Pesquisar

  Janus OnLine - Página inicial
  Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa 
 
 
Onde estou: Janus 2009> Índice de artigos > Aliança de Civilizações: um caminho possível? > O processo da Aliança de Civilizações > [ As críticas ao projecto de Aliança de Civilizações ]  
- JANUS 2009 -



Descarregar texto Descarregar (download) texto Imprimir versão amigável Imprimir versão amigável

As críticas ao projecto de Aliança de Civilizações

Luís Moita *

separador

Sendo como é um projecto político, o processo da Aliança de Civilizações suscita naturalmente críticas de vários tons e com diversos fundamentos. Um trabalho como o nosso, que ambiciona atingir padrões científicos de conhecimento, deve saber escutar essas críticas, analisá-las, interpretá-las em si mesmas e no seu enquadramento, tanto mais quanto elas permitem identificar pontos de vista não apenas opostos como por vezes extremados.

Percorrendo o panorama das críticas suscitadas, vemos que alguns dos analistas mais qualificados, mesmo estando de acordo com os objectivos do projecto da Aliança de Civilizações e atribuindo-lhe validade política, manifestam reservas quanto aos termos usados para o designar. Na sua opinião, a palavra «aliança» seria despropositada, como o seria, ainda antes e logo à partida, a expressão «choque de civilizações», na medida em que este não parece ter consistência histórica nem fundamento real, existindo antes um «choque de percepções»: em confronto estão, não tanto realidades sociais ou «civilizacionais», mas essencialmente sistemas de representação, isto é, o modo como cada uma das áreas percepciona a outra. Remete-se assim o conflito para a esfera simbólica, o que não significa que seja ilusória, nem sequer imune à violência.

Para um certo número de comentadores, a expressão «Aliança de Civilizações» não é especialmente feliz. Antes de mais pelo carácter considerado nebuloso do termo «civilizações». Estas não são entidades substantivas, o seu conteúdo é impreciso, as suas fronteiras ou quaisquer tentativas de demarcação são discutíveis. E podem as civilizações estabelecer «alianças»? Quem as representaria para o efeito? A celebração de alianças é atributo de pessoas, de empresas ou de Estados que entre si contratualizam determinados entendimentos. Neste caso, quais os sujeitos da «aliança»? Ironicamente poderia dizer-se: as civilizações não têm política externa...

Uma das dúvidas que por vezes se coloca refere-se ao âmbito deste processo. Admitindo a pertinência da expressão, que civilizações estão abrangidas? As oito ou nove civilizações descritas por Huntington? Ou então, mais realisticamente, as duas agora reputadas como antagónicas, a «ocidental» e a «islâmica»? A verdade é que o presidente do governo espanhol, ao apresentar a sua proposta nas Nações Unidas, apenas se reporta a estas duas, parecendo circunscrever a aliança ao perímetro da área mediterrânea, onde o «Ocidente» se confronta face a face com o «mundo islâmico».

Isto suscita um problema mais interessante que é o de saber se a iniciativa espanhola teria como única preocupação a segurança face à ameaça de terrorismo islamista ou se esta dimensão se enquadraria num objectivo mais global, envolvendo as relações intercivilizacionais no seu conjunto. Assim, o processo da Aliança de Civilizações também se interessaria pelas relações com o Extremo Oriente? Ou entre, por exemplo, o mundo eslavo-ortodoxo e o hemisfério latino-americano? Tal sequência de dúvidas, todavia, é mais teórica do que prática, pois pode dar-se como certo que o entendimento corrente leva a identificar o confronto central que está em causa com o conflito que opõe os mundos ocidental e islâmico, reputado, com razão ou sem ela, como a contradição dominante do mundo contemporâneo.

 

Controvérsias espanholas

Como se poderia prever, as maiores críticas ao processo da Aliança de Civilizações vêm dos meios políticos da oposição espanhola, provocando divisões ainda mais acentuadas do que as que se verificam na Turquia. O contexto é bem conhecido. Em 11 de Março de 2004, a Espanha sofre o mais duro atentado terrorista da sua história, na estação da Atocha, em Madrid. Daí a dias, as eleições gerais dão a vitória ao PSOE. Eleito Presidente do Conselho, José Luís Rodriguez Zapatero ordena a retirada das tropas espanholas do Iraque e ensaia um processo de diálogo político com a ETA, ao mesmo tempo que propõe ao Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, que adopte como sua a iniciativa da Aliança de Civilizações. Tudo isto tem como resultado enfurecer a direita espanhola, que vê nestas opções a completa desautorização da política de José Maria Aznar, o lider do PP, que personificava a linha dura da Espanha na «guerra contra o terrorismo», tanto internamente contra a ETA, como externamente na invasão do Iraque. Para os seus críticos, Rodriguez Zapatero, ao propor o diálogo, estaria a renunciar ao necessário combate.

Uma boa parte das objecções dirigidas contra a ideia de Aliança de Civilizações deve assim entender-se no quadro da luta política espanhola, atingindo por vezes formas de violência verbal só explicável nesse contexto. Algumas dessas críticas revelam-se em grande medida inconsistentes, como é, por exemplo, aquela que atribui a Rodriguez Zapatero o erro de plagiar a iniciativa do presidente iraniano Kathami (autor da proposta do Diálogo de Civilizações – ver outro artigo deste capítulo), sem que a crítica pareça compreender a diferença de conteúdos e de alcance das duas propostas.

Com frequência, o presidente do governo espanhol é acusado de, com esta proposta, fazer o jogo dos regimes teocráticos e tirânicos do mundo islâmico, promovidos indevidamente a parceiros de um diálogo sem condições prévias. E, curiosamente, estas acusações surgem mesmo dos círculos da oposição iraniana, por parte daqueles grupos defensores de um secularismo radical em confronto com o regime dos mollahs : a Aliança de Civilizações seria uma espécie de censurável legitimação do islamismo político ou mesmo algo de parecido com um «golpe de Estado» contra o princípio da laicidade.

Para outros, analogamente, este processo corresponderia a uma cedência da Europa face ao islamismo turco, cedência que o governo da Turquia, levado por alegado oportunismo, rapidamente aproveitou, no seu desejo de integrar a todo o custo a União Europeia.

Topo Seta de topo

Em contraste com este interesse hispano-turco, os detractores da Aliança de Civilizações sublinham o desinteresse dos grandes centros de decisão internacionais, incluindo os EUA e a Rússia, a par de uma tímida reacção da UE. Pior ainda, a recente iniciativa (em 13 de Julho de 2008) do presidente francês Sarkoz ­ y no sentido da «União para o Mediterrâneo» viria esvaziar ainda mais a proposta espanhola e o próprio processo de Barcelona para o Mediterrâneo, onde a Espanha tem ocupado um lugar de primeiro plano (apesar da concessão de designar formalmente o novo projecto como «Processo de Barcelona: União para o Mediterrâneo»...). Neste terreno, os factos dão alguma razão aos críticos. A cena internacional tem assistido a uma sequência de iniciativas onde o Mediterrâneo aparece como linha de fractura ou como eixo central em torno do qual se polarizam contradições que se tentam superar graças a um voluntarismo político. A acrescentar aos vários projectos referenciados – Processo de Barcelona (Euromed), Aliança de Civilizações, União para o Mediterrâneo – os Estados Unidos lançaram, em Novembro de 2003, o tema do Grande Médio Oriente, de fronteiras ainda mais alargadas, definindo-o como espaço de disseminação de democracias. Pode pensar-se que a sobreposição destas iniciativas tem como resultado a fragilização da iniciativa política espanhola.

A mais surpreendente e porventura a menos sustentável destas azedas críticas ao processo de Aliança de Civilizações é a que lhe atribui a inclinação para o relativismo moral, alegando mesmo que põe em causa a universalidade dos direitos humanos. Para certos críticos, o projecto assumido pela ONU estaria em contradição com os princípios da comunidade internacional por fazer a defesa da diversidade cultural e partir do suposto princípio de que todas as culturas se equivalem. A essa luz, seriam toleráveis todos os atentados aos direitos humanos quando legitimados, justamente, pelas diferenças culturais. O multiculturalismo seria assim uma demonstração de fraqueza e quem preconiza o diálogo intercultural estaria a capitular perante regimes tirânicos do mundo islâmico e perante práticas indefensáveis das comunidades muçulmanas na Europa. Eis uma argumentação bem pouco convincente, já que não é crível que tais alegados princípios estejam subjacentes à proposta da Aliança de Civilizações, nem se vê como o diálogo intercultural poria em causa a universalidade dos direitos humanos.

 

Uma crítica francesa

Com maior subtileza e outra consistência, também de França algumas vozes se levantam para criticar o processo que temos sob análise, mais concretamente o do diálogo de civilizações. É o caso do livro de Régis Debray, um político sempre original e algo desconcertante, que considera esse diálogo como um dos mitos contemporâneos ( Un mythe contemporain: le dialogue des civilisations , Paris, 2007: CNRS Éditions). Convicto de que se mascaram conflitos de interesses geo-económicos com as vestes de confrontações civilizacionais, o autor pergunta se «depois da falecida “religião ópio do povo”, não se deverá considerar amanhã a “teologia civil do diálogo” como o ópio das elites?» (p. 13). De qualquer modo, considera que o século XIX foi marcado pelas tensões no âmbito do factor económico, o século XX liberal pelo político e que, possivelmente, este nosso século será assinalado pelas contradições culturais, englobando a dimensão religiosa.

Todavia, para Régis Debray, é ilusória a possibilidade de um diálogo entre civilizações, porque justamente a matriz cultural é lugar de inevitáveis confrontos. Em contraste com a tecno-economia contemporânea cuja própria natureza implica universalização, as identidades culturais significam demarcações inevitavelmente antagónicas. Enquanto a técnica une ao produzir objectos partilháveis, «a cultura fracciona a espécie humana em personalidades não intercambiáveis» (p. 30).

Daí que as áreas civilizacionais não possam ser espaços de confluência e de harmonia. Pelo contrário, as identidades afirmam-se por oposição. O diálogo de civilizações perde sentido ao pretender o entendimento entre coisas irredutíveis. Temos por isso de nos conformar com o facto de a globalização tecno-económica conviver com a inevitável «balcanização político-cultural» (p. 51).

Sustentável esta tese de Régis Debray? Dificilmente. As identidades culturais não resultam apenas do confronto com os opostos mas também das permutas com os diferentes. As civilizações não parecem ter fronteiras irredutíveis e podem ser lugares de tolerância e intercâmbio positivo entre sociedades abertas.

separador

Topo Seta de topo

Informação Complementar

As violentas críticas de opositores espanhóis

O GEES – Grupo de Estudos Estratégicos – foi fundado em 1987, ligado ao Partido Popular Espanhol. Publica notas on line intituladas «Análisis», e uma delas, n.º 77 de 26 Março de 2005, é um violento artigo de Rafael L. Bardají, que também pertence à direcção do Real Instituto Elcano, um dos mais fortes centros espanhóis de reflexão sobre questões internacionais, igualmente com grande influência do PP. O texto retoma uma conferência pronunciada em 29 de Janeiro de 2005. Depois de recapitular a iniciativa Zapatero e de inventariar os seus apoios, Bardají escreve uma das mais violentas diatribes contra a proposta de José Luis Rodríguez Zapatero:

«Apoiar o conceito de Aliança de Civilizações seria um gravíssimo erro já que supõe renegar a visão, a atitude e as políticas defendidas no período do governo do PP na luta contra o terrorismo.

A iniciativa de Zapatero explica-se em parte pela sua necessidade de reconhecimento internacional mas, sobretudo, sublinha a concepção de que para lutar contra o terror é um grave erro recorrer ao uso da força, pois o importante é compreender as causas do terrorismo e atacá-las através do diálogo e da promoção da cultura. Portanto:

1) Trata-se de uma iniciativa para maior glória de Zapatero e do seu governo, não de Espanha e muito menos de todos os espanhóis [...].

2) Trata-se de uma iniciativa que busca condenar a política dos anteriores governos em matéria anti-terrorista, com especial ênfase nas intervenções exteriores como a do Iraque [...].

3) Parte de uma experiência prévia que foi um rotundo fracasso; não costuma ser dito, mas a proposta de Zapatero é um puro plágio da que lançou Khatami em 1988, perante o mesmo fórum [...]. Só que em vez de aliança, Khatami empregou o termo Diálogo de civilizações [...].

4) A proposta parte de uma posição equivocada e perigosa. A Aliança [...] é uma posição absolutamente relativista: os nossos valores não têm de ser universais e devemos respeitar os dos outros, mesmo que sejam nossos inimigos. Na Aliança fica claro o pensamento de Zapatero sobre o terrorismo islâmico: não é o ódio aos valores ocidentais, é a incultura e a pobreza a causa do terror; ajudando a superar estes factores, tudo se poderá resolver [...].

5) Existem alternativas que produzem mais segurança e bem-estar; desde a invasão do Iraque, o presidente norte-americano não se cansou de repetir que a falta de liberdade é a causa de todos os males que afligem o mundo árabe e do terrorismo islamista [...]. A tirania combate-se com a expansão da democracia, não com o diálogo com os tiranos.»

No mesmo sentido, Florentino Portero, secretário-geral do mesmo Grupo de Estudios Estratégicos, também ligado à FAES – Fundación para el Análisis y los Estudios Sociales, fundada e presidida por José Maria Aznar, denuncia a Aliança das Civilizações atribuindo à política exterior espanhola uma sequência de pressupostos que dificilmente se confirmam:

«A Aliança implica:

1. Recusa da força nas relações internacionais.

2. Reconhecimento da legitimidade dos governos árabes, seja qual for a sua política, na base de que cada civilização tem um próprio modelo de desenvolvimento, mesmo que isso implique violação dos direitos humanos.

3. Disposição a entendimentos com qualquer outro estado, em coerência com as clássicas políticas de apaziguamento. Os casos de proliferação de armas de destruição massiça não devem ser objecto de sanções nem de procediemntos diplomáticos que levem ao adensamento da tensão e, se for o caso, ao uso da força [...].

4. Espanha está alinhada com aqueles outros países dispostos a bloquear as acções dos Estados Unidos, exercendo um contra-poder. Existe portanto a clara disposição de enterrar o vínculo transatlântico e de esquecer a ideia de que as democracias devem unir-se contra as ameaças dos seus inimigos. Pelo contrário, a Espanha empenha-se em pressionar a Europa no sentido de um sistema de alianças com estados não democráticos ou antidemocráticos, face à ameaça principal representada pelos Estados Unidos e pela globalização» (in Alianza de Civilizaciones: La democracia como amenaza).

 

Civilizados e incivilizados?

Enquanto em Madrid decorria a I Fórum Mundial da Aliança de Civilizações, o respeitável jornal La Vanguardia , de 16 de Janeiro de 2008, publicava um artigo da conhecida jornalista catalã Pilar Rahola, «Alianza, de qué?», com um ataque cerrado ao presidente do governo espanhol: «Quando Zapatero, em pleno debate sobre o terrorismo islamista, propõe a aliança e sugere como interlocutores alguns dos mais notáveis tiranos do mundo muçulmano cria um equívoco extremamente perigoso e muito injusto para os que lutam, no interior do islão, pela liberdade; por isso, a sua aliança tem muito de perverso, muito de paternalista e tudo de ineficaz». A razão de fundo para esta crítica encontra-se na concepção antes expressa: «[...] não se trata de choque, nem de aliança, entre outras coisas porque não existe nenhum contraste de civilizações. Existe a civilização – que entende o ser humano como livre – e aqueles que querem manter os seus cidadãos, escudados em desculpas religiosas ou ideológicas, na pura barbárie [...], quer dizer, a anti-civilização». Deste modo se anula o próprio antagonismo de Huntington, já que o confronto (como também o diálogo...) não se daria entre civilizações, mas entre civilizados e incivilizados.

Esta mesma contraposição tinha sido assinalada por Shaun Riordan, um britânico formado em Cambridge e com 16 anos de experiência diplomática, que alerta para os riscos do processo da Aliança das Civilizaçoes. Antes de mais, «a Aliança corre o risco de se converter numa espécie de tertúlia internacional em que os “peritos” trocam entre si discursos intermináveis sobre as diferenças entre as civilizações e os seus valores»; corre ainda o risco adicional de «enfatizar as diferenças entre civilizações e valores em vez de se centrar no que têm de comum»; mas sobretudo «existe o risco de a Aliança das Civilizações se converter numa “Aliança dos Civilizados” contra os “bárbaros”. Esta tendência é já visível. Dado que o verdadeiro conflito está dentro das civilizações e não entre elas, quer dizer, entre o secularismo e o fundamentalismo e entre o modernismo e o tradicionalismo, talvez seja inevitável que a Aliança se converta num clube de autoproclamados modernistas sábios e razoáveis contra os fundamentalistas muçulmanos» (ARI, 20/4/2006).

separador

* Luís Moita

Vice-reitor da Universidade Autónoma de Lisboa.

Topo Seta de topo

 

- Arquivo -

Clique na edição que quer consultar
(anos 1997 a 2008)
_____________

2008

2007

2006

2005

2004

2003

2002

2001

1999-2000

1998

1998 Supl. Forças Armadas

1997