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- JANUS 2009 -



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A pandemia VIH

Henrique Barros *

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Internacionalmente, a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH) e a forma mais grave de evolução da infecção, expressa na síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA) é responsável por um número crescente de casos de doença e de morte, marcado por uma modificação na sua geografia física (predominantemente crescente no sul) e humana (nas populações mais pobres).

 

A dimensão epidemiológica do problema

Embora seja complexo estimar-se a extensão da pandemia – que as recentes revisões em baixa deixaram evidente – cerca de 40 milhões de pessoas vivem no mundo com infecção por VIH (cerca de 25 milhões na África ao sul do Sahara), sendo 2,3 milhões crianças com menos de 15 anos. Em 2006, por exemplo, terão ocorrido mais de 4 milhões de novas infecções, 500.000 das quais em crianças com menos de 15 anos. Note-se que, se durante os 20 anos iniciais da infecção, no total acumulado de casos, as crianças representavam cerca de 6%, agora quando dispomos de meios e estratégias preventivas bem mais eficientes, e que devíamos saber e poder usar, mais de 12% dos novos casos de infecção surgiram em crianças. Ainda no ano de 2006, estimaram-se cerca de 3 milhões de óbitos por infecção VIH, dos quais cerca de 10% ocorreram antes dos 15 anos de idade. Na Europa, o VIH é um dos principais agents de doenças transmissíveis e observa-se até uma tendência para o aumento de número de novos casos, em países com o Reino Unido ou a Alemanha. Estima-se que 720.000 pessoas vivam com a infecção na Europa Ocidental e Central, e que, por ano, mais de 20.000 indivíduos sejam infectados. Na Europa de Leste, vivem com a infecção VIH cerca de 1,5 milhões de pessoas e mais de 200.000 ficaram infectadas em 2005. Nalguns casos, como aconteceu num dos estados bálticos, a epidemia toma a proporção de um surto epidémico desenvolvido em associação com a partilha de material de injecção em reclusos, mas a forma mais prevalente de transmissão da infecção, na Rússia e em repúblicas da antiga União Soviética associa-se ao consumo de drogas entre estudantes ou adultos jovens que trabalham, num padrão diferente daquele que marcou a epidemia entre utilizadores de drogas injectadas nos países do sul da Europa.

A comparação com outras causas de morte também evitáveis é uma outra forma de medir o peso da infecção. Assim, desde 1981, nos Estados Unidos da América, a SIDA foi responsável pela morte de mais de meio milhão de pessoas, sobretudo adultos jovens, um número superior ao total de mortes em combate no conjunto de guerras em que os americanos participaram durante o século XX!

 

A infecção VIH e a sociedade

Além da importância quantificável da infecção, medida em limitações na qualidade de vida e no seu usufruto, ou como vidas perdidas, deve ser considerado o relevo da infecção enquanto fenómeno que se cruza com problemas centrais da condição humana. Nalgumas sociedades, como, por exemplo, em Moçambique, a epidemia de SIDA ameaça gravemente a própria consistência do tecido económico, educacional e a própria segurança, uma vez que as mortes ocorrem sobretudo entre adultos jovens em plena fase activa e produtiva, deixando desguarnecidas as respostas sociais e favorecendo um ciclo de pobreza e violência. Por isso, as decisões relacionadas com a infecção têm de ser tomadas tendo como referencial os direitos humanos. E tanto no que se refere à investigação biomédica ou social – em que a participação leiga e o direito à vida obrigaram a repensar os modelos de inquirição da realidade, com o desenvolvimento do que se convencionou já chamar investigação partilhada de base comunitária – quanto no que respeita às leis e normas que protegem contra a discriminação no local de trabalho, no direito a viajar ou a migrar, ou ainda combatendo a criminalização da transmissão da infecção, uma tendência crescente em países desenvolvidos e sobretudo em países em desenvolvimento, nos quais sob a justificação de combater desigualdades de género ou de poder social se perpetuam estigmas e se dificulta a organização da resposta em termos de saúde.

No centro dessa relação entre a objectividade da infecção e a subjectividade da apreensão das relações humanas, do ser-se pessoa e da intimidade das relações interpessoais, estão factos como a SIDA ser transmitida através de relações sexuais, e a sexualidade ser essencial à sobrevivência, à memória e aos afectos; ser transmitida de mãe a filho, e portanto à maternidade e à dor da transmissão materno-infantil não evitada, acrescenta-se o conflito entre o risco de ocorrer a morte da criança por desnutrição ou então mantendo o aleitamento haver transmissão do vírus através do leite materno; ou ainda haver transmissão associada à utilização de drogas, um fenómeno social e cultural gerador de emoções contraditórias, que testa os limites da tolerância. Não admiraria portanto que a infecção viesse a assumir um relevo essencial nas preocupações, no imaginário e no quotidiano das pessoas, ganhando o estatuto de fenómeno político fundamental ao qual se associaram as clivagens, os confrontos e as soluções contraditórias usuais sobretudo pela natureza transversal dos comportamentos que aumentam a probabilidade da infecção. A resposta social à SIDA trouxe um relacionamento novo entre doentes e profissionais de saúde, entre legisladores, indústria farmacêutica e sociedade civil, que mudou para sempre a tradição paternalista da relação médico-doente e que fez entrar as organizações não governamentais no palco das decisões, especialmente influenciando a agenda da investigação e da atribuição de recursos em saúde. Sabemos, recorrendo aos nossos métodos tradicionais de investigar, o onde e o quanto da infecção (com qualidade variada, reconheça-se, não sendo Portugal um bom exemplo!) mas desconhecemos essencialmente o como e o porquê. Sem isso, para o que são decididamente necessários novos caminhos, mais qualitativos, não podemos delinear estratégias eficazes de prevenção; invertendo o curso da epidemia.

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De acordo com os resultados de inquéritos de opinião, estranha-se que a infecção não seja ainda mais debatida e melhor compreendida. De facto, nos Estados Unidos da América, onde cada ano quarenta mil pessoas ficam infectadas, estão a diminuir as preocupações com a infecção. Actualmente, apenas 17% das pessoas inquiridas consideram a infecção por VIH/SIDA o «problema mais urgente da nação». Em Portugal, num inquérito realizado em 2006 a 808 adultos, foi possível verificar que apenas um quarto tinha alguma vez realizado um teste serológico de pesquisa da infecção e que as campanhas publicitárias tinham produzido pouco interesse. Curiosamente, entre migrantes – que tantas vezes são injustamente considerados como responsáveis pela importação de casos de infecção – mais de 50% dos inquiridos em Portugal já alguma vez tinha feito um teste para detectar a infecção. Sabia-se já que, entre os adultos como nos adolescentes, uma proporção elevada tinha informações e conceitos errados quanto aos modos de transmissão e que a percepção do risco estava verdadeiramente distorcida por esses erros. Daí que parece ainda predominar uma relação com a doença que lembra sobretudo os antigos temores das grandes ameaças epidémicas que as pestes de outrora constituíram para os nossos antepassados, de quem parece termos herdado as mesmas respostas irracionais. No limite, houve mesmo quem negasse a natureza infecciosa da doença ou até a sua existência, com resultados trágicos, quando a eficácia das terapêuticas farmacológicas foi preterida em favor de opções ditas naturais e baseadas em alimentos e nutrientes, como, por exemplo, na República da África do Sul. Noutros casos, as razões políticas, levaram a optar pela simples negação, como no Myanmar. Um dos membros da junta dirigente do país, o general Khin Nyunt, afirmou que «a noção de pandemia de SIDA não passa de propaganda espalhada por destruidores que querem denegrir a imagem do Myanmar onde as tradições culturais desencorajam a promiscuidade sexual». Entretanto, a infecção seguia o seu caminho assustador numa sociedade marcada pela pobreza, pela prostituição e pelo uso de drogas.

A negação (com graves consequências para qualquer estratégia preventiva que dependa da colaboração activa das pessoas implicadas) é uma forma tradicional de resposta às epidemias. Ainda recentemente, durante a epidemia de SARS, dirigentes políticos chineses o fizeram. Também por isso, em 2001, em Durban, durante um congresso internacional sobre SIDA, foi assinada uma declaração solene contra a discriminação, a estigmatização e a negação. A ONUSIDA tinha chamado a atenção para que a negação levava as pessoas a recusarem reconhecer a ameaça de um agente outrora desconhecido que obriga a mudar comportamentos íntimos durante toda a vida. Talvez mais importante, negar a infecção atrasou a resposta das comunidades e dos países. Ao evitarem confrontar-se com assuntos difíceis – o sexo comercial, o estatuto económico e social das mulheres, a separação das famílias por migração, os reclusos, o consumo de drogas injectáveis ou a desigualdade perante a educação e o acesso aos cuidados de saúde – deixaram tempo e espaço para que a infecção se transmitisse, e da concentração em populações mais vulneráveis se generalizasse como uma pandemia de dimensões até agora nunca igualadas.

As grandes preocupações sanitárias internacionais, como a malária ou a tuberculose, em que geralmente se identifica uma dimensão de transmissibilidade ou de contágio (dois conceitos que importa não confundir pois isso resulta em marcada discriminação dos doentes e em estigmatização da sua condição de saúde – e, é bom lembrá-lo, a infecção pelo VIH não é contagiosa!), eram vistas como consequência dos percursos individuais da pobreza, da iliteracia e da exclusão ou então como expressão adicional das desigualdades entre estratos sociais. No último quartel do século XX, a SIDA perturbou esta aparência de tranquilidade que permitia um convívio distante com o risco e, ao surgir como uma inesperada causa de morte, atravessando as classes sociais, ganhou a dimensão de problema fundamental da saúde pública do final do século XX.

Em oposição aos flagelos tradicionais, a SIDA foi identificada entre comunidades afluentes e por aí adquiriu uma enorme visibilidade. No entanto, sabemo-lo hoje, a infecção tinha um curso anterior que, na fase inicial da sua evolução, ocorrida lentamente em sociedades africanas, longe da atenção dos meios científicos e de comunicação, escapou ao conhecimento generalizado. Está, contudo, a fazer essa espécie de inevitável percurso de volta à pobreza e às sociedades pobres do sul. Torna-se também por essa nova distribuição espacial um factor determinante no destino das sociedades menos desenvolvidas.

 

A resposta à infecção

Dois aspectos assumem um relevo essencial na forma de responder à infecção: o acesso ao tratamento e à prevenção. Em ambos os casos, como importante porta de entrada, está a realização do teste para a infecção por VIH. Os testes para a detecção da infecção, recentemente mais acessíveis tanto no preço como no processo de utilização, permanecem ligados à necessidade de garantir confidencialidade, aconselhamento e sobretudo consentimento. O teste não é, em si, uma medida de de prevenção – há mesmo o risco de ser repetidamente feito por quem não necessita e evitado ou não disponibilizado facilmente a quem esteve em maior risco de contrair a infecção, e muito menos se justifica a sua realização meramente com finalidades epidemiológicas. Deve ser gratuito e acompanhado de uma explicação que promova opções de menor risco, ou seja, a utilização de preservativos e material de injecção não partilhado. Podem assim reforçar-se os comportamentos mais seguros e garantir que a entrada nos cuidados de saúde e o acesso ao tratamento com anti-retrovíricos ocorre numa fase da evolução da infecção que maximize as vantagens das opções disponíveis.

A terapêutica modificou extraordinariamente a história natural da infecção, interferindo na ocorrência das chamadas doenças oportunistas, prolongando a vida e alterando a probabilidade de transmitir a infecção. Por isso, o tratamento tem um papel fundamental na resposta à situação de doença individual, como estamos habituados a que aconteça na generalidade das doenças, mas também consequências para toda a comunidade, resultando na diminuição da transmissão da infecção e assim revestindo um papel essencial como utensílio de saúde pública. E isso é tão mais determinante quanto não dispomos de uma vacina.

As terapêuticas antiretrovíricas combinadas, introduzidas em meados dos anos noventa, e generalizadamente usadas nos países desenvolvidos – ainda que também nesses países haja problemas de equidade no acesso, com algumas das populações mais vulneráveis, nomeadamente os utilizadores de drogas, a terem menos probabilidade de iniciarem e continuarem a medicação – tiveram um efeito profundo no curso da infecção por VIH. O tratamento com as diferentes classes de anti-retrovíricos permitiu melhorar extraordinariamente a qualidade de vida dos doentes, fizeram avançar anos o desenvolvimento da fase de SIDA e aumentaram a sobrevida dos doentes com infecção. A evolução dos esquemas posológicos, em direcção a praticamente um comprimido por dia, acrescenta ainda sobretudo comodidade à vida dos doentes. Está-se ainda em busca da melhor forma de agir: se há consensos quanto ao momento de iniciar o tratamento ou sobre a forma como o fazer, esses consensos modificam-se rapidamente, discute-se ainda muito em torno dos melhores esquemas terapêuticos e há bem pouco tempo se passou de um ideal de começar «cedo e em força» para uma atitude mais expectante e experimentou-se até (sem sucesso, diga-se!) interromper o tratamento perante uma situação estável, ao contrário do paradigma que prevalece de nunca parar depois de iniciar tratamento. De novo se favorece o início mais precoce do tratamento, numa fase em que o número de linfócitos e, portanto, a qualidade da resposta imune será mais adequada. Dessa forma espera-se conseguir repor as defesas imunitárias num nível mais próximo do que se esperaria se a infecção não tivesse ocorrido e assegurar uma mais rápida e sustentada supressão da carga viral, um factor adicional de grande importância para reduzir a possibilidade de transmissão.

Nos anos em frente, além de promover a avaliação do estado real dos compromissos e da extensão da aplicação prática das declarações internacionais – como a declaração de Dublin, cujo processo de monitorização se iniciou recentemente por intermédio da Organização Mundial de Saúde – importa perceber definitivamente que a resposta à pandemia só é possível se os países mais pobres forem ajudados a construir um sistema sustentado de cuidados de saúde, reconhecendo a mudança de paradigma: o apoio internacional ao desenvolvimento não pode ver a infecção por VIH como mais uma dessas ameaças agudas que pedem resposta urgente e limitada mas como uma doença crónica, devastadora, que não se pode deixar no esquecimento como em larga medida aconteceu com a tuberculose. E isso também porque as duas infecções, ao ocorreram em conjunto, são de uma enorme gravidade individual e social.

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Informação Complementar

A SIDA e a nova condição de doença crónica

A partir de 1996, com a introdução generalizada de terapêutica anti-retrovírica altamente eficaz deu-se a viragem no curso individual e social da infecção, conhecido como a passagem da fase «sentença de morte» para uma situação de doença crónica, ainda que sem cura ou prevenção vacinal. Desde então, o essencial passou a ser garantir o acesso universal a medicação a um preço admissível, verificar o respeito pelos direitos humanos – contrariando as opções dos países que impedem a mobilidade de pessoas que vivem com a infecção – como a China, a Coreia do Sul ou os Estados Unidos da América, ou que criminalizam a transmissão do vírus. Finalmente, promover a participação das populações mais vulneráveis no desenho das estratégias de prevenção, no ultrapassar das barreiras aos cuidados de saúde e no combate à discriminação.

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* Henrique Barros

Licenciado em Medicina. Professor Catedrático de Epidemiologia e Director do Serviço de Higiene e Epidemiologia da FMUP. Editor-associado do European Journal of Epidemiology. Membro do conselho editorial das revistas BMC Public Health, Cadernos de Saúde Pública e Journal of Epidemiology and Community Health. Actual Coordenador Nacional para a Infecção VIH/Sida.

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