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Na aparência, é fácil: os atlas das religiões revelam assinaláveis sobreposições com os de natureza política (ver cartas). O Confucionismo e o Taoísmo são delimitados pelas fronteiras da China; o Hinduísmo marca a cultura do sub-continente indiano; grosso modo, o mundo de maioria muçulmana estende-se da Ásia Central ao Mediterrâneo e mergulha em África, até às suas zonas tropicais; por sua vez, o Cristianismo é dominante nos continentes europeu e americano. Neste modelo simplificado, as excepções – o Budismo, o Jainismo ou o Judaísmo, por exemplo, e o movimento das religiões que acompanha as migrações – apenas confirmariam a regra. O passo seguinte desta constatação está longe da inocência. Se as religiões constituem o cerne das culturas e estas delimitam os espaços civilizacionais, então, o diálogo político é sobredeterminado pelas diferenças de religião. Se alguma destas é irredutível e avessa aos grandes valores universais, teríamos o «caldo entornado». Esta é a narrativa da hipótese do conflito de civilizações. Esta lógica adquiriu, com o 11 de Setembro, com as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque e com o aumento do terrorismo fundamentalista, as proporções de uma profecia anunciada. Foi a percepção de que esta escalada continha inúmeros perigos que levou vários líderes políticos e religiosos a sustentarem a urgência de uma «aliança de civilizações». Ela nasceu por iniciativa, entre outros, de Zapatero e Erdogan, primeiros-ministros de Espanha e da Turquia, e é um português, Jorge Sampaio, que coordena esta iniciativa no âmbito das Nações Unidas. Num contexto de emergência fundamentalista, esta vontade de diálogo tem muitos aspectos positivos. Contudo, não é isenta de ambiguidades porque o pressuposto de que parte é o da religião como entidade definidora dos espaços geo-políticos. A «aliança» opõe-se ao «conflito» do ponto de vista das consequências, mas coincide com os fundamentos de partida. Será mesmo assim? Uma hipótese teórica não está certa ou errada porque possa oferecer uma explicação coerente e racional para a realidade. Nem a sua resistência a ataques de natureza metodológica e de coerência lógica basta para que se afirme como indiscutível. Nas ciências sociais, uma teoria pode ser excelente na coerência dos seus pressupostos e na lógica interna da sua narrativa e, no entanto, não servir por causa das consequências políticas que dela se possam extrair. Alguns dos líderes políticos e religiosos que contrapõem a «aliança» ao «conflito» fazem-no não porque pensem que religião, cultura e civilização são conceitos distintos, embora ligados, mas porque recusam as conclusões que decorrem da tese inicialmente exposta por Bernard Lewis e desenvolvida por Huntington. Lideranças externas ao «laboratório» desta hipótese – a colisão entre Ocidente e Islão – apoiam a iniciativa porque intuem que, se não se travar a lógica de conflito agora, o argumento adubará outros no futuro. Dentro de duas décadas, os universalistas de Ocidente estariam a atacar a «essência conservadora» do confucionismo como hoje apontam o dedo à natureza anti-democrática do Islão. Por causa de Confúcio? Ou porque, dentro de vinte anos, a China pedirá meças à superioridade económica e militar do Ocidente sobre o planeta? O que basta para os responsáveis políticos não chega, contudo, para os cientistas sociais. A hipótese do «conflito» é criticável quer nos seus pressupostos quer na lógica interna e nas conclusões que oferece. A religião «informa» a cultura de uma comunidade tanto quanto esta molda a religião.
Deus absolvido dos nossos erros A humanidade discutirá até ao fim dos dias se Deus nos criou à sua imagem e semelhança. Mesmo que, dentro de meses, os cientistas consigam explicar a origem da matéria e da vida, subsistirá a questão de saber se tal criação se explica por si própria ou se nela interveio uma vontade externa. Esse debate decorre das crenças e não da ciência. Pelo contrário, crentes e não crentes podem concordar sobre o facto de a humanidade inventar quotidianamente «Deus» à sua imagem e semelhança. Coloquei aspas em Deus porque existem religiões que são teísmos, ou seja, que não carecem Dele para ajudarem a conformar a existência colectiva. A religião é, portanto, um assunto da humanidade e não do Altíssimo. Nem de outro modo se compreenderia porque temos sido capazes do melhor e do pior em Seu nome. O segundo passo do meu argumento é que a religião, enquanto criação humana, conforma a cultura mas não é a cultura e muito menos a civilização. Olhemos para o Mediterrâneo, grande teatro de encontros e de colisões entre Ocidente e Oriente. Nele, Eloím, Iavé ou Alá adquirem diferentes dimensões consoante o espaço que ocupam. A divindade de uma família é convivial. Pode mesmo dizer-se que é mais um dos seus membros, aquele a quem se pede ajuda quando algo corre mal. Nem sempre corresponde ao pedido mas tal pode acontecer, o que é quanto basta para continuar a ter lugar à mesa. Esse Deus é compreensivo, quase humano e não se disputa com os demais. Mas ele começa a transfigurar-se quando, além de ser o da família, é também o da tribo ou o da aliança tribal. Este upgrade do divino torna-se potencialmente intolerante quando adquire uma dimensão estatal ou imperial. Com facilidade, a metamorfose fará Dele o Senhor dos Exércitos. Em troca do seu poder, exige obediência e exclusividade. No Mediterrâneo que viu nascer os monoteísmos, o mesmo Deus não adquiriu apenas diferentes nomes; também desempenhou e desempenha distintos papéis, consoante o que as comunidades humanas dele exigem. A Mesquita de Córdova tem no seu interior uma igreja, do mesmo modo que a Basílica de Santa Sofia, em Istambul, é hoje uma mesquita. Por sua vez, é bem provável que uma e outra se tenham instalado em terra sagrada, que antes conhecera outros templos e deuses. O Mediterrâneo serve-se em camadas. Mudam os nomes das divindades e as obediências dos crentes mas a cultura das comunidades – os seus hábitos e práticas sociais e simbólicas – sobrevive e adapta-se aos novos conquistadores e à carga religiosa que trazem na bagagem. O inverso também é verdadeiro: as religiões moldam-se às culturas que encontram. O Cristianismo do Ocidente fez dos deuses pagãos santos da nova fé. Ainda hoje o Cristianismo praticado na Suécia é muito distinto do da Península Ibérica ou do Sul de Itália, para já não falarmos da fractura entre Ocidente e Oriente. Do mesmo modo, o Islão da Arábia Saudita ou do Afeganistão não é o mesmo do Líbano, de Marrocos ou do que se vem, progressivamente, afirmando na Europa. Em Setembro de 2008, a principal figura religiosa do xiismo libanês, o Ayatollah Fadlalah, emitiu uma fatwa onde proclama o direito das mulheres a resistirem à violência que os homens exerçam sobre elas. O Corão autoriza esta atitude moderna? Bem pelo contrário, admite explicitamente a violência sobre a mulher em caso de desobediência desta, apesar de criticar o seu uso imoderado. Neste aspecto, como em tantos outros, é coerente com a tradição bíblica, de que se reclama. O Corão também define a repartição de bens em herança dando duas partes ao homem e uma à mulher. O que à época representou um extraordinário progresso é hoje uma discriminação. Que fazer nestas circunstâncias? Tomar a Revelação à letra ou procurar que a lei obedeça ao seu espírito? O segundo ponto de vista é partilhado por muitos reformadores islâmicos. Um derradeiro exemplo: o Corão dá ao homem o direito de casar com várias mulheres. No entanto, há países de maioria muçulmana onde a poligamia foi interdita. A montante e a jusante, a Revelação condicionou o comportamento dos homens. Por um lado, a poligamia destinava-se a proteger as viúvas; por outro lado, dependia da igualdade de tratamento das esposas. Como na vida moderna isso não é possível…
Um pouco de paciência, por favor Dos exemplos anteriores pode concluir-se que não há «essencialismos» em religião, mas «essencialistas». Não existe qualquer razão intrínseca ao Islão que o impeça de se adaptar às condições da vida moderna. É verdade que o Corão, para um muçulmano, não é o mesmo do que a Bíblia para um cristão. O Corão é a Palavra. Ele está para os muçulmanos como Jesus para os cristãos. Esta circunstância introduz uma dificuldade adicional na interpretação das Escrituras: a Palavra de Deus tem de ser tratada com pinças. Mas até há bem pouco tempo não foi diferente com a Bíblia. Estudos de opinião recentes nos EUA revelam que esta ainda é considerada por mais de 40% da população como um livro de História. A maioria dos norte-americanos crê no Apocalipse. Pelo contrário, existem muitos factores exógenos ao Islão que o estão a colocar numa posição de resistência cultural. Esta atitude é, de resto, extensível ao Vaticano e ao rabinismo judaico. Em 2007, realizou-se uma gay parade em Jerusalém. Na cidade de todas as disputas, as três religiões do Livro uniram-se num momento de rara unanimidade. É a História e não a presumida «essência» anti-democrática do Islão que explica muitas das dificuldades actuais. A conquista da democracia e dos direitos individuais e sociais no mundo ocidental tem sido uma bela aventura mas nem sempre foi bonita de se ver. Muito sangue se derramou. Não raro, a individualização e a posterior construção de Estados-providência contou com a oposição cerrada dos poderes religiosos. Um e outro processo não estão ainda concluídos e já levam dois séculos de História em cima. Nos mundos de maioria muçulmana, a modernização chegou a cavalo da colonização. Esse foi o primeiro problema. A modernização endógena, posta em marcha no século XIX, a partir de Istambul e do Cairo, foi colocada sob suspeita, por se ter confundido com a modernização importada. O pan-islamismo do início do século XX expressou essa desconfiança. A segunda vaga modernizadora foi a da Turquia, de Kemal Ataturk, e a da Pérsia, do Xá Reza Palhavi. Mas o seu alcance foi limitado pela natureza ditatorial dos regimes em causa. O mesmo sucederia com os nacionalismos árabes. As ditaduras fizeram das mesquitas redutos de liberdade de opinião nesses países. A segunda dificuldade é de ordem temporal. O Magreb e o Próximo e Médio Orientes estão a ser obrigados a percorrer em algumas décadas o caminho que a Europa e os EUA fizeram em mais de dois séculos. Nas cidades muçulmanas, o apelo do muezlin e o camelo coexistem com a Internet e os últimos modelos todo-o-terreno. Uma soció-loga marroquina, Fatima Mernissi, sustenta que a dificuldade maior que a globalização coloca aos países em vias de desenvolvimento não é a apropriação das matérias-primas pelas grandes companhias do Ocidente mas o facto de esta estar a expropriar de tempo mundos que carregam excessivas cargas de História nos ombros: «a diferença entre nós e o Ocidente reside no modo como consumimos o passado. Os ocidentais fazem dele uma sobremesa, nós um prato de resistência. Os Ocidentais consomem o passado como um entretém e um passatempo, para repousarem do stres do presente. Nós fazemos dele uma profissão, uma vocação e um horizonte.» (1) Este ponto de vista parece-me muito razoável e afasta-nos de uma visão que reduz a cultura à religião. As sociedades mediterrânicas têm ainda duas características que as tornam distintas das do centro e do norte da Europa: continuam a ser fortemente patriarcais e de família alargada. Estes aspectos da ordem social precedem os monoteísmos, que apenas os reconfirmaram. A causa da sua persistência está longe de ser apenas religiosa. Quando o Estado-providência é incipiente, é na sociedade-providência que os mais pobres encontram amparo. Paradoxalmente, a civilização mundial do capitalismo também responde por esta tendência. Por um lado, uniformiza sonhos e expectativas, gerando resistências decorrentes da incompreensibilidade em face da aceleração do tempo e dos costumes; por outro lado, ao diminuir o papel dos Estados, confina as funções sociais às instituições de tipo tribal, clânico e religioso, reproduzindo uma ordem social muito antiga. Estou firmemente convencido de que o Tempo precisa de tempo para respirar. O Deus mercado, tão importante para o desenvolvimento humano, está a tornar-se no mais omnipotente, intolerante e egoísta que a História conheceu. A agressividade dos seus teólogos não é menos fundamentalista do que a resistência das religiões. Não é de estranhar que cresça o número de refugiados nas certezas antigas. A colisão não é entre civilizações, mas entre fundamentalismos.1 -
MERNISSI, Fatima – Le Harém Politique. Pág. 29, Editions Complexe, 1992. * Miguel Portas Economista e jornalista. Eurodeputado. Membro das delegações do Parlamento Europeu para os países do Mechrek e Palestina. Autor, com Camilo de Azevedo, de Périplo, uma série documental para a RTP sobre o Mediterrâneo.
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