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- JANUS 2009 -



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Existe uma civilização hindu?

Luís Filipe Castro Mendes *

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A ideia exposta por Samuel Huntington no seu famoso livro sobre o choque das civilizações levou aqueles que se não revêem em tão particular aberração spengleriana e que estão bem conscientes das consequências políticas nefastas que dela decorrem a conceberem uma outra ideia, na linha dos ideais de emancipação do Iluminismo: a Aliança das Civilizações!

Partilho as dúvidas de Amartya Sen: não será um erro aceitarmos a problemática do adversário, irmos à luta no seu próprio terreno? Será legítimo falarmos em «civilizações» como entidades estanques, comunidades de valores reivindicando a sua identidade sob perpétua ameaça? Veja-se o mais recente livro de Huntington, que alerta sobre a ameaça colocada aos próprios fundamentos identitários dos Estados Unidos pelo crescimento exponencial da sua população hispânica.

A Índia obriga-nos ao mesmo tempo a confrontar-nos muito directamente com as questões, da heterogeneidade do tecido cultural, étnico, religioso e linguístico de que é composta, e a pôr em causa a noção de civilização como comunidade fechada nas suas tradições e rituais (para usar a expressão de Varadarajan). O paradoxo da Índia é cristalino e acaba por ser aquele mesmo com que as nossas próprias sociedades se confrontam hoje: é evidente (é um dado da experiência, um facto do mundo da vida) que existe uma civilização hindu; mas é uma condição de sobrevivência da própria Índia enquanto comunidade política que essa civilização se não considere a si própria como entidade exclusiva e redutora, mas se entenda antes como uma matriz de abertura às mais diferentes influências, misturas e recomposições – e o mais extraordinário é que já há muitos séculos que a Índia sabe isso!

Em 1581, o imperador Mogol Akbar chamou os jesuítas de Goa à sua corte para lhe ensinarem a Fé de Cristo. Entusiasmados, na mira de uma extraordinária conversão, os bons padres acorreram a Fatehpur Sikri, onde, numa tenda especialmente montada para o efeito (pensa-se, porque não há rastos do edifício) sacerdotes de todas as diferentes crenças do Império discutiam àcerca da verdadeira religião, dada a convicção de Akbar que seria possível construir uma religião sincrética que cimentasse o seu império de sunitas, xiitas, hinduístas das mais diferentes seitas (incluindo uma que professava o ateísmo!), budistas, jainistas, judeus e cristãos! Desiludiram-se os padres, mas Monserrate permaneceu na corte do Grão Mogol durante dez anos, observando mais tarde, com amargura tridentina, que «ao autorizar os seus súbditos a seguir qualquer religião, o Imperador Akbar estava na realidade a ofender todas as religiões». O mesmo pensariam seguramente os devotos teólogos islâmicos! O imperador era influenciado pelas ideias subversivas do filósofo Ibn Al Arabi, que considerava que, sendo o mundo uma ilusão aos olhos de Deus, todas as manifestações religiosas humanas seriam igualmente ilusões. E Akbar levava a sua abertura em matéria religiosa ao ponto de se ter casado (abençoada poligamia!) com diferentes mulheres de todas e cada uma das religiões do Império, o que certamente representou uma das mais profundas homenagens à liberdade da Fé em toda a história da humanidade!...

 

Do Império Mogol à União Indiana

O Império Mogol começou a desagregar-se quando o pio imperador Aurangzeb resolveu finalmente começar a perseguir todos os infiéis não islâmicos (deixando assim este império de ofender as religiões com a sua indiferença!), o que levou à revolta dos Maratas, ao fugaz império hindu de Shivaji e à desagregação de qualquer projecto de unidade política do subcontinente. Em 1902, já sob o pleno jugo do British Raj, queixava-se Rabindranath Tagore de que:

«The History of India that we read in schools and memorize to pass examinations is the account of a horrible dream – a nightmare through which India has passed. It tells of unknown people from no one knows where entering India; bloody wars breaking out […]; one set of marauders passing away with another coming in to take its place; Pathan and Mughal, Portuguese, French and English – all helping to add to the nightmarish confusion.”

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Existe em Nova Deli um grandioso templo hindu chamado Ashkardam: nele aprendemos, através de uma excelente visita guiada, que a Índia de há 3.000 anos possuía já todas as conquistas da ciência moderna (perdidas, é claro, com a subsequente invasão de todos aqueles predadores muçulmanos e cristãos). Todas as comunidades imaginam o seu passado, mas a desmistificação dos imaginários é parte essencial do pensamento crítico, que não falta na Índia. Os grandes historiadores da Índia antiga, como Romila Thapar, sem negar a grandeza da antiga civilização hindu, ousaram pôr em causa esta versão idílica do passado, tendo sofrido por isso ameaças de alguns hinduístas radicais!

É que, nos anos 20 do século passado, os ideais da «raça pura ariana» entusiasmaram alguns intelectuais indianos, de que se destacaram Savarkar e Golwalkar, fundadores do RSS (movimento de extrema direita hinduísta, baseada na ideia do «Hindutva», como núcleo essencial redescoberto da complexa religião hindu). Para esta corrente de pensamento, tudo o que não fosse de pura substância hindu, tudo o que não fosse conforme ao reinventado «Hindutva», não poderia ser indiano: por isso, cristãos, judeus e muçulmanos (recorde-se que a Índia tem a segunda maior população muçulmana do mundo) apenas poderiam residir na Índia por generosidade dos hindus, mas nunca poderiam pertencer à sua comunidade nacional – e aqui temos ao mesmo tempo o ideal oitocentista do Estado – Nação homogénea e a ideia de civilização como identidade estanque, cara a Huntington!

 

Um Estado secular?

Os pais fundadores da Índia, Gandhi e Nehru, desde sempre se opuseram a esta ideia exclusivista e redutora da identidade indiana, que obviamente tornaria impossível a instituição da Índia como Estado soberano. Na Mesa Redonda de 1931, convocada em Londres para discutir a questão do estatuto político da Índia com as diferentes comunidades indianas, Gandhi distinguiu claramente o movimento de emancipação da Índia de qualquer movimento especificamente hindu, recusando-se a assumir o papel, que lhe fora atribuído pela potência colonial, de representante dos hindus. Não por acaso, Gandhi foi assassinado em 1948, por um militante do RSS...

Na sua autobiografia, The Discovery of India , Nehru assume a visão secularista da Índia, que veio fundamentar o Estado e a Constituição da actual União Indiana. Em comparação com o nosso laicismo, o secularismo institui a total liberdade de religião e a separação entre o Estado e as religiões, mas não se declara indiferente em matéria religiosa, assumindo antes um sincretismo de matriz hindu, que inspirava Gandhi (um espírito profundamente religioso), mas não já Nehru (um agnóstico).

The Discovery of India (embora datado, um livro notável) pugna por uma Índia múltipla e plural, única possibilidade de este sub continente se constituir como Estado, contrariando assim a afirmação de Churchill segundo a qual a Índia não existia e nunca existiria: seria uma mera noção geográfica, como o Equador.

 

A multiplicidade cultural, religiosa linguística e étnica

É importante rever estas ideias, primeiro para entendermos que a Índia, mais do que a antiga e deslumbrante civilização hindu ( The Wonder that was India ) contém, em si mesma, um permanente confronto de civilizações, entendidas como culturas, religiões, línguas ou filiações étnicas: confronto que tanto pode assumir a forma do compromisso negociado, sempre equacionável no quadro da grande democracia indiana, que funciona plenamente desde 1948, como pode assumir (e assim aconteceu infelizmente em 1948, em 1984 e em 2002) a monstruosa face do massacre colectivo! É o que Martha Nussbaum chama The Clash Within .

Mas para que se chegasse a este movimento pendular entre uma normal convivência democrática quotidiana e o afloramento incidental das piores violências inter-comunitárias, é convicção pessoal do autor deste artigo que a recusa do secularismo defendido pelos pais fundadores da Índia tem uma relação causal com os surtos de violência mencionados. Conheço as posições contrárias a esta tese: Ashis Nandy, intelectual de impecáveis credenciais democráticas, considera que foi justamente o secularismo, ao introduzir (contra as ideias de Gandhi) de forma impositiva a modernidade como ideal de vida alheio à religião, quem veio desencadear a reacção fanática, que, deturpando o Hinduísmo, tem procurado fazer nascer um «fundamentalismo hindu», que não está nas tradições da Índia e que só poderá convir (intelectualmente, está bem de ver…) aos novos taxinomistas das civilizações!

 

Fundamentalismo hindu e secularismo

Nos últimos meses têm- se intensificado os atentados terroristas nas principais cidades da Índia, visando acentuar as clivagens religiosas e culturais e tornar inviável a própria ideia da nação indiana, secular e plural, processo este que teve o seu apogeu de horror e violência nos atentados terroristas que aconteceram em Bombaim nos últimos dias de Novembro de 2008, os quais assumiram uma escala de destruição e sobretudo um grau de cruel e precisa organização nunca vistas na já tão conturbada história dos motins e atentados ocorridos na Índia desde a sua independência. Mas, no dia seguinte a este drama, que abalou profundamente toda a sociedade indiana e que colocou seriamente em causa o equilíbrio de toda a região, as grandes empresas de tecnologia de informação deste país, das melhores em termos internacionais, voltaram ao seu trabalho, em ligação com todo o mundo, não obstante a crise financeira mundial, ao mesmo tempo que o camponês do Karnataka ou do Rajastão foi cuidar da sua terra e conduzir as suas vacas do mesmo modo que os seus antepassados o faziam… The Wonder that is India!

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* Luís Filipe Castro Mendes

Licenciado em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa. Diplomata de carreira, actualmente ministro plenipotenciário de 1.ªª classe com credenciais de embaixador na Índia. Escritor, teve dois prémios literários do Pen Clube (poesia, 1991, e novelística, 1995), bem como o Prémio D. Diniz da Fundação Casa de Mateus, em 1996.

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Referências bibliográficas

BASHAM, A.L. – The Wonder that was India, Rupa, Delhi, 1967.

FISHER, Michael (ed) – Beyond the Three Seas, Random House India, Delhi, 2007 (relato do Padre António Monserrate).

GUHA, Ramachandra – India After Gandhi, Picador/Macmillan, Londres, 2007.

HABIB, Irfan (ed) – Akbar and his India, Oxford University Press, Delhi, 1997.

NANDY, Ashis – Exiled at Home, Oxford University Press, Delhi, 1998.

NEHRU, Jawaharlal – The Discovery of India (1946), Penguin Books, Delhi, 2004.

NUSSBAUM, Martha – The Clash Within, Harvard University Press, Londres, 2007.

SEN, Amartya – The Argumentative Indian, Farrar, Straus and Giroux, Nova Iorque, 2005.

SEN, Amartya – Identity and Violence, Penguin Books, Londres, 2006.

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