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- JANUS 2008 -



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Trabalho, globalização e repartição do rendimento

Manuel Farto * e Henrique Morais **

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A economia mundial tem vivido um importante período de crescimento nos últimos 15 anos. A globalização e o impacto da disseminação das novas tecnologias da informação e comunicação permitiram a melhoria de bem-estar de uma parcela crescente da população mundial. O produto per capita mundial medido em “Paridades do Poder de Compra” (PPC) terá quase duplicado neste período e apenas 24 países (num total de 172) terão verificado um crescimento inferior a 50% no seu produto per capita PPC.

 

Convergência e desigualdade na repartição

Quando observamos a evolução da distribuição do produto mundial medido em PPC constata-se uma melhoria da distribuição a favor dos países em desenvolvimento que puderam neste período obter uma fatia crescente do produto mundial, passando de cerca de 24% em 1993 a 32,5 % em 2008.

Todavia, esta melhoria da posição dos países em desenvolvimento está relacionada sobretudo com o desempenho de apenas dois países: a China e, em menor grau, a Índia. De facto, um conjunto de 140 países em vias de desenvolvimento viram a sua parte no produto mundial descer de 5,6% para 4,2%, tendo o Brasil e a Rússia seguido o mesmo caminho. A Índia passou de 4,5% para cerca de 6,5%, mas é a China o verdadeiro fenómeno do período, passando de 7,5% para 16,5%. O gráfico ilustra esta evolução desigual por regiões.

Apesar da perda das respectivas posições relativas, este processo de desenvolvimento foi geralmente benéfico para os países desenvolvidos. Além de alargarem as oportunidades de exportação e de importação de produtos a preços reduzidos, as suas empresas desenvolveram estratégias mais avançadas de offshoring, repartindo as suas operações por diferentes países e regiões, reduzindo custos, ao mesmo tempo que resistiam internamente à pressão dos baixos preços externos, através do aumento da produtividade. Os países emergentes beneficiaram igualmente desta evolução da economia mundial no seu conjunto, o que se traduziu em significativos aumentos de salários, sobretudo nas indústrias transformadoras.

Todavia, apesar do enorme crescimento mundial, os benefícios têm sido muitas vezes limitados pelo aumento simultâneo da desigualdade, criando-se uma situação paradoxal na distribuição contemporânea do rendimento. Se por um lado podemos observar um processo de convergência das economias a nível global, observam-se simultaneamente fortes indícios da existência de um agravamento da distribuição a nível interno dos diversos países.

Em alguns países emergentes, como a China, o agravamento das desigualdades é muito evidente: o grupo de 10% dos cidadãos com rendimento inferior viu a sua parte crescer cerca de 100% nos últimos 10 anos, enquanto os do meio melhoraram em 115% e os do topo em 168%. Este padrão é observável geralmente nos países menos desenvolvidos de forte crescimento. No entanto, não existe um padrão único na evolução dos rendimentos, como se observa quando comparamos os EUA e a Europa.

Porque se trata do país mais desenvolvido e poderoso economicamente, porque o fenómeno do crescimento da desigualdade está aí bem estabelecido e proporciona amplo debate e porque existe a tendência a um comportamento mimético em relação aos EUA centraremos a análise deste fenómeno neste país.

 

O aumento da desigualdade nos EUA

A existência de um aumento da desigualdade na distribuição do rendimento nos EUA reúne um consenso muito alargado entre os economistas. Neste aspecto, o índice de Gini, que constitui um indicador standard nesta matéria, evidencia de maneira indiscutível o aumento sustentado nas duas últimas décadas da distribuição do rendimento na sociedade americana.

O fenómeno pode igualmente ser constatado pela simples análise da distribuição por classes de rendimento, sendo visível que as famílias do topo da distribuição têm vindo progressivamente a apropriar-se de uma parcela cada vez mais importante do rendimento. A obtenção por parte de 1% das famílias americanas mais ricas de mais de 17% do rendimento total (em 2004) constitui a concentração de rendimento mais elevada desde a II Guerra Mundial (1). De resto, em 2005 a desigualdade continuou a crescer pois a parcela de 1% mais rica viu o seu rendimento aumentado em 14%, enquanto os restantes 99% apenas tiveram 1% de aumento.

A mesma tendência pode ser confirmada por muitos outros indicadores, como por exemplo a evolução dos salários. O que é verdadeiramente notável é que tal se passa numa época em que o crescimento económico foi particularmente elevado. Em dólares reais, o PIB triplicou desde 1960 mas os salários médios permaneceram quase estagnados. Assim, apesar da baixa taxa de desemprego registada durante uma década, apresentada frequentemente como uma vantagem da economia americana, e de um importante aumento da produtividade nos anos mais recentes, o trabalhador americano tem sido incapaz de exigir uma parte mais equitativa da riqueza do país. Entre 1980 e 2005, a produtividade cresceu 71%, mas o salário médio semanal dos trabalhadores em full time passou de 613 para 705 dólares, ou seja apenas +14%.

Por outro lado, o crescimento dos salários de topo foi notável, com os rendimentos dos altos dirigentes a decuplicaram numa geração.

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As razões do aumento da desigualdade nos EUA

Apontam-se com frequência quatro ordens de razões para o aumento da desigualdade na distribuição dos rendimentos nos EUA:

1. A revolução tecnológica mais exigente na qualificação dos recursos humanos (skill-based technical change) é geralmente considerada o factor fundamental. Na verdade, os ganhos salariais verificaram-se sobretudo em ocupações exigindo um mais elevado nível de educação. No período entre 1980 e 2005, a compensação média dos trabalhadores com os estudos secundários terá subido 4%, enquanto os provenientes das escolas superiores e universidades ter-se-á elevado em 24%.

Deste modo, as necessidades da economia americana parecem estar muito para além da capacidade do sistema educacional em formar e treinar a população. As competências obtidas através da formação convencional tornaram-se relativamente escassas como factor de produção, elevando-se o prémio associado à educação e formação, tornado possível devido ao aumento da produtividade, designadamente em actividades em que a nova tecnologia da informação e comunicação se revelou poupadora de trabalho – como nos serviços que deixaram de depender da proximidade geográfica para serem fornecidos.

Esta explicação, ainda que válida, perde alguma força quando se tem em linha de conta duas observações. Em primeiro lugar, não é completamente evidente que o rendimento apresente uma relação estrita com o QI, verificando-se que a distribuição da riqueza não manifesta esse tipo de relação, pelo menos para os estratos mais elevados (2).

A segunda objecção relaciona-se com o facto de ser no topo da distribuição que se acentua muito fortemente o crescimento do rendimento, sendo duvidoso que este notável acréscimo corresponda apenas a um qualquer prémio de qualificação.

2. A globalização constitui frequentemente uma segunda linha de explicação para o aumento da desigualdade distributiva. Desde os anos 80 que se observa alguma preocupação em relação aos possíveis efeitos da globalização sobre a distribuição do rendimento: o “dark side to globalization”. O aumento do comércio internacional pode provocar alterações significativas da estrutura económica, prejudicando os trabalhadores menos qualificados dos países avançados.

Todavia, também esta linha de argumentação não deve ser sobrestimada, já que alguns estudos empíricos sugerem que o efeito da globalização nos salários não será muito significativo, ainda que o forte aumento do volume do comércio internacional e dos fluxos migratórios possam vir a dar-lhe maior expressão.

3. Os aspectos sociológicos que se consubstanciam em mudanças de normas sociais e práticas empresariais e sindicais, designadamente com o decréscimo da força destas instituições, são igualmente referenciados como elemento explicativo. Alguns autores falam mesmo em colapso sindical e de outras instituições que anteriormente moderavam o livre jogo das forças de mercado. Neste sentido, ao contrário das superstars, que possuem muito poder de mercado, uma parte dos trabalhadores americanos tem visto reduzir-se a sua posição negocial, o que poderia explicar a explosão dos lucros das empresas nos anos recentes e a estagnação em termos reais dos salários médios dos trabalhadores.

4. As políticas governamentais não têm sido esquecidas e têm aquecido significativamente o debate. Paul Kruggman, entre outros, sustenta que o principal factor do aumento da desigualdade reside nas políticas de redução de impostos, que se têm traduzido na diminuição do seu carácter progressivo, e na insuficiente actualização do salário mínimo.

Estes dois argumentos parecem incontestáveis. Os cortes nos impostos verificados com R. Reagan e G. Bush tiveram uma natureza claramente regressiva, enquanto a relação, entre salário mínimo e médio não tem deixado de se deteriorar desde 1969. Para que o salário mínimo alcançasse os 50% do salário médio, relação existente nos anos 50 e 60, teria que subir de 5,15 dólares/hora para 8,20.

 

O crescimento da desigualdade e as políticas de redistribuição

Porquê a preocupação com o crescimento das desigualdades? Na verdade não é raro apresentar-se a relação entre crescimento e equidade como um trade-off, exemplificando-se com a economia europeia, em que a desigualdade e o crescimento são menores, por confronto com a norte-americana, em que a desigualdade e o crescimento se elevam mais rapidamente.

No entanto, as preocupações relativas ao crescimento das desigualdades nos EUA existem e seguem três orientações principais. Em primeiro lugar, a preocupação económica, que receia o desenvolvimento progressivo de tendências proteccionistas, sobretudo por parte dos perdedores da globalização, que possam influenciar a opinião pública e as políticas, minando o apoio político a uma economia de mercado aberto, competitiva e estimulante para o crescimento económico.

O enfraquecimento da coesão social, na medida em que se desenvolva o sentimento de que apenas alguns retiram benefício da globalização e do crescimento (3), constitui outra fonte de preocupação, por vezes associada ao aumento da criminalidade.

Uma consequência da desigualdade, talvez mais decisiva, relaciona-se com a diminuição das oportunidades para as crianças das famílias mais pobres, que se traduz na diminuição da mobilidade social. Estudos recentes indicam que a rigidez social tem aumentado de modo significativo nos EUA, aproximando este país da que se verifica, por exemplo, no Brasil.

Compreensivelmente, qualquer acção de redistribuição depende em boa medida das razões que se consideram determinar o fenómeno da desigualdade. A medida mais frequente relaciona-se com o aumento da educação e da formação de modo a manter elevados salários na economia global.

Mas a redução da desigualdade depende consideravelmente das características das políticas redistributivas. Com efeito, a progressividade do sistema fiscal e o desenvolvimento de programas sociais tendem a redistribuir o rendimento na generalidade das democracias ricas, mas o grau desta distribuição varia significativamente de país para país.

Na realidade, se compararmos para diferentes países o coeficiente de Gini dos rendimentos das famílias antes e depois dos impostos, facilmente observaremos que a política americana é a que menos contribui para a diminuição da desigualdade, seguindo-se os países de orientação anglo-saxónica e situando-se no topo da lista países como a Suécia ou Alemanha. A posição dos EUA nesta matéria confirma as análises anteriores, segundo as quais o crescimento da desigualdade se deve em grande parte à existência neste país de políticas de pendor menos distributivo que as existentes nos outros países.

Assim, em termos de políticas de redistribuição, para os EUA tratar-se-ia simplesmente de restaurar a progressividade do sistema de impostos que as políticas das duas últimas décadas têm degradado. Em qualquer caso, a acesa luta política que o projecto de aumentar o salário mínimo para 7,25 dólares tem levantado mostra as dificuldades em prosseguir uma política mais decidida na luta contra o aumento das desigualdades.

 

Os EUA e a Europa: um trade-off entre crescimento e aversão à desigualdade

A variação da distribuição do rendimento na Europa não tem sido tão significativa como noutras regiões. Algum agravamento recente, facilmente detectável, pode estar relacionado sobretudo com o facto de a desigualdade na distribuição do rendimento e a pobreza tenderem a agravar-se em períodos de menor crescimento económico. No essencial, as razões apresentadas para explicar o aumento da desigualdade na distribuição do rendimento nos EUA podem igualmente estar na base das diferenças constatadas entre as duas regiões. A amplitude da revolução nas tecnologias de informação pode não ter atingido ainda na Europa o mesmo nível e profundidade; a menor dinâmica de crescimento da economia europeia poderá ter determinado uma menor procura de trabalhadores qualificados, implicando igualmente um menor crescimento dos salários deste segmento do mercado; a redução da procura de trabalho no segmento dos trabalhadores não qualificados pode ter-se traduzido, na Europa, sobretudo pelo desemprego.

Por outro lado, o declínio geral do sindicalismo não impediu que este permanecesse mais forte na Europa do que nos EUA e a mudança no quadro institucional no sentido da diminuição da regulação do mercado de trabalho (ou protecção ao trabalho) desenvolveu-se num ritmo relativamente lento, com a excepção de relevo do Reino Unido, que viu igualmente a amplitude salarial elevar-se mais fortemente.

São frequentes os estudos que procuram mostrar a existência de um trade-off entre a aversão à desigualdade e o crescimento do produto e da produtividade. Existiria assim uma maior preferência na Europa por uma distribuição mais igualitária em relação aos EUA, que estariam associados a um maior crescimento da desigualdade salarial, da produtividade e da própria actividade económica. Este último país estaria em consequência mais em sintonia com a visão de Lucas (2004) que sintetiza “a potencial melhoria da vida dos pobres encontrando diferentes formas de distribuição corrente não é nada comparada com o potencial aparentemente ilimitado de aumentar a produção”.

Os americanos parecem já ter escolhido. E os europeus?

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1 - Note-se que a concentração da riqueza é ainda mais elevada que a do rendimento. Neste caso, 1% da população tem mais de 1/3 da riqueza do país e o top 5% quase 60%.

2 - Por exemplo, entre os 400 mais ricos da revista Forbes os que não têm qualquer curso superior possuem 2,27 mil milhões de dólares enquanto os que o possuem representam 2,13 mil milhões.

3 - Não é impossível que uma maior desigualdade e menor conflito possam ser compatíveis através da maior capacidade de controlo dos movimentos sociais dos pobres pelos ricos e poderosos. Provavelmente depende muito mais do modo como a desigualdade é percebida do que da sua real existência.

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* Manuel Farto

Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia e Gestão. Doutor em Economia pela Universidade de Paris-X. Docente no ISEG. Docente visitante da Universidade de Orléans (França) e da Universidade Federal da Paraíba (Brasil). Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL.

 

** Henrique Morais

Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia e Gestão. Mestre em Economia Internacional pelo ISEG. Docente na Universidade Autónoma de Lisboa e na Universidade do Algarve. Assessor do Banco de Portugal. Membro do Conselho Directivo do Observatório das Relações Exteriores da UAL.

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Dados adicionais
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