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Onde estou: | Janus 2009> Índice de artigos > Aliança de Civilizações: um caminho possível? > O diálogo intercultural > [ Elementos para a compreensão da violência entre culturas ] | |||
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Em França, Clichy-sous-Bois, Villeurbanne, Vitry-sur-Seine, Mantes-la-Jolie, Grigny, La Courneuve, Mureaux, Vauvert, são, entre tantos outros, lugares onde grassa, há mais de trinta anos, a guerra das banlieues , que alia jovens imigrantes de segunda ou terceira geração e franceses do Quart Monde . Com os atentados de Madrid (Março, 2004), as autoridades madrilenas passaram a olhar com outros olhos o cosmopolita Lavapiès, onde coabitam sem problemas magrebinos, hindus, chineses, africanos, bangladechis, sul-americanos. Os atentados de Casablanca (Maio, 2003) já tinham revelado o braço marroquino (quer dizer, vizinho) do fundamentalismo terrorista. Após os de Londres (Julho, 2005), a tranquila Leeds mostrou ser uma incubadora de jovens bombistas islâmicos, alguns de nacionalidade britânica, que agiam por conta própria. Mudemos de cenário: Ceuta e Melilla (entre Espanha e Marrocos), Lampedusa (entre a Tunísia e a Sicília), o golfo de Syrtes (Líbia-Itália), as Canárias e os «corredores» Albânia-Itália do Adriático são lugares onde é intensa a pressão migratória Sul-Norte e Leste-Oeste, como é, a Norte, o enclave russo de Kaliningrad (entre a Lituânia e a Polónia). Por um lado, o Sul e o Leste pobres procuram a Europa rica de Schengen; por outro, parte das segundas e terceiras gerações de imigrantes tornam-se num sério problema de «integração» para a mesma Europa. Pressão migratória «informal», problemas duradouros com segundas e terceiras gerações de imigrantes, percepção de que parte dos envolvidos em actos de terrorismo «islamista» são residentes nos países-alvos ou nos seus vizinhos: estes fenómenos exprimem realidades diversas que só as extremas-direitas europeias tentam amalgamar. Mas a sua sobreposição artificial estimula a percepção de uma ameaça que passa, em duas gerações, de «externa» a «interna». A conflitualidade etno-cultural e religiosa na Europa plasma-se, hoje, em tal pano de fundo. No mundo contemporâneo, a desigualdade económica e social (a perpetuação da precaridade e da exclusão) sobredetermina a conflitualidade etno-cultural e religiosa no seio da mesma sociedade ou entre sociedades diferentes. Não existem soluções militares ou armadas para esta conflitualidade, que se exprime em confrontos identitários contra desigualdades percepcionadas como injustas e irreformáveis, e enraizadas em ressentimentos históricos. É geralmente aceite que «a tolerância de uns tem como limite a intolerância de outros», e que a «paz musculada» imposta pela força pode, temporariamente, inibir a expressão de tensões. Mas, parafraseando um aforismo francês, podemos dizer, sobre tal matéria: chassez les identités, elles reviennent au galop. O «choque de civilizações» Bem antes do novo terrorismo islamista ter entrado espectacularmente na cena internacional (a 11 de Setembro de 2001), a violência gerada pelo interface multicultural era bem conhecida do «Ocidente», através dos incidentes nas «zonas problemáticas» das metrópoles cosmopolitas, e, à escala global, através das tensões locais inter-étnicas e inter-religiosas. Tão africano, australiano, asiático e latino-americano como «Ocidental», o fenómeno era percepcionado como de natureza dispersa e micro-social. O «choque de civilizações» anunciado por Huntington (artigo de 1993, livro de 1996) forjou a teoria geral dessa conflitualidade, projectando-a no macro-cenário da globalização. Na linguagem dos media, o «choque de civilizações» substituiu a «guerra fria», ocupando o espaço por esta deixado livre. A «guerra fria» designava um mundo dividido pela influência de duas super-potências, EUA e URSS. O «choque de civilizações» designa redutoramente a rivalidade, bem mais difusa, entre «Ocidente» e «Islão». As duas fórmulas propõem a percepção simples de um mundo tido por bipolar onde duradouramente conflituam um protagonista e o seu antagonista, de tal modo que os equilíbrios/desequilíbrios mundiais dependem desse conflito. O «grande inimigo externo» é ao mesmo tempo real e fantasmático: a sua dimensão imaginária vive da diabolização e dos estereótipos que cada campo fabrica sobre o outro. As duas fórmulas não coexistiram: artefactos semânticos como estes substituem-se uns aos outros. Aceitando centrar a reflexão nas tensões entre «Ocidente» e «Islão», não esqueçamos que a conflitualidade inter-racial, inter-étnica e inter-religiosa é mais vasta e polimorfa: as guerras inter-étnicas em África, a xenofobia anti-judeus na Europa, a gestão da «terra de ninguém» entre o México e os EUA, o conflito indiano-paquistanês em Cachemira, a questão tibetana, a querela Cambodja-Tailândia sobre o templo de Preah Vihear, o papel dos movimentos religiosos e monásticos na luta contra a junta de Burma aí estão para no-lo lembrar. É de Blaise Pascal (1623-1662) a declaração de que não existe violência sectária mais bárbara que a movida pela religião. No início do século XXI, as religiões, partes integrantes das culturas, voltaram a ser a causa parcial de violência, provocada, entre outros, por fanatismos islamistas. Ora, a Europa conhece bem a importância da religião como factor de violência: mostram-no os pogroms , as perseguições, a Inquisição e as limpezas étnicas ao longo da sua história, as guerras religiosas do século XVI e a vasta herança do cruzadismo cristão contra «o turco», «o mouro», o «infiel». Se somarmos a estes dados as colonizações europeias de países e territórios árabes e o modo como foi criado o Estado de Israel, teremos a chave para explicar o ressentimento magrebino e do Próximo e Médio Oriente face à Europa. Em qualquer das «religiões do Livro» (Judaísmo, Cristianismo, Islamismo), os extremismos religiosos/políticos/militares apoiam-se em selectas dos textos sagrados – por vezes brandidas como os «livrinhos vermelhos» da revolução cultural maoísta – e em interpretrações sectárias ou literalistas desses mesmos textos. Os sectarismos cristãos na sociedade americana, como os extremismos judeus em Israel, não são intelectualmente diferentes da interpretação do Corão pelo integrismo wahabita ou pelos teólogos da revolução iraniana. E os políticos islâmicos não citam mais o Corão do que os políticos do «Ocidente» citaram e citam a Bíblia – pense-se no uso dos livros proféticos por George W. Bush.
Os textos sagrados Os textos sagrados sempre foram fonte de inspiração e de citações para o discurso político porque são metafóricos, normativos e fáceis de entender como fairy tales , embora tão susceptíveis de interpretações diversas como o sistema dos provérbios. E foram testados, na longa duração, pelo vasto mercado dos crentes – o que os transforma em conteúdos populares fiáveis. No caso da Igreja Católica, a sua ductilidade e polissemia legitimaram a pobreza franciscana e a opulência papal, o Santo Ofício, o Concílio Vaticano II, a experiência militante das Igrejas latino-americanas. Devido à sua polissemia, os aparelhos eclesiais tendem a policiar a hermenêutica de tais textos: Lutero, que traduziu a Bíblia para uma língua comum, reduzindo a autoridade interpretativa da casta sacerdotal que lia latim, foi excomungado por ter respondido ao Papa que «não se submetia a leis ao interpretar a palavra de Deus». Os Estados de maioria islâmica são toscamente referidos como teocratizantes (apesar dos regimes secularistas que, no século XX, mudaram a Turquia, o Egipto, a Tunísia, a Argélia, a Síria, o Iraque, a Líbia, ...). Em rigor, são teocráticos a monarquia Saudita, o sultanato de Oman e o Irão chiita pós-Khomeini. Nos restantes (salvo no caso turco), existem, sim, oposições que visam a restauração da teocracia. Mas os «Irmãos Muçulmanos» egípcios, por exemplo, fazem campanha sob o slogan «O Islão é a solução», tão vazio e moderno como os das campanhas políticas ocidentais. A monarquia saudita projecta-se internacionalmente através do financiamento de mesquitas e da assistência sócio-religiosa à diáspora sunita – prática comparável à do Vaticano (outro Estado teocrático), que tenta manter uma «magistratura de influência» universal. O Irão visa tornar-se na potência regional dominante. Oman tenta garantir a sobrevivência na era pós-petróleo, que dele se aproxima a passos largos. O Islão não pode ser representado pelos seus extremismos arcaizantes, como Florença não o é pela teocracia de Savonarola (de 1490 a 1497) contra os Médici. Desde o 11 de Setembro, o mundo islâmico é facilmente percepcionado, no «Ocidente», como um vasto corpo mole e policentrado, talvez perigosamente hegemonizável por um populismo religioso vingativo. Mas o antídoto contra os extremismos violentos é o diálogo e a cooperação estratégica entre «Ocidente» e o «Islão moderado», maioritário, que pretende trilhar as suas próprias vias de desenvolvimento. Neste jogo de movediças relações de força, a responsabilidade do «Ocidente» é pesada: se amalgamar «Islão moderado» e «Islão extremista», desprezará aliados decisivos e comprometerá soluções dialogais que favorecem a paz e a concertação. Ismail Serageldin, director da Biblioteca de Alexandria, desafia «Ocidente» e «Islão moderado» a lidarem com os extremismos violentos de inspiração religiosa como a medicina alopática lida com os surtos epidémicos: é preciso não os menosprezar, é preciso descrevê-los e explicá-los, circunscrevê-los e adoptar os tratamentos e profilaxias necessários. Os extremismos islâmicos violentos promovem a ideia de que os «ocidentais», globalmente «infiéis», devem ser tratados pelos membros da Comunidade de Crentes como não-muçulmanos hostis. As religiões do Livro propõem aos seus crentes que «odeiem o pecado e não o pecador», mas tal norma revela-se de prática difícil: onde existe pecado sem pecador?
Regresso das religiões O «regresso das religiões» às dinâmicas centrais da vida mundial, anunciado após o fim da «guerra fria» como propenso a ocupar o espaço deixado vazio pela «morte das ideologias», confirmou-se e marcará, decerto, parte do século XXI. Esta convicção, hoje muito partilhada, conduz a cultura política «ocidental», dessacralizante e secularista, a pensar a época «pós-laicismo» em que agora entramos. A gestão política da diversidade religiosa e do seu peso – sobretudo jurídico – na contratualidade social contemporânea é um dos problemas definitórios do mundo actual, como lembrou, em 2008, o arcebispo de Cantuária, sugerindo a coexistência parcelar da charia e do direito britânico. Muitos «ocidentais» condenam a desproporção entre causas e efeitos, no domínio da conflitualidade simbólica inter-religiosa. Por exemplo, não entendem como cartoons satíricos sobre Maomé, publicados num jornal dinamarquês, suscitaram um movimento popular de repúdio em tantas cidadelas islâmicas. As instituições políticas ocidentais explicam – e com razão – que tais cartoons resultam da liberdade de opinião e de imprensa, valores essenciais da democracia. Mas, no mundo islâmico, os cartoons são a chama do fósforo que incendeia um depósito de combustível, sendo o combustível o ressentimento histórico acumulado. Apesar de instrumentalizada, a resposta da «rua» islâmica aos cartoons é tipicamente uma resposta «histérica» à saturação de referências negativas. Ora, a instrumentalização do ressentimento (como as condenações por apostasia, nas fatwas de ulemas contra escritores e intelectuais) encontra instrumentos particularmente dúcteis na interpretação sectária de textos sagrados. As culturas políticas islâmicas, na sua diversidade, partilham a percepção de que a ideia ocidental de justiça não é universal. Por que razão norte-americanos não serão eventualmente julgados pelo Tribunal Penal Internacional? Que ideia de justiça inspira isenções de culpa, detenções discriminatórias ou prisões-tribunais como Guantanamo? Enquanto esta duplicidade se mantiver, é difícil defender que o «Ocidente» não se rege, nesta matéria, por «dois pesos e duas medidas». Ora, a percepção islâmica da justiça «ocidental» não contribui para a generalização de um Direito moderno e de autoridades judiciais independentes em boa parte do mundo islamizado, onde diversas versões da charia disputam terreno à justiça secular. Comecemos, talvez, pelo mais simples: numa conferência recente, um diplomata europeu queixa-se a um universitário árabe da dificuldade que enfrentou no Cairo para organizar um simpósio durante o Ramadão. O seu interlocutor responde tratar-se da mesma dificuldade que ele próprio defronta na Europa para organizar um seminário em Agosto: terão os europeus transformado os congés payés legados por Léon Blum numa questão metafísica? Será Agosto o mês da Religião Ocidental das Férias Pagas, sobre o qual recai o interdito de trabalhar? Esta esgrima cosmopolita mostra o fardo de mal-entendidos que ainda transportamos, quando tanto precisamos de reduzir o seu peso para criarmos terrenos de diálogo.* João Maria Mendes Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Docente na Escola Superior de Cinema e Teatro e na Universidade Autónoma de Lisboa. Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL. Os temas quentes do Islão contemporâneo visto do «Ocidente» Elemntos de dinâmica das culturas islâmicas contemporâneas
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