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In Amos Oz, Contra o Fanatismo (1)
O tema da «Aliança de Civilizações» pressupõe, naturalmente, a eventualidade do seu choque. Como evitar esse choque? Qual o papel que o diálogo inter-religioso pode ter nesse sentido e mais especificamente qual é, neste campo, a perspectiva judaica? Estas são algumas questões que procurarei abordar. «A história humana», diz Huntington «é a história das civilizações [...] os maiores “nós” dentro dos quais, culturalmente nos sentimos em casa de uma forma diferente de todos os outros “eles”» (2). Nesta perspectiva, uma civilização é o maior denominador comum de identidade porque integra os elementos essenciais que a definem: língua e cultura, modo de vida e religião. Durante grande parte da existência humana, os contactos entre as civilizações foram inexistentes ou limitados. Mas sobretudo a partir do século XVI, com o início da idade moderna e a expansão ocidental, essa realidade foi-se modificando e hoje vivemos num mundo altamente globalizado no qual a ameaça do «choque» é uma possibilidade tanto maior quanto mais essas identidades se sintam ameaçadas pela interpenetração e interferência crescentes. Num mundo pós-guerra fria, caracterizado pelo declínio das ideologias seculares e por processos de modernização que desfizeram fontes de identidade e sistemas de autoridade ancestrais, regressam com força redobrada as diferenças culturais, nacionais e acima de tudo religiosas, recalcadas durante décadas de guerra fria. «Chassez le naturel, il revient au galop», escreveu B. Pascal. É que, apesar de mortais, as civilizações resistem, evoluem e procuram adaptar-se melhor ou pior. São, como disse Huntington, «realidades de longa duração», porque respondem ao mais essencial questionamento do ser humano: quem sou eu, a que «nós» pertenço?
«Identidades assassinas» Num Ocidente individualista, secularizado e ainda dominante do ponto de vista civilizacional – o que não significa que seja superior ou universalizável – esta questão é por vezes difícil de entender: o próprio conceito de «civilização» tornou-se dificilmente pronunciável porque incorrecto politicamente, em parte devido à adjectivação do conceito – civilizado versus ocidentalizado – em parte devido ao sentimento de rejeição que muitos ocidentais nutrem pela sua própria história, identificando-a com a colonização e opressão de outros povos e culturas. Do ponto de vista religioso, que é o que aqui abordarei, a secularização das sociedades ocidentais, marginalizando e relegando a religião para uma esfera meramente privada, desvalorizou-a como pilar identitário colectivo e civilizacional e em consequência também como causa de conflito. A evacuação do religioso fora do campo político tornou o espírito europeu e ocidental incapaz de conceber uma guerra por motivos religiosos ou em que a religião é a principal motivação. O fenómeno da guerra religiosa estaria assim ultrapassado, historicamente catalogado, e a religião não passaria de um pretexto, uma folha de parra das «verdadeiras» questões políticas ou sócio-económicas, essas sim determinantes. O problema deste raciocínio é que a realidade não o comprova. Tal como o demonstra Élie Barnavi (3), os conflitos religiosos são verdadeiramente conflitos de religiões na medida em que fornecem o pólo identitário dos campos em presença e a sua ideologia de combate. É certamente por isso que Amin Malouf lhes chamou «as identidades assassinas» (4). Quando a obsessão da vinda do profeta Mahdi determina grande parte do comportamento político do actual presidente iraniano, quando a ideia do martírio e a promessa do paraíso guia os autores dos atentados-suicidas; quando a Al-Qaeda se propõe restaurar o califado mundial e combate não Israel e o Ocidente, mas sim «os judeus» e «os cruzados»; quando o Hamas afirma na sua Carta Fundadora que «toda a Palestina é terra sagrada muçulmana», quando o assassino de Itzhak Rabin afirma que foi Deus que lhe guiou o braço... é necessário levar a sério o que dizem os principais protagonistas, sob pena de não compreendermos o que os leva a matar e deixar-se matar. Isto não significa que um conflito religioso seja apenas um conflito de religiões: existem frequentemente outras justificações entrelaçadas, nacionais e territoriais, sociais ou económicas. Existem frustrações culturais seculares, humilhações nacionalistas antigas. Mas um conflito religioso não deixa de ser um conflito de religiões por ter outras componentes. Isto não significa, no entanto, que se deva procurar a chave dos comportamentos religiosos nos ensinamentos religiosos. Procurar a Al-Qaeda no Corão ou o assassinato de Rabin na Bíblia, não ajuda à compreensão dos fenómenos porque a realidade é que se pode encontrar tudo e o seu contrário nesses mesmos textos. Todos lemos os mesmos textos mas o que é determinante é a leitura e a interpretação que deles é feita, seja ela a leitura radical e integrista do Islão, que visa o estabelecimento de um califado mundial e a destruição de um ocidente ateu, ou a leitura irredentista da Torá pela ultra-orthodoxia judaica defendendo o direito sagrado à integralidade da terra bíblica. Estamos hoje face a conflitos animados por uma ideologia religiosa, por uma leitura que faz da religião uma ideologia. Num ocidente europeu, conflitos desse tipo podem ter desaparecido – aliás foram substituídos ao longo do século XX por choques de ideologias seculares – mas a nível mundial é impossível negar a sua existência. A lógica destes confrontos é uma lógica religiosa e civilizacional que pouco tem a ver com a justiça social, ou a libertação nacional. Quer se goste ou não – e normalmente não se gosta porque inspira medo – o seu combate assemelha-se de facto a um «choque de civilizações».
As religiões, parte da solução ou parte do problema? A questão que se coloca é que papel podem ter as religiões para evitar o «choque». E em que medida elas serão parte da solução ou parte do problema. Frequentemente, são os próprios dirigentes religiosos no Ocidente, os primeiros a negar o carácter religioso dos conflitos e a considerar que a religião é apenas instrumentalizada, a tal folha de parra. Provavelmente porque, de uma forma geral, não reconhecem nas guerras que se reivindicam de religiosas a essência da sua mensagem original. O primeiro passo é, pois, o reconhecimento que estamos perante conflitos com uma dimensão religiosa, na medida em que esta fornece a sua ideologia de combate. Esta é a primeira condição para um maior comprometimento por parte dos dirigentes, fiéis e instituições religiosas. As guerras em nome da religião têm uma característica comum: pelo seu carácter absoluto são imunes às negociações e a compromissos. Mas isso não exonera os dirigentes religiosos de tomar posição quando há quem seja assassinado em nome de Deus ou de uma causa sagrada. Nomeadamente, desde o 11 de Setembro, assistimos à mais cruel de todas: a guerra contra os civis e onde não são poupados hospitais e universidades, mesquitas, sinagogas ou igrejas. Quando a religião é invocada como justificação de um conflito, diz o Rabino Jonathan Sachs, «os fiéis têm de erguer as suas vozes em protesto. Temos de retirar as vestes da santidade quando elas são usadas como capa da violência e do derramamento de sangue [...] Se a religião não tomar parte na solução tornar-se-á seguramente parte do problema» (5). Esta é pois a segunda condição: a condenação e a denúncia clara da violência religiosa, seja ela em nome de Deus ou de textos sagrados. Algumas vozes têm-se levantado nesse sentido. O Papa Bento XVI é uma das mais fortes, mas cada vez mais muçulmanos também o têm feito arriscando muitas vezes a própria vida, assim como alguns líderes espirituais judaicos, como o que acabo de citar. São, no entanto, ainda poucas e fracas as vozes representativas das diferentes religiões na condenação da violência religiosa.
«Quem é sábio? Aquele que aprende com todos os homens.» O diálogo inter-religioso e das religiões com a sociedade é outra forma de contribuir para a pacificação. O diálogo inter-religioso conheceu nas últimas décadas extraordinários avanços. Criaram-se organismos e associações de diálogo e confraternização, sucedem-se encontros internacionais, aprovam-se declarações de paz e concórdia. Esta convivência é importante porque permite o conhecimento e sobretudo o reconhecimento mútuos. Mas se analisarmos com realismo os resultados concretos, eles são ainda profundamente insuficientes. Podemos dizer que o diálogo inter-religioso está ainda no seu início – o que são algumas décadas quando comparados com séculos de hostilidade? – o que não deixa de ser verdade. Mas talvez a principal razão seja o facto de frequentemente os encontros se limitarem a falar de paz no geral e em abstracto e a realçarem o carácter pacífico da mensagem dos textos sagrados de cada religião sem procurarem formas de intervir concretamente, activamente e positivamente no processo de pacificação religiosa. Grande parte do que é hoje chamado diálogo inter-religioso não tem tido consequências práticas ao nível da convivência civilizacional. É evidentemente difícil. Em primeiro lugar, devido à longa desconfiança mútua e à ideia de que o «nosso» caminho é que é o bom, enquanto que a paz, hoje mais do que nunca significa viver e conviver com pessoas de religiões e com textos diferentes. «A era global», continua Sacks, «transformou o nosso mundo numa sociedade de estrangeiros. Seremos capazes de reconhecer a imagem de Deus em alguém que não é à nossa imagem: num hindu, num sikh, num cristão ou num muçulmano?» Esta é uma questão fulcral nos nossos dias. O Judaísmo tem uma longa experiência de vivência e convivência em minoria. Foi a primeira religião a debater-se com a realidade da dispersão global, a sobreviver no meio de outros povos e de outras tradições religiosas, procurando sempre a sua própria identidade. Do ponto de vista teológico, o Judaísmo acredita num único Deus mas não num caminho exclusivo para a «verdade». Um não-judeu que respeite as regras básicas da defesa da vida e da justiça é um dos «justos das nações do Mundo». Em consequência, de acordo com os ensinamentos judaicos, não é preciso ser judeu para servir Deus. Como disse Elie Wiesel «Não queremos um mundo mais judeu mas sim mais humano». A tentativa de impor uma unidade artificial à diversidade real é geradora de violência. Nenhuma fé é a fé de toda a humanidade. A ideia de que a verdade seria abstracta, universal e idêntica para todos tem sido responsável por grande parte da violência e do sangue jorrado ao longo da História. Porque se a verdade é idêntica para todos e é só uma, eu que acredito detê-la vou tentar impô-la, pela força se necessário. O maior antídoto contra a violência é o diálogo. A tendência natural dos dirigentes religiosos quando se encontram é de acentuar as semelhanças e aspectos comuns, como se as diferenças entre as religiões fossem superficiais ou triviais. Mas não é isso que vem à tona em tempos de conflito. Isto significa o quê? Significa que precisamos, conclui Sacks, não apenas de uma teologia do comum, não apenas de aceitarmos o que temos em comum, mas de aceitarmos e valorizarmos as diferenças. Cada religião, cada cultura, tem um contributo a dar para a totalidade da sabedoria humana. Os sábios do Talmude diziam: «Quem é sábio? Aquele que aprende com todos os homens». Para que o diálogo inter-religioso tenha consequências práticas tem de assumir a forma concreta de compromissos para a acção, do que em sociedades secularizadas que relegam o papel das religiões para a esfera exclusivamente privada, negando-lhes qualquer papel público, não é fácil. Com efeito, a eficácia do diálogo inter-religioso depende não só da relação das religiões entre si mas também da relação com a sociedade em que se integram e da abertura destas em relação ao seu papel. Assistimos hoje nas sociedades secularizadas e laicizadas do Ocidente europeu a uma forma de intolerância que ao mesmo tempo que acusa as religiões de serem fonte de conflito, lhes nega qualquer papel na pacificação social. Não se trata de procurar o poder – font0e de conflito – mas sim de participar no diálogo da humanidade. Nenhum campo da actividade humana deve estar arredado das preocupações das religiões e do seu diálogo. Sem essa participação, o diálogo inter-religioso não tem sentido nem eficácia.
A educação, uma questão-chave Em Portugal, nas últimas décadas, e, em particular, desde o 25 de Abril de 1974, desenvolveu-se o diálogo e a convivência amigável entre os líderes religiosos e comunitários. Quando, em Setembro de 2007, o cemitério judaico de Lisboa foi vandalizado por skinheads de extrema-direita, todas as confissões religiosas se uniram de imediato à Comunidade Judaica no protesto e na denúncia pública do acto, numa manifestação sem precedentes de solidariedade. Perceberam muito antes dos partidos e da sociedade civil que aquele acto ignóbil constituía uma ameaça à liberdade religiosa. Acompanhando a mudança dos tempos, a convivência inter-religiosa deve-se a uma maior abertura da Igreja Católica e à presença hoje em Portugal de uma crescente diversidade religiosa. O próprio Estado, ao legislar no sentido do reconhecimento dessa presença, assegurando a liberdade religiosa e as condições de igualdade de tratamento, contribuiu para essa aproximação. O diálogo inter-religioso tem incidido em iniciativas de defesa dos interesses das instituições religiosas, como seja a coordenação dos tempos de emissão na rádio e na televisão ou em questões concretas da liberdade religiosa, tais como a assistência religiosa nos hospitais, ou o reconhecimento civil dos casamentos religiosos; existe também uma participação conjunta em acções de divulgação dos princípios básicos das respectivas doutrinas e posições sobre questões tão variadas como a paz, a guerra, a sexualidade, a bioética... Mas embora esta convivência seja muito positiva, sobretudo quando comparada com a sua total ausência ainda há poucas décadas, ela não tem por si só um efeito positivo na coesão social. Um passo acaba de ser dado nesse sentido com a decisão do Forum Abraâmico de Portugal, instituição criada por cristãos, muçulmanos e judeus, de organizar, em colaboração com a Universidade Católica, um curso destinado essencialmente a professores de História, no sentido de contribuir para colmatar a ignorância, os preconceitos e os estereótipos contrários a uma convivência harmoniosa. Não existe hoje, felizmente, o ódio religioso em Portugal. Mas os preconceitos alimentados pela ignorância são um fermento de intolerância e eles existem em Portugal. Os manuais escolares são um claro reflexo disso veiculando, ainda que involuntariamente, estereótipos que em nada favorecem a vivência comum. A questão da educação é assim uma questão-chave do nosso tempo, não só para tirar da miséria e da humilhação zonas inteiras do globo mas também no combate ao choque de civilizações. Neste campo, as religiões podem e devem ter um papel muito mais preponderante. Há gestos públicos que pelo seu simbolismo têm um alto poder pedagógico e conciliador. Quem se deslocar ao Largo de São Domingos, em Lisboa, verá dois memoriais em diálogo, face a face: o judaico tem a forma de uma Estrela de David contendo a seguinte inscrição: «1506-2006 – Em memória dos milhares de judeus vítimas da intolerância e do fanatismo religioso assassinados no massacre iniciado a 19 de Abril de 1506 neste largo». O memorial cristão evoca a forma de uma cruz onde estão gravadas as palavras do Cardeal Patriarca de Lisboa no ano 2000: «Como comunidade maioritária nesta cidade, há perto de mil anos, a Igreja Católica reconhece profundamente manchada a sua memória por esses gestos e palavras, tantas vezes praticados em seu nome, indignos da pessoa humana e do Evangelho que ela anuncia»... O Largo de São Domingos é hoje testemunha da vontade de construir um novo relacionamento: através da voz das pedras ecoam simultaneamente a memória e a reconciliação. Saber ouvir as vozes múltiplas que se cruzam na Babel de hoje é, talvez, uma das chaves da Aliança de Civilizações.1 - Co-edição ASA Editores e Público , Abril 2007. 2 - HUNTINGTON, Samuel P. – O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Gradiva, 1999. 3 - BARNAVI, Elie – Israël-Palestine, Une Guerre de Religion?, Bayard, 2006. 4 - MAALOUF, Amin – As Identidades Assassinas, Difel, 2002. 5 - SACKS, Jonathan – A Dignidade da Diferença – como evitar o choque das civilizações, Gradiva, 2006.* Esther Mucznik Estudou Língua e Cultura Hebraicas e Sociologia na Sorbonne. Vice-Presidente da Comunidade Israelita de Lisboa. Membro dos corpos dirigentes da Associação de Estudos Judaicos. Membro da Comissão Permanente de Liberdade Religiosa. Co-fundadora do Forum Abraâmico (reúne as três religiões abraâmicas). Colunista do PÚBLICO desde 2002. Estudiosa das questões judaicas, tem coordenado cursos e seminários sobre história e cultura judaica e publicado diversos trabalhos sobre esta temática.
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