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- JANUS 2009 -



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Pós-secularismo

Teresa Toldy *

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A convicção de que a importância pública (e mesmo privada) da religião se desvaneceria, graças ao progresso resultante da modernidade, parece ter sido abalada. A religião, que, no berço da própria sociologia, tinha sido considerada como um resquício pré-moderno, «regressou», com manifestações caleidoscópicas de impacto público: pense-se em todas as formas de fundamentalismo, desde o islâmico, ao evangélico, passando pelo hinduísmo político.

De facto, o recrudescimento do impacto público da religião apela, segundo alguns autores, à necessidade de «des-mitologizar a modernidade» (Kaufmann) e, de acordo com outros, ao debate em torno da pertinência da introdução do conceito de «sociedade pós-secular» (baseada numa razão universal democrática) na análise do fenómeno (cf. Habermas).

Contudo, parecem poder perfilar-se outras hipóteses de análise, correspondentes a outras tantas perguntas: A secularização terá, de facto, sido um projecto concluído? Tem sempre os mesmos impactos sobre sociedades diversas? É um conceito unívoco? Que papel desempenham os discursos sobre a secularização e a religião na análise da diversidade cultural, nomeadamente, do espaço fora da Europa e dos cidadãos não--europeus que habitam na Europa?

 

«Desmitologizar a modernidade»?

Um dos traços distintivos da modernidade foi o desejo de autonomia face à religião, concretamente, à configuração sociológica do cristianismo ocidental como «cristandade», estruturada em torno de um duplo sistema dualista de classificação, que se traduzia num dualismo entre «este mundo» e o «outro mundo» e, por outro lado, num dualismo interior a este mundo, entre uma «esfera religiosa» e uma «esfera secular». Assim, a chamada «doutrina das duas espadas» implicava que a própria Igreja tivesse duas espadas: a espada do poder «do outro mundo» e a espada do poder religioso neste mundo. A modernidade significa, então, que o mundo do religioso deixa de ser a realidade totalizante. Agora, o mundo secular assume o papel de realidade global dentro da qual a religião terá (ou não) de encontrar o seu lugar. O paradigma deixa de ser o da obediência da criatura ao seu criador, cuja vontade lhe é manifestada através das autoridades eclesiásticas, para passar a ser o da autonomia de quem se dota a si mesmo de uma definição como ser racional: a fraternidade universal, baseada numa mesma paternidade divina, é substituída por uma fraternidade baseada na razão universal de Kant. Não é pacífica a tese de que esta rotação – a grande ruptura epistemológica no Ocidente – se tenha feito sem a própria religião. A este propósito, não pode deixar de se referir a monumental obra de Charles Taylor ( A Secular Age , 2007), que defende a ideia de que a secularidade nasceu de um «humanismo exclusivo», isto é, que excluiu a radicação última em Deus mas que resulta ele próprio de um deísmo providencial, este, por sua vez, tal como o próprio humanismo, herdeiro de um cristianismo ortodoxo. Ainda neste capítulo, é preciso distinguir entre as diversas formas assumidas pelo Cristianismo. Du-Bois-Reymond, num discurso à Academia Prussiana das Ciências, em 1883, afirma algo ilustrativo destas nuances incontornáveis: «Enquanto o Santo Ofício perseguiu os discípulos de Copérnico com fogo e prisão, Charles Darwin vagueia na Abadia de Westminster» (cit. in: Lübbe, 2007: 48).

O optimismo da razão moderna parece, contudo, ter ficado ensombrado pelos seus resultados traduzidos em termos de projecto(s) geopolítico(s) e mesmo sócio-antropológicos estabelecedores de uma gradação entre os seres humanos e os povos, de acordo com a sua maior proximidade ou distância das «luzes da razão». É assim que autores tão diversos como Kaufmann e Dussel consideram existir uma «mitologia da modernidade», que consiste na transformação de uma ordem cultural e social num ideal de uma nova forma de «sociedade perfeita» (Kaufmann). Note-se que a expressão foi utilizada pela teologia católica para definir a Igreja (ainda no século XX, até ao Concílio Vaticano II). Esta «sociedade perfeita», baseada na racionalidade ocidental, traduziu-se, na perspectiva de Dussel, num projecto eurocêntrico, colonial e colonialista que, de acordo ainda com alguns autores, se prolonga até aos dias de hoje, numa mentalidade «colonial sem colónias», isto é, e parafraseando Quijano (2000: 342), numa «colonialidade» que se traduz na «imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo» e que «opera em todos os planos, âmbitos e dimensões materiais e subjectivas da existência social quotidiana e à escala societal».

A «desmitologização da modernidade» – para a qual contribuíram epistemologicamente os estudos da Escola Crítica, bem como os feministas e pós-coloniais, mas também os múltiplos balanços das catástrofes humanas do século XX – parece, contudo, constituir, hoje, uma espada de dois gumes, já que é igualmente reivindicada por movimentos conservadores e fundamentalistas, tanto cristãos, como islâmicos, embora com matizes e formas de procedimento que, mescladas com opções geopolíticas e financeiras diversas, resultam em programas e formas de actuação diferentes. O que parece ser-lhes comum é aquilo que Habermas apelida de «um regresso à exclusividade de atitudes de crença pré-modernas» (cit. in: Borradori, 2004: 67), portanto, o retorno a uma recusa da secularização como autonomia da esfera do temporal face ao espiritual.

Na realidade, os diferentes tipos de reacção ao projecto de secularização da modernidade apelam a uma definição mais precisa das diversas configurações deste projecto, bem como das suas expressões, dimensões e implicações.

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Secularismo, secularidade e secularização

Na verdade, estamos perante conceitos muito discutidos. Se a «secularidade», no dizer de muitos autores, pode ser considerada uma característica da própria concepção cristã da criação do mundo como algo distinto do seu criador (cf. Weber, Gauchet, Berger), a «secularização», por seu turno, tendo começado por significar a separação entre o Estado e a Igreja, assim como a expropriação da propriedade eclesiástica pelo Estado («laicização»), evoluiu para uma separação de cariz cultural, significando a autonomia do temporal face aos símbolos religiosos (Berger), isto é, a perda de significância social das instituições, pensamentos e práticas religiosos (Wilson), ou ainda, numa ulterior radicalização, a redução da religião a um subsistema social de adesão voluntária, não condicionada por repressão ou pressão sócio-política (Luhmann), relegado para o plano privado, entendendo-se, então, como secularismo.

Contudo, o desaparecimento da religião do espaço público, vaticinado pela modernidade, com a sua subsequente remissão para o espaço privado, parece ter sido contrariado pelos acontecimentos mais recentes, reveladores de formas radicais de reivindicação da submissão da ordem pública a uma ordem religiosa. Melhor seria dizer-se, provavelmente, que as teorias sociológicas que previam esse eclipse terão sido surpreendidas por aquilo que alguns autores consideravam ser uma tendência crescente desde os anos 80 do século XX. A análise de José Casanova (1994), referente a essa época, é, neste aspecto, incontornável: analisando, à altura, os exemplos da revolução islâmica no Irão, da emergência do «Solidariedade» na Polónia, da revolução sandinista, na Nicarágua, e do fundamentalismo de sectores protestantes nos Estados Unidos, envolvidos na política de Estado, Casanova defende, precisamente, a necessidade de uma aproximação mais refinada ao conceito de secularização e distingue entre:

a) secularização como diferenciação: refere-se àquela que considera ser a legítima emancipação da esfera secular relativamente a instituições e normas religiosas, fundadora da própria modernidade;

b) secularização como declínio das crenças e práticas religiosas: na perspectiva do autor, esta compreensão da secularização resultou mais de um projecto inspirado na crítica iluminista da religião do que num facto. Simplesmente, Casanova considera que alguns governos tomaram esta crença no fim da religião como fundamento para a aplicação de políticas de imposição de uma secularização compulsória, que levou, muitas vezes, a um reacendimento de tendências radicais (pense-se no Irão ou nos grupos extremistas na Argélia);

c) secularização como remissão da religião para a esfera privada: este é o ponto nevrálgico da tese de Casanova. De facto, o autor considera que as religiões, actualmente, não aceitam ser marginalizadas e privatizadas, tendo recuperado o papel político e a vontade de influenciar a vida social e pública. A «desprivatização» constitui assim, na sua perspectiva, o traço característico da religião na actualidade, traço que ele ilustra com os casos mencionados, que têm em comum, precisamente, o facto de se tratar de situações em que a religião influenciou directamente a actividade política, mais, em que a religião configurou um projecto de sociedade.

 

Papel público da religião e sociedades pós-secularizadas

É precisamente o debate sobre o reaparecimento da religião na vida pública que subjaz ao conceito de «sociedade pós-secular» avançado por Habermas (2007). Na sua perspectiva, actualmente, a Europa constitui uma sociedade deste tipo, devendo procurar «adaptar-se à existência persistente de comunidades religiosas presentes num ambiente cada vez mais secularizado». A proposta de Habermas fundamenta-se na possibilidade de uma sociedade mundial multicultural (conceito que vai buscar a Eisenstadt) que procure chegar a um acordo (ainda que débil) em torno de uma «justiça entre as nações». Esta possibilidade supõe tanto que a «razão laica» se disponha a debater a compreensão restritiva que tem de si própria, que tende a considerar a religião como algo «em vias de extinção», como que a comunidade religiosa se disponibilize para «assimilar cognitivamente os fundamentos da modernidade».

Ainda que Habermas seja da opinião que todas as culturas têm passado pelos seus próprios processos de modernidade, parece ser lícito perguntar-se se a secularização e o secularismo são conceitos pertinentes ou, sequer, pensáveis para todas, visto que esta abordagem, pós-secular, pressupõe uma possibilidade de reenquadrar publicamente a religião sob a égide reguladora de uma razão que, na perspectiva de Habermas, constitui uma «versão laica», «intramundana», de categorias que fazem sentido no contexto de sociedades pós-cristãs: fala-se mesmo de uma «transcendência intramundana da prospectiva divina do Juízo Universal» (2007). Precisando a dúvida que se coloca: será uma secularização ou um secularismo pós-cristão pertinente para outras religiões?

Por outro lado, será que o conceito de secularização pode ser um instrumento, associado, inclusivamente, à liberdade religiosa, para justificar a protecção da religião de quem o invoca, com base na necessidade de neutralidade do Estado face a outra religião, tida pela primeira como ameaçadora ou perturbadora do espaço de maior influência daquela? É interessante referir aqui, a título ilustrativo, dois exemplos. Um deles diz respeito a uma afirmação de Mushir Ul-Haq, a propósito da possibilidade ou relevância de equacionar o secularismo em conjugação com o Islão: «Se o secularismo coloca a vida mundana fora do controlo da religião, isto constitui uma inovação sem precedentes na história islâmica e, portanto, é inaceitável para o crente». Para Mushir Ul-Haq, o secularismo só fará sentido se contribuir para proteger os muçulmanos do recrudescimento do extremismo hindu: «Mas se o secularismo significar apenas que o Estado não favorece nenhuma comunidade em particular em matéria de religião, então, pensa-se que está de acordo com a tradição islâmica, que confere liberdade religiosa a todos os cidadãos. Este conceito de secularismo não é estranho a um muçulmano e, portanto, ele não vê qualquer conflito entre o Islão e o secularismo» (1982: 177). Outro exemplo diz respeito a afirmações do Cardeal Danneels (cit. in Poorthuis, 2005), segundo o qual o Islão estaria a precisar de uma «Revolução Francesa», como aconteceu à Igreja Católica.

As tradições religiosas estarão preparadas para entrar em diálogo umas com as outras, sem que esse diálogo sofra a tentação de reproduzir formas de colonialismo cultural? Será possível pensar numa espécie de «ecologia das tradições religiosas»? O debate continua em aberto.

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Informação Complementar

Tradição e lugares de transição

O conceito de tradição constitui uma das grandes questões subjacentes ao diálogo dentro de cada comunidade religiosa, ao diálogo entre religiões e ao diálogo das mesmas com a sociedade e a racionalidade laicas. Coloca-se a pergunta da possibilidade, ou não, de uma abordagem crítica da tradição. De facto, a compreensão da possibilidade ou impossibilidade de uma perspectiva evolutiva da tradição desempenha um papel crucial na definição da identidade da comunidade religiosa que a suporta e que é suportada por ela, bem como na plausibilidade ou não de negociar aspectos dessa identidade com uma «racionalidade pós-secular». A tradição diz respeito à ligação entre os fundadores das religiões e as comunidades contemporâneas. Será, então, possível aspirar a uma «ecologia das tradições religiosas»? Esta exigiria, eventualmente, um trabalho de tradução que «permita criar uma inteligibilidade recíproca entre experiências do mundo» (Santos, 2006: 114), de forma a permitir fazer experiência da «emoção cosmopolita de partilhar o mundo com aqueles que não partilham o nosso conhecimento e a nossa experiência» (2006: 123), ou, para o colocar nas palavras de Ebrahim Moosa, aceitar viver «num limiar», numa «transição», «nos interstícios das culturas» (2007).

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* Teresa Toldy

Doutorada em Teologia pela Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt-Georgen (Frankfurt). Professora Associada da Universidade Fernando Pessoa. Investigadora do Centro de Estudos de Antropologia Aplicada da mesma Universidade. Investigadora associada (como pós-doutoranda) do Centro de Estudos Sociais (Universidade de Coimbra).

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Referências bibliográficas

BORRADORI, G., 2004 – Filosofia em Tempo de Terror. Diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida, Lisboa: Campo das Letras (orig. Philosophy in a Time of Terror ).

CASANOVA, J., 1994 – Public Religions in the Modern World. Chicago and London: The University of Chicago Press.

HABERMAS, J., 2007 – «La Rinascita Della Religione: Una Sfida Per L'autocomprensione Laica Della Modernità?». In: Rivista Elettronica Della Società Italiana di Filosofia Politica: http://www.sifp.it/convegno-sifp/convegno-sifp-13-15-settembre-2007/contributi-1/prova

LÜBBE, H., 2007 – «Religion in kulturellen und politischen Modernisierungsprozessen – Zur Aufklärung über die Aufklärung». In: Braun, C. v., Gräb, W. & Zachhuber, J (Hg.), Säkularisierung. Bilanz und Perspektiven Einer Umstrittenen These. Berlin: Lit Verlag, pp. 43-59.

POORTHUIS, M., 2005 – «Was Ging Schief Mit Bernard Lewis? Die Problematische Debatte Über Den Islam und die Aufklärung». In: Concilium. Internationale Zeitschrift für Theologie, 41/1, pp. 483-491.

QUIJANO, Anibal, 2000 – «Colonialidad del Poder y Classificacion Social», Journal of World-Systems Research, 6 (2), 342-386.

Ul-HAQ, Mushir, 1982 – «Islam in Secular India». In Donohue, J.; Esposito, John L. (ed.), Islam in Transition: Muslim Perspectives. New York: Oxford University Press, 175-177.

MOOSA, Ebrahim, 2007 – «Transitions in the “Progress” of Civilization: Theorizing History, Practice and Tradition». In: Cornell, V. J.; Henry-Blakemore, V.G; Safi, O. (eds.) – Voices of Islam, 5. Westport: Praeger Publishers, 115-130.

SANTOS, B. S., 2006 – «Uma Sociologia das Ausências e Uma Sociologia das Emergências», in: A Gramática do Tempo: Para Uma Nova Cultura Política [Para Um Novo Senso Comum. A Ciência, o Direito e a Política na Transição Paradigmática, vol. IV] Porto: Edições Afrontamento, pp. 87-125.

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