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Por vezes, a pergunta é: «Mas elas aceitam?» E às vezes a pergunta é: «Mas como é que elas aceitam?» A típica pergunta ocidental sobre as mulheres islâmicas anda entre estas duas variações. E quem tenha estado em vários países islâmicos tem dificuldade em responder, porque «elas» são muitas, e não uma, muitas vezes repetida. Uma rapariga de Beirute com jeans justos e wonderbra está a milhares de quilómetros de uma rapariga de burqa , em Kandahar, ou de uma marroquina, de uma egípcia ou de uma saudita. E depende da saudita, da egípcia, da marroquina, da afegã. Uma das baixas imediatas no «choque das civilizações» é a despersonalização. Mas, para tentar saber algo sobre as mulheres islâmicas, neste momento, talvez se possam colocar duas questões. Oito anos depois do 11 de Setembro, que características gerais se mantêm? E é possível apontar exemplos do que têm em comum e do que as distingue? Tentar continuamente responder a estas interrogações é o que fazem as três investigadoras islâmicas entrevistadas pelo Janus . Sherifa Zuhur — que em Outubro esteve na Fundação Gulbenkian, como oradora na Conferência de 2008 «Podemos viver sem o outro?» — passou por diversas universidades de topo (Americana no Cairo, UCLA, MIT), e actualmente está no Instituto de Estudos Estratégicos do U.S. Army War College. Como especialista em fundamentalismo islâmico e na situação das mulheres, publicou dez livros e colaborou com organizações de mulheres. «Continuam muitos dos problemas que persistiram durante eras, aqueles que resultam de sistemas patriarcais.» Mas houve circunstâncias que mudaram no último século: «Muito mais mulheres trabalham, têm uma voz pública através da escrita, dos media e da Internet, e mais jovens conseguem estudar.» E concretamente a partir do 11 de Setembro? «Em alguns países, pareceu haver abertura para reformas com impacto nas mulheres e mudanças que permitissem a sua inclusão na política. Por exemplo, em Marrocos, onde o rei já tinha apoiado uma quota para deputadas — apesar de terem de enfrentar eleições — deu-se uma muita esperada reforma da “mudawana” ou código familiar, que regula o casamento, o divórcio, a herança e o estatuto pessoal.» Entretanto, «na maior parte das nações do Golfo, e no Iraque, os assuntos das mulheres continuam a ser uma marca de “transformação” ou do seu contrário». Em países do Golfo, como Qatar, Koweit, Emirados, «estão a aumentar oportunidades profissionais e na universidade, mas muito tem dependido da vontade da liderança política de apoiar as causas das mulheres». Em alguns casos, aponta Sherifa Zuhur, «houve recuos em relação ao período antes do 11 de Setembro». Por exemplo, no Koweit, onde o emir apoiara o voto das mulheres, contra os elementos tribais e conservadores, «e elas montaram uma campanha para obter o voto». Ou no Iraque: «A devastação, o grande número de refugiados, um crescente número de viúvas e uma fase de rapto de mulheres levaram a que mais mulheres estejam entre o número crescente de pobres.» E não só: «As mulheres estão representadas no parlamento, mas agora há um sistema legal ambíguo que as limita mais em tribunais onde vigora a “sharia” [lei islâmica] do que sob as anteriores leis iraquianas.» Também houve um aumento de ameaças «contra as mulheres de negócios, as mulheres que conduzem, e as mulheres que não usam “hijab” [lenço que cobre o cabelo]». Por outro lado, o «choque de civilizações» «parece ter-se manifestado em França no debate sobre o lenço e na oposição do Reino Unido às mulheres cobrirem a cara (além do cabelo), e na identificação das mulheres muçulmanas com “extremismo”, quando, de facto, as mulheres que cobrem a cabeça e a cara raramente são extremistas», alerta Sherifa Zuhur. «Basicamente, a causa das mulheres é frequentemente assumida por aqueles que as querem salvar do “Islão”, o que é contraproducente.» A alternativa para conseguir mudanças será antes «trabalhar de perto com as comunidades». Desde o 11 de Setembro, esta investigadora esteve inumeras vezes no Egipto e na Arábia Saudita. «Há promessas e mudanças simbólicas ou concretas na Arábia Saudita. Nos últimos dois anos, a “mutawa'in”, ou polícia religiosa, não recebeu fundos adicionais e tem sido menos problemática e presente do que antes. O Ministério dos Assuntos Sociais tem uma vice-ministra. O Ministério dos Negócios Estrangeiros prometeu ter mulheres, mas, provavelmente, primeiro, como secretárias. As mulheres estão a entrar nas áreas típicas — como no Ocidente.» Mas «conduzir ainda não é possível e as mulheres não conseguiram autorização para votar nas eleições municipais». No Egipto, «onde a circuncisão feminina é muito popular», quando uma menina morreu em 2007 por ter sido circuncisada, «o governo emitiu uma proibição de um ano e reforçou essa proibição numa nova lei de protecção da criança, este Verão», adianta Zuhur. «Também houve vários confrontos entre a oposição política e as forças de segurança, e o uso do YouTube num dia festivo, quando várias mulheres foram molestadas por homens na rua, o que pôs em destaque o assédio físico e verbal de que são vítimas as mulheres, que acontece diariamente, e que tem piorado com os anos.”
Em comum O que as mulheres islâmicas têm em comum, diz Zuhur, advém de traços culturais: «As mulheres devem ser virgens ao casar e estar além de qualquer suspeita em termos de reputação sexual. E se assim não for podem ser mortas pelos membros masculinos da família por os terem desonrado.» Esta «noção cultural de honra está espalhada em muitos países islâmicos», sublinha, «mas, ao mesmo tempo, mais e mais mulheres estão a ter acesso à escola e ao trabalho». Quanto a leis, «frequentemente culpa-se a lei islâmica, mas também as leis civis, parcialmente derivadas da lei ocidental, de serem injustas para as mulheres em comparação com os homens». Tem havido, assim, muita ênfase em reformas jurídicas. «Por exemplo, em muitos países, homens que raptam mulheres e as violam não eram punidos se casassem com elas. A poligamia e outras formas de casamento múltiplo, como o casamento “urfi”, menos formal, estão a aumentar, o que torna as mulheres mais vulneráveis. Uma mulher «sozinha» — sem um homem — perde estatuto e possivelmente rendimento.» Também persiste a violência contra as mulheres e outros problemas dentro do casamento. «E apesar de as mulheres progredirem com muito sucesso nas escolas, muitas das mais velhas são iletradas, e as mais jovens não trabalham sempre na área para a qual se prepararam, visto que é esperado delas que casem e tenham filhos. Há um número surpreendentemente alto de homens que ainda não querem que as mulheres trabalhem, ou mulheres de quem se espera que trabalhem como um extra, para bâton.» Retorno acentuado à tradição «Existem diferenças muito importantes, sócio-económicas, geográficas, culturais», começa por sublinhar a marroquina Fatima Sadiqi, que dirige o Festival de Música Sagrada de Fez, mas que, além disso, é professora de Linguística e Estudos de Género e directora do Centro Isis para Mulheres e Desenvolvimento. «E as condições impostas pelas migrações para os países ocidentais fazem com que algumas mulheres sejam mais vítimas de abusos do que outras.» Por outro lado, se na era pós 11 de Setembro as mulheres podem ter tido ganhos económicos, regrediram nas liberdades individuais: «Houve um retorno muito acentuado às tradições. Tal manifestou-se a princípio por uma mudança na forma de vestir, depois cristalizou-se numa curiosidade sem precedentes de saber mais sobre a sua religião. Esta curiosidade é geralmente vista pelas novas vagas de jovens “feministas com véu” como um direito que lhes permite investir no campo religioso, culturalmente interdito durante séculos.» Quando se trata de olhar para as diferenças e nuances, o caso marroquino é um bom exemplo. «O que distingue as mulheres marroquinas é que muito cedo compreenderam que só os direitos legais podiam abrir caminho a outros direitos. Com lenço ou sem lenço, continuaram a lutar pela reforma do Código do Estatuto Pessoal, que as marginalizava tanto no seio da família como na sociedade. Apoiadas por muitos democratas (decisores, intelectuais, promotores dos direitos humanos, militantes, etc.), elas exprimiram-se por meios diversos: escritos em árabe e em francês, uma militância em partidos políticos, sobretudo de esquerda, e uma sociedade civil cada vez mais activa. A par da sua tenacidade e pragmatismo, as associações femininas e feministas conseguiram criar laços sólidos com todos os movimentos democratas marroquinos. De uma força de crítica, as marroquinas passaram a uma força de sugestão portadora de um projecto social. E esta força começou a pesar no tabuleiro político.» Ao ponto de se ter dado «uma estreia no mundo árabe-muçulmano», como lhe chama Fatima Sadiqi, a reforma de fundo do código da família: «As mulheres marroquinas podem pedir o divórcio, obter o direito de guarda das suas crianças e recusar casar antes dos 18 anos. A poligamia tornou-se praticamente impossível.» Para obter isto, diz Fatima Sadiqi, o movimento feminista marroquino foi «ajudado por uma monarquia aberta e sempre consciente do papel que as mulheres podem desempenhar», «pela suavização do Islão iniciada pela interpretação do Corão feita por intelectuais marroquinos» e pelo «apoio de protagonistas da sociedade civil e dos partidos políticos democráticos». «O percurso único do movimento feminista marroquino demonstra bem que as mulheres neste país são ao mesmo tempo as guardiãs da tradição e as agentes da mudança social. São um vector importante de uma modernização que se constrói do interior, mesmo se por vezes assume a forma do compromisso, para evitar qualquer marginalização. Afirmam-se na família e no casal numa atmosfera em que o casamento e a maternidade já não são considerados como os únicos factores de identificação.» Tudo isto representa «novas construções identitárias assentes no trabalho assalariado, no acesso a postos de alta responsabilidade e no empenho associativo». E , mais recentemente, as mulheres investiram em «territórios que estavam reservados aos homens, como o político», a imprensa, a criação artística — romance, pintura, escultura, fotografia, cinema. «Esta visibilidade social deu lugar a novas relações entre os sexos, na família e da sociedade em geral.» Mas continua a ser uma batalha, descreve Fatima Sadiqi. «O movimento feminista marroquino ainda combate resistências que frequentemente impedem as mulheres de gozar do direito de cidadania e dos privilégios que esse direito é suposto garantir a todos. As leis igualitárias enfrentam práticas discriminatórias. As regras sociais tornam-se rígidas quando se trata das mulheres. Em consequência, embora muitas marroquinas tenham investido fisicamente no espaço público, ainda não investiram concretamente nos planos psicológicos e simbólico.»
Novas políticas feministas Maleiha Malik é professora de Direito no King's College de Londres e autora de «Feminism and Muslim Women» (Cambridge University Press). Quanto à situação das mulheres islâmicas, a primeira ressalva que faz é esta: «Nos países de maioria muçulmana, mas também nos países de minoria muçulmana, a ideia de igualdade de género está a ser usada para fustigar o Islão, como parte da estratégia para justificar ataques em lugares como o Afeganistão e o Iraque.» E remete para um artigo que publicou há dois anos no Guardian , quando estava aceso o debate do véu na cabeça, no Reino Unido: «As mulheres muçulmanas na Europa que adoptam o véu podem estar a afirmar a sua identidade religiosa e ao mesmo tempo estarem determinadas a entrar na esfera pública como plenas cidadãs. Frequentemente também estão a tentar mudar o significado cultural e político do véu num contexto contemporâneo.» É isso que «as políticas feministas» têm de compreender, insiste Malik. Precisam de ser flexíveis para responder. «Ao atacar o véu, como no passado colonial, podem fortalecer o empenho de muitas muçulmanas em usá-lo e tornar mais difícil aos muçulmanos empreenderem o tão necessário debate sobre as mulheres e o Islão.» E isso, diz, “tem um efeito duplo nas muçulmanas; torna-as vítimas porque estão na dianteira nos ataques à sua religião; e fá-las tomar uma posição defensiva em que podem sentir necessidade de justificar em vez de desafiar as práticas patriarcais que as podem prejudizr». Em suma, podem sentir-se acossadas, entre aqueles que pensam que as estão a ajudar e aquilo que realmente, ou em primeiro lugar, lhes pesa.* Alexandra Lucas Coelho Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Mestranda em Portugal Islâmico e o Mediterrâneo, da Universidade do Algarve. Jornalista do PÚBLICO. Como repórter cobriu vários países do Médio Oriente, Norte de África e Ásia Central. Em 2007, publicou o livro “Oriente Próximo” na Relógio d'Água.
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