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Onde estou: | Janus 2009> Índice de artigos > Aliança de Civilizações: um caminho possível? > Áreas civilizacionais: uma geografia imaginária? > [ China: cinco mil anos no país do meio ] | |||
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É o tipo de ambiguidade que durante gerações esteve ligada à projecção da imagem da civilização chinesa no Ocidente. Há cinco mil anos, entre as margens do rio Amarelo (Huang He), a Norte, e o rio Yangzi, (Changjiang) a Sul, formaram-se as bases de um género de governo e de organização social que tomaram o improvável aspecto de uma permanente repetição. Ainda não há muito tempo, Hegel (1770-1831) podia sintetizar assim a percepção europeia do tempo chinês: «a história da China continua ainda essencialmente sem história, não passa da repetição de uma mesma ruína majestosa. Nenhum progresso pode nela ter lugar». Sabe-se que o facto da vida é a mudança e que, portanto, se vista de fora, a China transmitiu a ideia de algo imutável, que só poderia ser resultado de um enorme capricho ou da imposição de uma vontade. A compreensão da mudança é uma antiga preocupação. Não será por acaso que o livro mais antigo referido nas fontes chinesas seja o Yijing , o Cânone das Mutações, cujo início é atribuído ao lendário Fuxi, que teria vivido em 3.000 a. C. Não menos admirável é a unidade de um território imenso que compreende numerosas áreas climáticas e zonas ecológicas, onde, ao longo do tempo se foram produzindo mudanças ao nível das ideias sociais e religiosas, da composição étnica da elite governante, da localização geográfica do poder político e da fixação dos principais centros populacionais. De uma população heterogénea composta por uma maioria – Han, 93% do total, e 55 minorias étnicas, 52 das quais possuem uma língua falada própria, e que hoje atingem 1.3 mil milhões de pessoas. Aqui nasceu uma civilização de características originais que vão da escrita à gastronomia passando pela música ou pela arquitectura. Aos Chineses é atribuída a invenção da pólvora, do papel, da bússola magnética, do estribo para os cavaleiros, da impressão em blocos de madeira com caracteres móveis, no século IX, entre muitas outras que se tornariam imprescindíveis ao desenvolvimento das sociedades humanas. Seria impossível resumir os feitos e singularidades de uma civilização tão complexa. A partir do século VII, três grandes áreas civilizacionais, com modelos culturais diferentes, costumes próprios e uma produção artística diversificada, atingem uma capacidade de afirmação que lhes permite ultrapassar fronteiras. No Ocidente, esses modelos estão, em sentido lato, ligados à Antiguidade Clássica e ao Cristianismo, no mundo Muçulmano às tradições árabes e às novas leis do Alcorão e na China ao Confucionismo. E das três, a chinesa é a mais antiga.
A Linha Clara de Confúcio O nome de Confúcio ( Kong Fuzi ), o herói cultural chinês que viveu entre 551 e 479 a. C., dá o nome a um movimento que se foi desenvolvendo antes dele nascer e que continuou após a sua morte, com desdobramentos que por vezes parecem contradizer o espírito inicial. Mas se o Confucionismo foi um factor de coesão social, com uma clareza que simula uma revelação, outra corrente de pensamento na China deixava emergir a obscuridade, ampliando os horizontes da percepção, abrindo portas para o desconhecido. No Daodejing , o sábio Laozi descreve a ideia do Dao , o caminho, que propõe o conhecimento peripatético, reflectido na pintura tradicional chinesa, através de mestres infelizmente pouco conhecidos no Ocidente, como Guo Xi (depois de 1000-c.1090), Huang Gongwang (1269-1354) ou Bada Shanren (1626-1705). A estas duas correntes autóctones vir-se-ia juntar uma terceira que, sinizada, daria um contributo importante para a definição do pensamento chinês. Conhecido na China desde o século I através da chegada do lendário monge An Shigao, o Budismo influenciou mas também absorveu a cultura local. No sincretismo da Religião Popular Chinesa estão presentes elementos das três, bem como de um exuberante conjunto de práticas e rituais, incluindo um marcado culto dos mortos.
As rotas do mundo islâmico Um momento privilegiado para ver em acção o pensamento chinês é durante a florescente dinastia Tang (618-907). Da capital Chang An (actual Xian) partiam caravanas que percorriam a Ásia Central e atingiam a Pérsia, a Arábia, Bizâncio e a Síria, num percurso activo desde o século II d. C. e que seria depois conhecido como a Rota da Seda. Ao mesmo tempo, dois percursos marítimos iam alargando os contactos do Império. A rota do Mar de Bohai, a Leste, partia de Denzhou (actual Penglai, na província de Shandong) seguia até à Coreia, conquistada pelos Tang, e daqui chegava ao Japão. A Sul, a partir de Cantão contornando a Indochina e a Índia, os navios chineses atingiam o Golfo Pérsico e a Península Arábica. Em sentido contrário, mercadores árabes levavam marfim, pérolas, incenso e especiarias e traziam seda, papel, tinta, chá e cerâmica chinesa para os poderosos Abássidas (750-1258), a segunda dinastia Islâmica. No porto de Bassorá, ceramistas Iraquianos tentavam replicar o efeito da cerâmica chinesa, cujo segredo de fabricação lhes era desconhecido. Ao criar uma indústria que servia a afluente classe média que mimetizava os gostos da Corte, os ceramistas locais introduziam novidades como o azul-cobalto, que conheceria um enorme sucesso quando usado na cerâmica chinesa na famosa porcelana azul e branca. A cosmopolita dinastia Tang não só alargaria de forma desmesurada as fronteiras da Civilização Chinesa, incluindo a conquista da península da Coreia, a Oriente, e um vasto território a Ocidente que se estendia para lá de Samarcanda e Tashkent, como recebia na sua capital e cidades portuárias os viajantes e mercadores que davam a conhecer aos Chineses religiões tão diversas como o Islamismo, o Judaísmo ou o Cristianismo Nestoriano. O esplendor da dinastia Tang reflectiu-se no apogeu da poesia. Segundo Han Yu (768-824), «o mais perfeito dos sons humanos é a palavra. A poesia é a forma mais perfeita da palavra», era o tempo dos grandes poetas Li Bai, Wang Wei ou Du Fu. Todos eles tocados pelo renovado interesse pelo Budismo. A vontade de aprofundar o conhecimento da doutrina do Buda Shakyamuni daria, de resto, origem ao que hoje se chamaria um turismo religioso, que iria proporcionar uma dinâmica convergência de culturas que encontrariam expressão em fórmulas de representação artística onde é possível reconhecer a acumulação dos variados contributos locais. Assim é, de forma exemplar, o caso das imagens do Buda que se foram criando a meio caminho entre a Grécia e a China. Quando o erudito francês Victor Segalen (1878-1922) publicou um estudo pioneiro sobre a «Grande Estatuária da China», deixou deliberadamente de fora a abordagem sobre a escultura budista porque, disse, «não era verdadeiramente chinesa», antes uma importação da Índia que teve um efeito pernicioso sobre o trabalho puramente nativo que ele tanto admirava. E, no entanto, entre todos os géneros de produção artística, ela constitui a maior parte dos artefactos que sobrevivem até hoje na China. Outro momento de particular clareza quanto à própria percepção e posterior projecção externa da identidade da China imperial ocorre durante o reinado do terceiro imperador da dinastia Ming, Yongle (1403-24). Entre os vários feitos notáveis para a imagem da China, tal como a vemos hoje, criados pelo imperador, conta-se o estabelecimento da capital em Pequim e a consequente construção da Cidade Proibida e do Templo do Céu, onde o monarca honrava a memória dos antepassados imperiais, que eram justamente designados “Filhos do Céu”. Mandou reconstruir e reforçar a Grande Muralha, a obra mais persistente ao longo da história da China, iniciada no reino do primeiro imperador da China unificada, Qin Shihuang (221-206 a. C.), que passou a estender-se desde o litoral até às Montanhas do Céu (Tian Shan), na Ásia Interior. Reconstruiu e melhorou o chamado Grande Canal, obra de importância estratégica para o fácil acesso de mercadorias à nova capital. E é também do seu reinado a iniciativa da fundação dos fornos oficiais para a produção da cerâmica em Jingdezhen e a instituição de uma enciclopédia, a Yongle Dadian , compilada entre 1403-7, que compreende 22.877 volumes e para a qual foram convocados mais de 3.000 estudiosos. Foi ele igualmente o impulsionador das sete viagens marítimas comandadas pelo Eunuco de origem Muçulmana Zheng He (1371-1433) entre 1405 e 1433. No seu trajecto, a frota imperial visitou cerca de trinta territórios da Ásia e da África, estabelecendo relações com outras culturas e desenvolvendo trocas comerciais por via marítima que incluíam a conquista do comércio de especiarias, que era até então dominado por mercadores árabes. Porém, de modo característico, entre os principais objectivos das viagens encontrava-se a vontade de dar a conhecer ao Mundo a grandeza e o esplendor do Celeste Império. Para isso, manda construir uma fabulosa armada que, de acordo com Ming Tong Jian, obra publicada em 1873, chegou a contar com 3.750 barcos, incluindo 250 dos chamados “navios do tesouro”, assim designados pelos seus enormes porões e pela correspondente carga que podiam transportar. Seguiam viagem 1.350 embarcações de patrulhamento e igual número de barcos que ficavam atracados nas bases navais criadas nas várias ilhas do litoral, 1.700 navios de guerra e 400 cargueiros de abastecimento, que transportavam cereais e outros mantimentos, bem como água e cavalos.
O impacto do Ocidente Quando em 1513 o navegador português Jorge Álvares, vindo de Malaca, aporta à ilha de Tamão, na costa Sul da China, levantou um padrão para memória futura do seu rei D. Manuel correspondendo a um desejo expresso pelo monarca aos seus navegadores de ir “perguntar pelos chins”. Ficava assim documentado o início de um diálogo sistemático facilitado pela presença física continuada de Europeus nos mares do Sul da China, que até então não era ainda identificada com o Cataio que o veneziano Marco Pólo descrevera no século XIII. A curiosidade era recíproca pois os Chineses sabiam, desde o tempo de Confúcio, que «entre o povo do Ocidente existem sábios». A forma de que se revestiu o contacto entre os Portugueses e os habitantes da China incluiu o estabelecimento informal de mercadores estrangeiros ao longo da costa e o envio de uma embaixada oficial. Porém, mais do que os embaixadores oficiais seriam os missionários católicos os agentes das relações entre as duas civilizações. Daqui resultaram relatos admirados de uma Civilização superior. Quando posteriormente, chegaram os comerciantes, a imagem alterou-se radicalmente e nos jornais europeus haveriam de ser publicadas imagens que escarneciam de um povo atrasado. O facto de as exportações chinesas de chá e de seda se verem largamente ultrapassadas pela importação do ópio que os Ingleses traziam da Índia esteve na origem da primeira Guerra do Ópio (1839-42). Quando a China é finalmente derrotada, é-lhe imposto um tratado, em 1842, que efectiva a ocupação do território de Hong Kong, garante a abertura dos portos e a isenção dos estrangeiros da jurisdição chinesa. Tal iria alterar de forma decisiva a relação com o Mundo Ocidental, o que era apenas mais um dos múltiplos problemas que a dinastia Qing enfrentava. Esta dinastia governava a China desde 1644 e entrava em acelerado declínio, incapaz de suster as contínuas revoltas internas. A República chegaria inevitavelmente em 1911 mas não as dissenções internas ao que se sucederia a Guerra com o Japão. Até que em 1949 um grupo de homens, com Mao Zedong à cabeça, inspirados nas ideias europeias de Marx e Lenine, fundam a actual República Popular da China. Na história do bonzo Budai, oriunda do período das Cinco Dinastias (907-960), fala-se de uma personagem que é uma encarnação do Buda Maitreya, o Buda do futuro, que traz à cintura uma bolsa onde guarda as esmolas. O seu riso mostra que sendo pouco aquilo que lhe davam era no conjunto toda a riqueza do Mundo. O riso é a imagem de um momento, talvez a mais adequada ao tempo presente. Observada ao longo da História, a Civilização da China assemelhar-se-á mais ao Buda que sorri, constante, tranquilo e impassível.Informação Complementar O espectáculo da nova China Quando, em 1894, a China recebe o convite para participar nos Jogos Olímpicos, as autoridades da dinastia Qing que reina na corte de Pequim não respondem porque os Chineses desconhecem os jogos de competição. Em 1908, porém, a China já se propõe organizar os Jogos. Quando cem anos depois, no dia oito do oito de dois mil e oito às oito horas e oito minutos se inauguraram em Pequim os Jogos Olímpicos, os Chineses encontravam-se envolvidos numa campanha de visibilidade internacional descrita na expressão, sintomaticamente em inglês, going global . Se na cerimónia de abertura foram utilizados sofisticados e rudimentares meios de manipulação das imagens isso mostra o conflito que decorre dentro do acelerado processo de desenvolvimento por que passa o país. O objectivo, porém está bem claro e expresso no símbolo escolhido para os Jogos. O carácter estilizado que significa civilização ou cultura, mas que se pronuncia em inglês com o som win , ganhar. E ganhar começa logo no desafio da exposição pública da vontade de modernizar. A nova perspectiva foi notória logo no espectáculo inaugural dos Jogos, numa justa demonstração de orgulho na história milenar do país. Longe vão os tempos em que o objectivo de riqueza pessoal se resumia à posse de um rádio, de uma máquina de costura e de uma bicicleta. Hoje são introduzidas em Pequim mil viaturas por dia numa distribuição de um automóvel para duas famílias. A exposição mediática revela também os desafios que se colocam ao rápido desenvolvimento em curso. A explosão da construção na cidade de Pequim funciona como um símbolo. Já levou à destruição de muitos bairros tradicionais – os hutong – onde há quatro anos existiam mil e quatrocentos hoje há 200 ou 300, em permanente diminuição. O centro vai sendo ocupado pelos mais ricos e os anúncios luminosos das empresas multinacionais vão dominando o espaço visual. Vai-se expandindo a cidade para os arredores a um ritmo que se prevê vir a criar a maior cidade chinesa em 30-40 anos. A nível político, a questão do Tibete, a liberdade religiosa e a existência de cerca de dezoito milhões de Muçulmanos no chamado Corredor Islâmico, que abrange cinco províncias e particularmente Xinjiang, o antigo Turquestão Oriental, que ocupa um sexto do território chinês, onde se implantaram a partir do século X, é uma questão sensível com a eclosão de revoltas separatistas. Aqui se encontram reservas de petróleo e gás natural e é uma área rica em minerais de valor estratégico, como o zinco ou o cobre. A visibilidade é notória também no mercado de arte, nas capas das revistas internacionais tudo o que vem da China é objecto de admiração. Pintores como Yue Minjun (1962), Zhang Xiaogang (1956) ou Fang Lijun (1963), que praticam de forma superior os materiais da pintura Ocidental, são uma presença constante e uma demonstração clara da sofisticação da nova China.* Paulo Carmo Investigador nas áreas da Cultura e Civilização Chinesa e Japonesa. Autor de diversas publicações, incluindo várias entradas no Dicionário de História de Macau e na imprensa de Lisboa e de Macau. Foi colaborador da revista “Macau”, entre 1992 e 2004.
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