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- JANUS 2009 -



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A Rússia e a defesa antimíssil americana

António Eugénio *

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Uma arma absoluta merece uma defesa absoluta. Infelizmente, nenhuma delas existe. O caso é mais grave quando a questão envolve apenas as duas [únicas, por enquanto] superpotências nucleares: os Estados Unidos da América (EUA) e a Federação Russa, herdeira da cultura estratégica da defunta União Soviética (1) (URSS). Razões estratégicas, de uma ordem profunda, perene e inultrapassável, convocam-nos para uma meditação prudente, uma vez que o fim da Guerra Fria não acabou com a competição entre estes dois países. Contrariando as expectativas de alguns, as linhas de continuidade oposicionista aí estão para nos mostrar que talvez John Mearsheimer tivesse razão quando, em 1990, escrevia, num artigo da “The Atlantic Monthly”, que em breve iríamos ter saudades da Guerra Fria.

 

E agora? A Guerra Fria vai aquecer?

A interacção nuclear entre os Estados Unidos e a Rússia é, de novo, fonte de grande tensão, em virtude da implementação em dois territórios do extinto Pacto de Varsóvia, de componentes do sistema de defesa antimíssil americano: a Polónia, para onde se prevê a instalação de dez lançadores e a República Checa, país que acolherá uma estação de seguimento radar. Para os EUA, são fundamentos estratégicos relacionados com a proliferação de armamento nuclear para países como a Coreia do Norte ou o Irão e o receio de disparos acidentais ou não comandados centralmente de um ou vários mísseis com ogivas nucleares. Para a Rússia, o cerco americano continua, como um prolongamento da Guerra Fria, à medida que a esfera ocidental conquista territórios cada vez mais próximos das suas fronteiras. A instalação destes componentes vem estrangular ainda mais as hipóteses de retaliação a um ataque americano, numa altura em que a Federação Russa faz sérios esforços para ressurgir no panorama militar convencional como uma potência credível.

Todavia, as tão faladas instalações marcam apenas uma etapa na corrida dos dois colossos, ao longo de sessenta anos, para criar defesas antimísseis (independentemente da ogiva) credíveis. Estas não serão nem absolutas, nem globais. Para já, os vectores de lançamento móveis ainda dispõem de uma vantagem estratégica. Ainda não há possibilidade de defesa integral contra
a tríade constituída por mísseis intercontinentais balísticos lançados de terra (ICBM) e de submarinos (SLBM) e por mísseis de cruzeiro lançados de aviões bombardeiros de longo alcance (ALCM). As defesas em causa e que estão a gerar tanta celeuma só serão alegadamente eficazes contra ICBM. Os segundos e terceiros só podem ser anulados com recurso ao abate das plataformas lançadoras. No que diz respeito ao domínio da tríade, apenas os Estados Unidos continuam a aperfeiçoá-la. Os russos, com a diminuição continuada das patrulhas de submarinos estratégicos (2) e com o seu atraso em matéria de bombardeiros de longo alcance (3) só podem temer quando as defesas americanas no único vector da tríade que dominam, os ICBM, se aperfeiçoam. E esta é uma situação perigosa, pois dá pouca margem de manobra à Rússia.

A única saída prudente para a Rússia é a actualização do seu próprio sistema de defesa antimísseis, numa jogada que não será original, pois sempre assim ocorreu em matéria de corrida aos armamentos. Aliás, a oferta de integração de uma estação radar no Azerbaijão, no plano de cobertura da Europa que Putin fez a Bush na Cimeira do G-8, em Junho de 2007, já demonstra um movimento nesse sentido (4). A dúvida era tão só se a Rússia complementava ou substituía a estação checa. Por outro lado, especula-se se o único sistema operacional russo de defesa antimíssil, o A-135, em Sofrino, nos arredores de Moscovo, não estará obsoleto (5).

A cooperação em matéria de defesa antimíssil é vista por muitos como uma via pacífica para ultrapassar o actual aquecimento das relações. Do ponto de vista estratégico é totalmente naïf. Claro que os EUA vão continuar a utilizar a sua vantagem concorrencial face à Rússia, até porque outra potência desponta a Oriente: a China. Só isto justifica o abandono unilateral, em 2002, pelos EUA, do Tratado Bilateral de Limitação de Defesas Antimísseis (ABM), que datava de 1972.

Seguindo uma actuação própria da linha soviética, surge-nos a cooperação entre
a Rússia e a Venezuela. Procura-se, na América Latina, uma resposta aos avanços americanos na Europa. Só que desta vez a guerra não vai ser fria, como demonstra, para já, a crise no Cáucaso.

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Quando a táctica influencia as relações internacionais

Não é só de estratégia que se fazem as relações internacionais. No que diz respeito ao armamento, há até os que defendem a primazia da táctica. Certo é que ambas estão interligadas e se influenciam mutuamente. Quando uma arma é concebida, devem ser imediatamente imaginados os sistemas que defendem o utilizador da mesma. A não ser que o desespero impere. Não sabemos se os designers alemães da bomba voadora V-2, considerado o primeiro míssil balístico da história, estavam conscientes das consequências do seu uso, mas podemos alvitrar que os decisores políticos estavam desesperados. O que se sabe é que os ingleses estimaram em 12.000 os salvos de artilharia antiaérea para abater apenas uma única V-2 (6). As ideias inglesas foram aproveitadas pelos americanos baseadas na ideia de um míssil antimíssil, além do bombardeamento ou ocupação dos locais de lançamento.

No caso da defesa nuclear, os primeiros sistemas projectados dirigiam-se, como é natural, às plataformas lançadoras. Paradigmático foi o desenvolvimento do projecto NIKE AJAX, que ambicionava abater uma formação de bombardeiros soviéticos, supostamente com armamento nuclear, com a utilização de uma ogiva nuclear num míssil antiaéreo. Este programa incorporou tecnologia desenvolvida na Segunda Guerra Mundial, designadamente o voo a altitudes elevadas, os foguetes e os projécteis balísticos de longo alcance, entre outros. O projecto deu origem ao primeiro míssil antiaéreo de longo alcance, que foi entregue ao exército americano para emprego operacional a partir do ano de 1954 (7). Um ano antes, a URSS tinha feito explodir a primeira bomba termonuclear, a Sloika, cuja paternidade é atribuída a Andrei Sakharov (8). De notar, também, o primeiro abate de um míssil balístico por forças americanas, ocorrido em Julho de 1962, no atol Kwajalein, nas ilhas Marshall, em que um ICBM foi destruído pelo sistema NIKE ZEUS (9). Claro que o ano de 1962 é o ano mais emblemático da refrega nuclear americano-soviética, por ser o ano da crise dos mísseis de Cuba. Curiosamente, o relógio da associação dos cientistas atómicos, que mede o tempo que falta para o Apocalipse, não regista qualquer alteração nesse ano (10).

Como não podia deixar de ser, também os russos estudaram o problema da defesa antimíssil. Desenvolveram os modelos teóricos nos primeiros anos a seguir à Segunda Guerra Mundial, que deram origem ao sistema conhecido por S-25 Berkut (SA-1 GUILD, para a NATO), em 1953. A estimativa era então que seriam precisos dez interceptores para abater um míssil balístico, o que tornava o sistema impróprio para o caso de um ataque de saturação. Entre outros sistemas que foram testados, realça-se o design conhecido por ABM Sistema A, datado de 1959, que incluía estações radares avançadas, estações de guiamento, de comando e os próprios lançadores. A primeira intercepção de um ABM com sucesso por este sistema foi em 1960, dois anos antes dos americanos. Seguiu-se o A-35, um sistema com a possibilidade de ser totalmente automatizado, para a defesa de Moscovo, que usava ogivas termonucleares contra os mísseis atacantes e que ficou operacional em 1977 (11). O sistema actual, o mencionado A-135, foi desenhado no fim do período soviético e entrou ao serviço já sob comando da Federação Russa, em 1995 (12).

 

As três eras nucleares

A caracterização da Primeira Era Nuclear pode resumir-se a uma palavra: dissuasão. A literatura prolixa sobre dissuasão nuclear discutia exaustivamente todas as opções. No contexto da Guerra Fria e na perspectiva ocidental, dissuasão significava simplesmente tornar inviável uma invasão da Europa Ocidental por parte da URSS, mercê dos danos infligidos por um ataque nuclear aliado. Era a estratégia contra valores (a algo que os líderes soviéticos muito prezavam, a sua terra). Uma defesa antimíssil tem obrigatoriamente de ser incluída numa estratégia contra forças (unidades militares e nós de comando e controlo) e desde logo ligada à táctica. O emprego táctico de sistemas militares só se torna eficaz quando existe uma tecnologia suficientemente madura para o efeito. Ao longo de décadas foram sendo desenvolvidos diversos subsistemas que tornam agora possível aos americanos projectar um sistema [dito] global de defesa contra mísseis balísticos. Porque é que os outros contendores não hão-de pensar no mesmo? É óbvio que qualquer país que detenha uma espada nuclear está também a pensar no escudo. A diferença está na tecnologia (13) de que uns dispõem, para já, e outros não.

O fim da URSS provocou o colapso das forças armadas soviéticas no plano onde eram verdadeiramente superiores às ocidentais, ou seja, no armamento convencional. Esta superioridade permitia à União Soviética adoptar uma estratégia relativamente às forças nucleares que negava o seu uso em primeiro lugar, a que se opunha uma estratégia nuclear ocidental de retaliação em massa. A Rússia, enquanto herdeira da posição estratégica da URSS, abandonou esta política em 1993, em resultado, por um lado, do sentimento de ameaça provocado pelas operações da Aliança Atlântica nos Balcãs, na década de noventa, e, por outro, pela fraqueza das suas forças convencionais (14). Portanto, a missão dos arsenais nucleares de um lado e de outro da antiga cortina de ferro inverteram-se com o fim da Guerra Fria. Os EUA resolvem ou tentam resolver os seus conflitos através de meios convencionais, mantendo o armamento nuclear para a eventualidade de uma escalada. A Rússia reviu os seus documentos estratégicos no ano 2000, especialmente devido ao sucesso da campanha da NATO designada por Allied Force , no Kosovo, entre Março e Junho de 1999. No que diz respeito aos arsenais nucleares, a doutrina militar russa atribuiu, na prática, uma nova missão àquelas forças: dissuasão, na eventualidade de guerras de mais baixa escala (regionais) que não colocassem em perigo a existência da Rússia ou a sua soberania. Este uso estava relacionado com a visão das ameaças que imperavam sobre a Federação Russa, designadamente: «o desejo de alguns estados e grupos interestaduais em diminuir o papel dos mecanismos de segurança internacional existentes, em primeiro lugar das Nações Unidas e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa»; «o fortalecimento dos blocos político-militares e as alianças, em primeiro lugar, o alargamento a Leste da NATO»; «a possibilidade de bases militares estrangeiras e largos contingentes militares surgirem nas proximidades das fronteiras russas»; e a «transição da NATO para a prática de operações fora da sua área de responsabilidade tradicional, sem a autorização do Conselho de Segurança da Nações Unidas» (15).

A teoria da dissuasão podia explicar o relacionamento entre os dois principais contendores da Guerra Fria, mas é inútil quando se trata de explicar o relacionamento com actores irracionais como grupos suicidas ou estados instáveis que têm ou procuram ter armamento nuclear. Nesta Segunda Era Nuclear, alguns dos princípios estabelecidos durante a primeira podem não ser válidos, nomeadamente o de que as potências nucleares sejam «razoáveis», que as defesas antimíssil prejudiquem a dissuasão e que o controlo de armamento e os tratados de desarmamento sejam os melhores meios para contrariar a proliferação (16).

A Terceira Era Nuclear será marcada pelo uso eficaz das defesas antimísseis pela primeira vez na história, tornando a arma nuclear uma arma «normal». Assustador quanto baste, este cenário sempre é mais esperançoso para a vida humana na Terra do que o prometido Armagedão Americano-Soviético.

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1 - A razão desta classificação é simples: são os únicos estados que têm a famosa tríade das forças nucleares estratégicas: Submarine Launched Ballistic Missiles (SLBM), Intercontinental Ballistic Missiles (ICBM) e bombardeiros de longo alcance capazes de lançar armamento nuclear. A China está a tornar-se mais capaz do que a Rússia nos SLBM, tem um programa credível de ICBM, mas, no que respeita a bombardeiros, nada consta. Uma tentativa de comprar Tu-22M BACKFIRE à Rússia causou celeuma, em 1993, pois esta aeronave, com o seu alcance de 4.000 km, alteraria o equilíbrio de forças de toda a Ásia.

2 - Cf. http://www.fas.org/blog/ssp/2008/04/russian-nuclear-missile-submarine-patrols-decrease-again.php [acedido a 10 de Agosto de 2008].

3 - Apesar do anúncio da modernização do Tupolev Tu-160 Blackjack, em 2007, não há nada no arsenal russo que se assemelhe à tecnologia americana stealth (aviões «invisíveis» ao radar) que está aplicada a aeronaves como o F-117 Nighthawk, B-2 Spirit, F-22 Raptor e F-35 Lightning II.

4 - Cf. http://www.heritage.org/Research/NationalSecurity/wm1493.cfm [acedido a 10 de Agosto de 2008].

5 - F. http://www.missilethreat.com/missiledefensesystems/id.7/system_detail.asp [acedido a 10 de Agosto de 2008].

6 - Cf. Kaplan, Lawrence (2006), Missile Defense: The First Sixty Years , MDA, disponível em http://www.mda.mil/mdalink/pdf/first60.pdf [acedido a 10 de Agosto de 2008].

7 - Cf. sítio oficial http://www.redstone.army.mil/history/nikesite/nikeajax.html [acedido a 9 de Agosto de 2008].

8 - Para mais detalhes do programa nuclear soviético, consultar:
http://nuclearweaponarchive.org/Russia/Sovwpnprog.html [acedido a 9 de Agosto de 2008].

9 - Um sistema multivalente que servia, também, como arma anti-satélite.

10 - Cf. em http://www.thebulletin.org/content/doomsday-clock/timeline [acedido a 10 de Agosto de 2008].

11 - Dados obtidos em http://www.fas.org/spp/starwars/program/soviet/990600-bmd-rus.htm [acedido a 10 de Agosto de 2008].

12 - Cf. http://www.globalsecurity.org/wmd/world/russia/abm3.htm [acedido a 10 de Agosto de 2008].

13 - A tecnologia que permite arquitectar um sistema de defesa antimíssil balístico à escala global, com componentes tão variadas como radares phased array , armas de energia dirigida, sensores espaciais e lasers , está agora madura e permite as tais implementações. Se, por qualquer razão, não for na Polónia nem na República Checa, será noutros locais. Ilustrativo da nossa tese é a transferência para o Japão (curiosamente o último país contra o qual foi declarada guerra, a 8 de Agosto de 1945, pela URSS, dois dias depois do primeiro uso de uma arma atómica) da tecnologia que permitiu a este país conduzir uma experiência de intercepção de um míssil balístico, a 17 de Dezembro de 2007, ao mesmo tempo que insiste na negação do uso das armas nucleares para fins domésticos.

14 - Este argumento deve-se a Nikolai Sokov e um estudo aprofundado da doutrina nuclear russa encontra-se disponível em http://www.nti.org/e_research/e3_55a.html [acedido a 10 de Agosto de 2008].

15 - Id.

16 - Segundo Walton e Gray (2007).

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* António Eugénio

Licenciado em Gestão. Pós-graduado em Estudos da Paz e da Guerra nas Novas Relações Internacionais e Mestre em Gestão de Sistemas de Informação. Tenente-Coronel da Força Aérea Portuguesa. Professor da Área de Ensino de Estratégia do Instituto de Estudos Superiores Militares.

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Referências bibliográficas

MEARSHEIMER, John J., 1990, «Why We Will Soon Miss The Cold War», The Atlantic Monthly, Agosto 1990, 266, 2, pp. 35-50.

WALTON, C. Dale e GRAY, Colin S., 2007, «The Second Nuclear Age: Nuclear Weapons in the Twenty-first Century», in Baylis, John et al. (2007), Strategy in the Contemporary World, 2nd ed., Oxford: Oxford Universityn Press, ISBN 978-0-19-928978-3.

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