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- JANUS 2009 -



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O Japão entre a espada e os crisântemos

Paulo Carmo *

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Se há um país que para o Ocidente conserva a antiga ideia do Oriente inescrutável, esse é sem dúvida o Japão. A misteriosa interacção de duas pulsões contraditórias continua a caracterizar a percepção que se tem no Ocidente da Civilização Japonesa. No final da Segunda Guerra Mundial, a antropóloga americana Ruth Benedict propôs, através de duas palavras, uma definição que se mantém actual. O crisântemo e a espada . A nomeação, com carácter minimalista, de dois objectos contraditórios espelha a difícil síntese concretizada na Civilização Japonesa. Apesar do extraordinário caminho de integração com o resto do mundo, percorrido sobretudo após a Segunda Grande Guerra, a nação mantém o orgulho de um povo diferente e inacessível, a que não é alheia a preocupação do Estado com a integridade da sua própria cultura. O facto de se tratar de um território formado por quatro grandes ilhas e milhares de outras mais pequenas, localizado a certa distância de um continente, terá contribuído para a formação dessa originalidade. Porém, nesse continente, o que estava para lá do mar era a poderosa Civilização Chinesa e os habitantes das ilhas não podiam evitar a sua influência ou as suas referências, o que resultou historicamente numa relação atribulada, complexa mas inevitável. A começar pela escrita que começou por só usar caracteres chineses, e que depois adoptaria em conjunto os seus próprios mas alguns nunca mudariam, como os que são usados para nomear o próprio país. O que em chinês se lê riben , em japonês nihon e que significam o sol nascente ou onde nasce o sol.

A lenda que explica no Japão a sua origem está intimamente ligada ao sincretismo religioso nacionalista designado Xintô, a via dos deuses. Nele se justifica o culto ao imperador como descendente da deusa do sol Amaterasu O-mikami confirmando a umbilical ligação da religião ao Estado. Uma das características próprias do Xintô é a convivência do culto às divindades locais – kami – com divindades búdicas – bodhisattvas e Budas. Com o Budismo que chega ao Japão no século VI, vieram também as concepções culturais dominantes na China: o Confucionismo e o Daoísmo. Uma forma particular de Budismo foi importada da China no século XIII e revitalizada no século XVII, o Chan, que no Japão se designou Zen e do qual saiu o bushido , o código de honra dos guerreiros conhecidos como samurais , a partir do tempo do Xogunato dos Tokugawa (1603-1867) para justificar a existência de uma casta militar durante um tempo de paz. Salientaram-se para isso os aspectos mais austeros do Zen, como a indiferença ante o sofrimento ou o prazer e a auto-disciplina.

 

A via da espada

Outra associação real e simbólica concretiza--se nas duas espadas que faziam parte do armamento dos guerreiros samurais. Ligada à família imperial do clã da deusa do sol, o processo de fabricação de espadas está tradicionalmente unido ao Xintô, de que é um dos três símbolos básicos. O uso das espadas para fazer a guerra estava inicialmente limitado a clãs aristocráticos que reclamavam descender de três origens: dos deuses fundadores, de antigos imperadores ou directamente da nobreza Coreana ou Chinesa. Gradualmente, foi-se concretizando uma separação entre a aristocracia cultural e a marcial com a supremacia desta que daria origem, em finais do século VIII, ao estado imperial com uma burocracia centralizada na antiga cidade de Quioto. Quando se deu o primeiro contacto com uma cultura Ocidental, as ilhas atravessavam um período relativamente pacífico. Estava-se na época Muromachi, com a unidade imperial restaurada desde 1392, quando incidentalmente, em 1542, navegadores portugueses, com Fernão Mendes Pinto, aportaram a Tanegashima. Seguir-se-ia uma época de benefícios mútuos, que no Japão se estuda como o início da Idade Moderna, com os mercadores de Portugal a fazerem a rota do comércio com a China, nos navios conhecidos nos documentos portugueses como as Naus do Trato, no Japão chamados os Navios Negros de Macau, os kurofune . Foi este o chamado século Cristão do Japão (1542-1640) em que os missionários, que chegam nos navios portugueses, com São Francisco Xavier à cabeça, são acolhidos com simpatia pelas autoridades. A fundação da cidade portuária de Nagasáqui, na ilha de Kyushu, em 1570-71 e a sua implícita cedência pelo dáimio Omura Sumitada, em 1580, à Companhia de Jesus, marcam um ponto culminante desse relacionamento. Outras marcas ficariam na cultura local, como as cerca de 40 palavras de origem portuguesa no léxico japonês, como a conhecida forma de fritar tempura . Protagonistas desse relacionamento foram pessoas como Luís Fróis (1532-1597), autor de uma primeira História do Japão, João Rodrigues (1561-1633), o Tçuzzu (do japonês Tsuji , intérprete), autor da Arte Breve de Língoa Japoa , de 1620, a primeira gramática da língua japonesa, ou o médico jesuíta Luís de Almeida que leva para o Japão a medicina e cirurgia europeias, construindo um hospital para os pobres em Oita. Almeida terá sido, aliás, o primeiro português a chegar a Nagasaki, em 1567, onde fundou uma igreja. Da chegada ao Japão de pessoas tão diferentes ficaria uma particularidade nas artes visuais japonesas, com os conhecidos biombos nambam, da palavra japonesa para designar os Europeus, os “bárbaros do Sul”. Das novas tecnologias trazidas pelos Portugueses, a introdução da espingarda seria decisiva na batalha de Nagashino (1571) em que Oda Nobunaga se impõe como unificador do Japão. Na guerra pelo poder os Europeus seriam jogados pelas partes em conflito até que, a partir de 1610, começam a ser publicados sucessivos Éditos de expulsão dos estrangeiros. Finalmente, a proibição de os Japoneses viajarem para o exterior concretizava o isolamento do Japão que duraria até 1853.

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Após pronunciar um eloquente discurso celebrando as virtudes da filosofia, da ciência, do comércio e dos revólveres, o presidente Americano Filmore envia para o Japão uma poderosa flotilha comandada pelo comodoro Perry, portador de uma mensagem de amizade para os Japoneses. Nela realçava o grande interesse mútuo que adviria para as duas partes se se estabelecessem relações comerciais regulares, até aí impossíveis por expressa e repetida interdição dos Xóguns que governavam o Japão. Como post-scriptum , o presidente americano acrescentava que, caso não fosse esse o desejo do governo japonês, se veria forçado a enviar, na Primavera seguinte, uma flotilha bem mais poderosa. Foi a segunda abertura ao estrangeiro mas agora o Mundo estava mais pequeno, e, logo em 1854, o Japão firmou Tratados com os Estados Unidos, com a Rússia e com a Inglaterra. A partir de 1867, acede ao poder o imperador Meiji, iniciando uma série de reformas, com a Europa como modelo, que incluiam a abolição do feudalismo, a aprovação de uma Constituição, em 1889, e um governo parlamentar, em 1898.

Mas o antigo culto da guerra acabaria por se impor, após o espectacular sucesso dos objectivos imperiais quanto ao desenvolvimento económico da nação. O conflito com a China agrava-se logo em 1894-95, com a Rússia em 1904-05 e a anexação da Coreia dá-se em 1910. Em 1931-32, a invasão da Manchúria e consequente criação de Manchuguo abriria uma ferida com a China com consequências que ainda hoje se fazem sentir. A assinatura do Pacto tripartido com a Alemanha e com a Itália, em 1940, colocaria definitivamente a nação japonesa no lado errado da História. O ataque à base americana de Pearl Harbour, no Havai, em 1941, coincidiria com a ocupação da Indochina. Abrindo outro espaço de antagonismo regional que se estenderia, após a ocupação, em 1942, das Filipinas, Singapura, Java, Nova Guiné e Birmânia. O lançamento das bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki iria terminar tristemente esse mau uso da arte da estratégia em conflito, que, de acordo com Sun Zi, nunca deveria resultar de uma vocação beligerante. O país seria ocupado pelas tropas aliadas até Abril de 1952 e de novo seria testada a notável capacidade de absorção nipónica dos hábitos e costumes de uma cultura estrangeira. Não só o basebol se tornaria no desporto-espectáculo mais popular do país como se converteria num hábito afectado a introdução de palavras inglesas no vocabulário comum, como de resto já antes acontecera com os vocábulos portugueses.

 

A via dos crisântemos

Hoje, a projecção da identidade nipónica faz-se através, entre outras, de disciplinas que evoluíram do conflito para o combate leal ritualizado, como o karaté , o aikido e sobretudo o judo, a via da suavidade. A delicadeza marca, de resto, a outra face da identidade nipónica com as suas múltiplas vénias e o tradicional acolhimento afável. A proximidade da natureza, sacralizada na ideia dos kamis que a habitam, está presente nas várias faces da cultura japonesa. Dela parece resultar a força da vontade de voltar a construir após a catástrofe. Sem recursos naturais – apenas 16% do solo é arável e 3/4 são montanhas – o Japão faria a sua segunda demonstração de sucesso económico no cenário internacional ao tornar-se, em 1970, a terceira potência industrial do Mundo. Em breve se tornaria o maior exportador de produtos tecnológicos, sendo a Sony, a primeira empresa a lançar o primeiro aparelho reprodutor de vídeo caseiro, o betamax, em 1975. Seria rapidamente o primeiro país do Mundo em capturas pesqueiras com mais de dez milhões de toneladas anuais e do bem-estar da população fala o mais elevado índice de esperança de vida – 81,8 anos para as mulheres, 75,9 para os homens. As raízes desse sucesso podem ser encontradas, tanto na eficaz importação de técnicas de gestão como na vincada tradição de identidade social, que promove o sentimento de pertença de grupo, visível até na forma de vestir, e a ideia de competição ou de confrontação com os outros grupos. Na sua face simpática, esse ancestral sentido de pertença promove a associação com os outros e a protecção da família, da vizinhança, do emprego e de outras formas de organização comunitárias. Na sua outra face está a xenofobia, responsável nomeadamente pelas cruéis perseguições feitas aos Cristãos no século XVII.

Mas o charme nipónico aos olhos dos estrangeiros esteve sempre na sua elaborada e requintada cultura, a quem o choque do contraste permitia a revelação interior. Foi assim para aqueles que lá se deslocaram em busca do exotismo melancólico, como no caso notável do português Wenceslau de Moraes (1854-1929), que, em páginas memoráveis, relatou a estranheza da sua vida nas ilhas. A delicadeza está bem presente no apreço nacional pelas flores, evidenciado na escolha da flor outonal do crisântemo como símbolo do imperador e do Xintô e enquanto elemento presente na origem da festa nacional da Primavera, Sakura no Hana Mi , em que se celebra o aparecimento das flores da cerejeira. A forma como são dispostas em arranjos florais, no tradicional ikebana , obedece a um rigoroso esquema onde estão simbolicamente representados em harmonia o céu, a terra e a Humanidade. Os bonsai , árvores anãs meticulosamente podadas que podem ser coleccionadas e que passam de geração em geração são uma outra forma viva de transmissão do apreço que o povo nutre pela natureza. Com a actual preocupação pelas questões do ambiente, são modelos que começam também a ser adoptados, numa vénia para o Japão, nos países ocidentais. Ou a originalidade de uma literatura onde historicamente são as mulheres que começaram por escrever as grandes obras. É o caso de dois livros datados do século XI, da autoria de duas damas da Corte: o primeiro romance nipónico, o Genji Monogatari , escrito num mosteiro junto à margem do lago Biwa, por Murasaki Shikibu, e o livro de Notas do Travesseiro ( Makura no Soshi ), de Sei Shonagon. O reconhecimento internacional, no entanto, chegou para Kawabata Yasunari que, em 1968, foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, ou o recente êxito comercial das traduções dos livros, entre outros autores, de Shusaku Endo.

Quando Marco Pólo escreveu, ante o espanto dos Europeus, sobre as ilhas nipónicas, a que ele chamava Cipango, descreveu casas cobertas de ouro das paredes ao telhado. Só quando o navegador português Jorge Álvares falou sobre o distante arquipélago se soube desse povo que, quando alguém o visita, “parece que nos querem meter na alma.”

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Informação Complementar

Imagens do Japão

Todos os dias de manhã, numa televisão do mundo ocidental, durante a programação infantil, é possível encontrar imagens oriundas do Japão. A indústria de desenhos animados japoneses, na sua diversidade, exerce, assim, uma subtil e quase despercebida influência na cultura popular do Ocidente. Nem sempre foi assim. Em dois momentos distintos a presença das imagens nipónicas foi importante para a compreensão mútua. As primeiras imagens que chegaram à Europa vindas do longínquo Japão interessaram logo aos autores da sofisticada cultura Europeia do século XIX. Eram as imagens do “mundo flutuante”, as ukiyo-e produzidas em formas de múltiplos. Estampas que eram avidamente coleccionadas por nomes ligados ao movimento Impressionista, como Monet. Mas também Bonnard ou Toulouse-Lautrec, o holandês Van Gogh, o austríaco Klimt ou o inglês Whistler, entre outros, fizeram citações directas nos seus quadros às estampas japonesas. Mas também se pode perceber a influência destas estampas no famoso “Madame Chrysanthème”, de Pierre Loti (1850-1923), que estaria na origem da conhecida ópera “Madame Butterfly”. Ou na poesia de Baudelaire, espelhada no conhecido verso «lá, tout n'est qu'ordre et beauté/luxe, calme et volupté». Ou ainda na música de Debussy «O mar», de 1905, inspirada na estampa de Hokusai «Sob a vaga em Kanagawa», que depois, reproduzida até à exaustão, se poderia ver em grafitos nos muros das cidades do mundo ocidental.

Mais tarde, nos anos 60 e 70 do século XX, o trabalho de divulgação da crítica francesa abriu as portas ao sucesso comercial dos filmes japoneses no Ocidente. As obras de autores tão diversos como Mizoguchi ou Kurosawa revelaram, com sensibilidades diversas, o mundo japonês aos estrangeiros. Depois viria o controverso sucesso dos filmes de Imamura, com temas e problemas contemporâneos, ou de Nagisa Oshima, que mostraram um género que já estava presente nas estampas conhecidas dos Europeus através das chamadas shunga - imagens da Primavera. Seria preciso, no entanto, esperar pela divulgação internacional da obra de Yasujiro Ozu (1902-1963), o que em Portugal só aconteceu pela primeira vez em 1980, para se descobrir o mais insistente cronista da sociedade, dos costumes e da moral japoneses. O seu olhar sobre a vida do Japão inclui detalhes, pausas e hábitos quotidianos que mergulham directamente sobre a célula familiar, a ponto de ser, pelos próprios japoneses, considerado «demasiado japonês”»para o gosto e compreensão de audiências internacionais. E, de facto, Ozu permanece ignorado do grande público a quem os filmes de Hollywood, seguindo um género próprio do Japão, continuam a salientar a imagem mais espectacular da vida nipónica ligada à máfia local, a yakusa, um dos nomes de origem nipónica que já fazem parte da cultura popular internacional, juntamente com outros como, harakiri, kamikase, tamagochi ou karaoke.

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* Paulo Carmo

Investigador nas áreas da Cultura e Civilização Chinesa e Japonesa. Autor de diversas publicações, incluindo várias entradas no Dicionário de História de Macau e na imprensa de Lisboa e de Macau. Foi colaborador da revista “Macau”, entre 1992 e 2004.

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