Multiplicidade de empregos de opção para todos os instintos. Distribuição oportuna de sexos, idades, terrenos, etc. 3. Dividendos do capital, do trabalho e do talento distintamente pagos a cada um, homem, mulher ou criança. Exercício parcelar do indivíduo em cada um dos ramos do trabalho que ele preferiu. 4. Concurso indirecto de energias hoje discordantes. Livre curso e emprego útil dos instintos: harmonia corporativa dos grupos e séries. 5. Alegria, ardor dos grupos livres e intrigados. Trabalhos com lucro garantido, salubres por sessões curtas: honrosa obediência às deliberações da massa e escolhas amigáveis no serviço doméstico. 6. Comida copiosa e por escala de gostos: contrapeso aos excessos por afluência de prazeres: povo benévolo, assegurado do progresso e de apoio. 7. Acesso fácil à propriedade accionária e ao bem-estar: liberdade através do mínimo [constrangimento] e indústria atractiva. Impossibilidade de furto e de armadilhas industriais. 8. Instrução a pedido, estudos rápidos. Desenvolvimento justo e pleno de sentido e de espírito: paixões e instintos aplicados à indústria e equilibrados por duplos contrapesos. 9. Caminho da fortuna via verdade e justiça; saúde e benefício via abandono aos prazeres. Restauração sanitária via unidade de acção. 10. Coincidência permanente dos dois interesses: fim das rapinas intermediárias do comércio: duplo encanto em indústria, felicidade compósita.
A Mater et Magistra de João XXIII A Igreja católica e a sua dotrina social intervieram, desde o início do séc. XX, a favor de maior justiça no mundo do trabalho. Eis o que dizia João XXIII na sua encíclica Mater et Magistra , de 1961, que tanto mal-estar causou ao regime salazarista português: “O Estado, cuja razão de ser é a realização do bem comum na ordem temporal, não pode estar ausente do mundo económico; deve estar presente para promover oportunamente a produção da quantidade suficiente de bens materiais, cujo uso é necessário ao exercício da virtude, e para proteger os direitos de todos os cidadãos, sobretudo os mais fracos, como os operários, as mulheres e crianças. Também é seu dever inflexível contribuir activamente para a melhoria das condições de vida dos operários. “É ainda dever do Estado assegurar que as relações de trabalho se desenvolvem com justiça e equidade, e que no mundo do trabalho a dignidade da pessoa humana, corpo e espírito, não seja lesada. A encíclica de Leão XIII [ Rerum Novarum ] marca os traços que inspiraram a legislação social dos Estados contemporâneos; traços, como observou Pio XII na encíclica Quadragesimo anno , que contribuíram eficazmente para o aparecimento e desenvolvimento de um novo ramo do Direito, o Direito do Trabalho. “Aos trabalhadores, afirma ainda a encíclica, reconhece-se o direito natural a criarem associações apenas de operários ou incluindo patrões, como também a darem-lhes a estrutura orgânica que considerarem mais apta para a prossecução dos seus interesses legítimos, económicos e profissionais, e o direito de agirem de forma autónoma, por sua própria iniciativa, no seio de tais associações, com vista à prossecução dos seus interesses. “Operários e empregadores devem regular as suas relações inspirando-se no princípio da solidariedade humana e da fraternidade cristã, porque tanto a concorrência no sentido do liberalismo económico como a luta de classes no sentido marxista são contra-natura e opostos à concepção cristã da vida”. * João Maria Mendes Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Docente na Escola Superior de Cinema e Teatro e na Universidade Autónoma de Lisboa. Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL. Referências bibliográficas BATAILLE, Georges – La part maudite (1949), in Œuvres Complètes, t. VII. Paris: Gallimard, 1976. BUBER, Martin – Paths in Utopia . Nova Iorque: Syracuse University Press, 1996. CARLYLE, Thomas – Past and Present. Londres: 1843. FOURIER, Charles – Oeuvres complètes de Charles Fourier, 12 vols. Paris: Anthropos, 1966-1968. FOURIER, Charles – Design for Utopia: Selected Writings. Studies in the Libertarian and Utopian Tradition. Nova Iorque: Schocken, 1971. MARX, Karl – Misère de la philosophie. Paris: Bruxelas, 1847. MARX, Karl – O capital (Das Kapital. Kritik der politischen Oekonomie), vol. 1, Hamburgo e Nova Iorque, 1867. MORE, Thomas – Utopia, 1515. OWEN, R. – Two memorials behalf of the working classes (1818), In The Life of Robert Owen written by Himself, 2 vols, Londres, 1857-1858. OWEN, R. – The Revolution in the Mind and Practice of the Human Race (1849), Londres. PROUDHON, Pierre-Joseph – Qu'est ce que la propriété?, 1840. PROUDHON, Pierre-Joseph – Système des contradictions économiques ou Philosophie de la misère, 1846. PROUDHON, Pierre-Joseph – Idée générale de la révolution au XIXe siècle, 1851. SAINT-SIMON, Claude de – L'industrie, 1817. SAINT-SIMON, Claude de – Catéchisme des industriels, 1824. SAINT-SIMON, Claude de – Nouveau christianisme, 1825. WEBER, Max – A ética protestante e o espírito do capitalismo (Die protestantische Ethik und der ‘Geist' des Kapitalismus), 1920. Maiores percentagens de população activa 2007
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