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- JANUS 2009 -



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Violência e desmodernização sócio-cultural

João Maria Mendes *

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Nove anos depois de Maio de 68, Maurice Grimaud, prefeito de polícia à época dos «acontecimentos» do Quartier Latin , escrevia ( En Mai fais ce qu'il te plaît , Paris, Stock, 1977): «Uma certa contenção foi finalmente mais forte do que a dupla tentação da violência revolucionária e da repressão cega. De um lado e do outro, andámos muitas vezes rentes à linha vermelha, mas nunca a ultrapassámos deliberadamente. É essa a verdadeira vitória de Maio».

Poucos anos depois, em França, os motins e tumultos contagiosos nas cidadelas de HLM (habitações de renda moderada) eram maioritariamente resultantes de incidentes com a polícia envolvendo a morte de um ou mais jovens residentes. Operações «stop», perseguições nocturnas e tiroteios ocasionais passaram a mostrar que, de um lado e do outro, a linha vermelha era agora sistematicamente ultrapassada.

A própria violência «insurreccional» mudara: autocarros e comboios, veículos privados, contentores de lixo, cabinas telefónicas, mobiliário urbano e espaços comuns de prédios, elevadores, tornavam-se alvos predilectos de destruições e incêndios. Motoristas de transportes públicos, bombeiros, por vezes jornalistas (dependendo de que órgãos e vindos com quem) e, evidentemente, polícias e «colaboradores racistas», alvos predilectos de agressões.

Os rodeos da década de 80 (ralis destruidores com topos de gama roubados, a seguir incendiados: dezenas por ano na década, só na região de Lyon), os motins nas «cidadelas da exclusão», o agravamento da violência escolar ( rackett , segregação racial, agressões a docentes, guerras de gangs ) tinham-se instalado num cenário geral de «incivilidade» (insultos correntes na rua, vandalismo, destruições deliberadas de bens, pilhagens). O fenómeno não nasceu em França nem era tipicamente francês: o texto de referência sobre a relação entre «incivilidade» e «violência urbana» é, aliás, americano – Broken Windows , de Wilson, Q., e Kelling, L., no The Atlantic Monthly de Boston, Março de 1972. E as duas dúzias de levantamentos insurreccionais importantes nas periferias francesas, entre 1990 e 95, evocam de muito perto os motins de Los Angeles, de 1992, provocados pelo espancamento brutal de um negro por agentes da polícia, registado por um amador num vídeo que passou nas televisões (os agentes foram ilibados em tribunal).

 

Violência infra e suprapolítica

No seu Violence en France , Seuil, 1999, Michel Wieviorka diz que as revoltas das cidadelas e dos «bairros problemáticos» se tornaram, a partir de 1980, infrapolíticas ou metapolíticas. A violência infrapolítica, física e eventualmente simbólica, não visa a «revolução» nem transporta um projecto de sociedade: é uma explosão de negatividade que reage contra um estado de coisas definido pela precaridade e a exclusão; estado de coisas que inibe qualquer ideia de futuro. Exprime, assim, a raiva acumulada. A violência metapolítica é física e sempre simbólica, mas é hiperbólica e exprime objectivos abstractizados, como nos casos do anti-semitismo, do racismo anti-magrebino ou do terrorismo islamista. No fim da primeira década do século XXI, a violência meta-política de Wieviorka parece designar prioritariamente as actividades inspiradas na Al Qaeda e semelhantes.

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A permeabilidade entre estas duas formas de violência é fraca, mas ambas têm em comum a perda de horizontes e objectivos concretos, expressos por um «programa» (revolucionário ou outro). A violência infra-política reterritoriliza e fulaniza os conflitos, tanto quanto a violência suprapolítica (termo que preferimos ao de «meta-política») os torna abstractos e simbólicos, embora não menos sangrentos. Quando, em 29 de Setembro de 1995, Khaled Kelkal (oriundo da cidadela de Vaulx-en-Velin) é morto pela polícia perto de Lyon, no fim de um Verão de atentados «islamistas», deixa ao Le Monde uma entrevista (publicada dias depois, a 7 de Outubro) em que diz que a violência é a linguagem «dos que não têm lugar na sociedade»: não é uma declaração «islamista», é o credo das «cidadelas da exclusão».

A violência suprapolítica entende-se a si própria como um meio ao serviço de fins, é organizada e racionalizada e implica persistência, frieza e cálculo, pede graus de operacionalidade exigentes. A violência infra-política é geralmente protagonizada por grupos efémeros e de geometria variável que frequentemente se desfazem na ressaca de tumultos para se refazerem no próximo; está mais próxima da «incivilidade» (que a primeira, clandestina, não pode ostentar) e é característica das explosões espontâneas e reactivas a uma situação concreta. O perigo mais significativo é o de que a «incivilidade» e a violência infrapolítica se tornem escolas generalistas que preparam adolescentes e jovens para a violência suprapolítica.

 

Desmodernização e «descontinuação»

A diferença mais substancial entre os cenários de luta social dos anos 60-70 e 80-90 resulta da desmodernização de boa parte do capital social e humano envolvido no mundo do trabalho. A entrada na era pós-industrial, o desaparecimento de sectores inteiros da vida económica, a emergência do desemprego como solução gestionária e já não como problema, o acantonamento de ex-trabalhadores agora excluídos privam um sem número de indivíduos (o pós-proletariado da desindustrialização, algumas franjas da antiga classe média, os «novos pobres», os imigrantes que perderam a sua utilidade económica) dos meios de integração económicos, sociais e culturais necessários à realização de quaisquer trajectos pessoais. É, assim, que cada pessoa é atingida no seu âmago, na adolescência ou na juventude porque a privam de futuro, a meio da vida activa, porque o seu trabalho já não é necessário ou se tornou obsoleto.

Esta «descontinuação», brutal e desqualificante, de parte das actividades económicas, é sempre feita em nome da «modernização» social – veja-se o caso português – mas, de facto, envolve a retirada da «modernidade» (definida pelo progresso industrial, a abundância de trabalho e o acesso às indústrias culturais) de parte da população activa. Em rigor, portanto, trata-se de um movimento de desmodernização e não do seu contrário.

É significativo que sejam os filhos dos imigrantes realojados em HLM – anteriormente símbolos de integração, mas rapidamente degradados – a protagonizar, face ao desaparecimento dos equilíbrios sociais dos anos 60-70, a violência infrapolítica (maioritária) e a suprapolítica (minoritária) das décadas seguintes.

A situação varia muito de país para país, por razões de cultura política dominante: nos EUA ou em Itália, ninguém espera do Estado que se ocupe dos reequilíbrios sociais. Mas, nos países influenciados pelo modelo republicano francês, a deserção do Estado (equivalente ao desaparecimento do «pai» numa família patriarcal) exprime-se na crise dos serviços públicos: a escola deixa de saber o que e para quê ensinar e não vê na sociedade quem eduque; o sistema de transportes públicos entra em pânico devido à insegurança; o de saúde degrada-se e é progressivamente substituído pelo privado; as polícias hesitam sobre a natureza e limites da sua intervenção; a Justiça colapsa por falta de meios, no seu autismo corporativo; a função pública em geral luta contra a sua «modernização». Os conflitos descem à escola, ao autocarro, ao comboio, ao tribunal e à esquadra, à urgência hospitalar e à reparticão de finanças. Incivilidade e violência infrapolítica dão as mãos e generalizam-se.

 

Incompreensões de esquerda

Face à violência infra e suprapolítica, a esquerda perdeu capacidade de compreensão e de intervenção. Ainda nos anos 70, a esquerda criticava, sob a influência de Michel Foucault, a «sociedade do controlo» e os «aparelhos de poder». J.-P. Sartre, depois do apoio à Cause du Peuple , quando esta ameaçava passar à acção directa, ainda visitou, em 1974, os presos da Fracção do Exército Vermelho , em Stammheim. Foucault fez campanha contra a extradição do advogado Klaus Croissant, próximo do grupo Baader-Meinhof, e visitou o Irão no início da revolução Islâmica, em 1979.

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Por ter naturalmente apoiado os movimentos armados anti-coloniais e por ser tradição sua, por boas razões, compreender a inevitabilidade da violência em situação de esgotamento do diálogo negocial, a esquerda tendeu a ser por extensão, e fora do poder, complacente com o «brigadismo» italiano e alemão dos anos 70 e com o «terrorismo palestiniano» nas suas diversas versões (Fatah, FPLP, FDLP, Abu Nidal, Setembro Negro). E teve dificuldade em aceitar as definições correntes de «terrorismo», mesmo quando este passou a eleger como alvos «civis não-combatentes» (veraneantes e turistas ou simples transeuntes). Mas, ao mesmo tempo, no poder, a esquerda ocupou o espaço das preocupações securitárias, tentando desarmar eleitoralmente o fantasma da «insegurança», próprio da direita. Em França, por exemplo, foi o ministro socialista Pierre Joxe quem criou o Instituto de Altos Estudos da Segurança Interna (IHESI).

A violência das «cidadelas da exclusão», precisamente por não herdar nem o espírito nem o programa das violências revolucionárias, torna-se, para a esquerda – como sempre foi para a direita – um fenómeno marginal, anti-social e incompreensível: já não são as banlieues rouges (as «cinturas vermelhas» industriais, também portuguesas) que a enquadram, porque as banlieues rouges se afundaram com a desmodernização. E com elas foi «descontinuada» a antiga ordem sócio-cultural vinda do movimento operário, com os seus partidos, sindicatos e associações, e com a sua ideia de educação da infância, de experiência adolescente e de vida activa adulta. É toda uma ordem social que está de partida, e os seus «trabalhadores imigrados» com ela (estes, ou regressam a casa ou são enviados para um exílio interno e tornam-se, com os seus descendentes, um problema de integração). Desaparece a sociedade inspirada pelo conflito e a negociação de classes, e a ideia de vida assente na produção útil, no trabalho e no emprego. Por sua vez, este universo herdeiro do movimento operário apenas representa, para os novos insurrectos das cidadelas, a outra face – envelhecida e igualmente sem soluções – do establishment que nada tem para lhes oferecer.

Mas a dificuldade da esquerda em lidar com a conflitualidade inter-étnica é mais complexa: se, para menorizar e desmediatizar incidentes gerados por uma minoria étnica, uma polícia aceita instruções políticas para desmentir tais incidentes (protegendo a imagem de uma região turística, por exemplo), a esquerda facilmente se cola ao desmentido policial, denegando a realidade e refugiando-se na cegueira deliberada, em nome de um multiculturalismo beato e politicamente correcto, que apenas contribui para perpetuar a ignorância e o quietismo em áreas que exigem compreensão e intervenção.

 

Internally Dislocated People

Um pouco por todo o mundo, as crises de refugiados provocadas pelas guerras ou por catástrofes naturais, sobretudo em países não-desenvolvidos ou «em desenvolvimento», tornaram-nos familiar a fórmula Internally Dislocated People (IDP), que se refere a gente massivamente deslocalizada e em situação de precaridade total, sobrevivendo de campanhas de solidariedade internacional.

Mas é vantajoso compreender que a revolução liberalizante das sociedades desenvolvidas, e a desmodernização e «descontinuação» de parte do seu capital social e humano, produziu e continua a produzir os seus próprios IDP, que sobrevivem do que resta de enquadramentos estatais, apertados pela tenaz securitária e sem «solidariedade internacional». É entre a multidão destes «deixados por conta» de uma sociedade em vias de extinção que medram as violências infra e suprapolíticas.

Entre a faixa de Gaza e os ghettos comunitaristas ou semi-integrados das sociedades desenvolvidas contemporâneas, há mais semelhanças do que as diferenças que o Google Earth e os media põem sob o nosso olhar: o mapa não é o território e a falta de futuro é transterritorial.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Docente na Escola Superior de Cinema e Teatro e na Universidade Autónoma de Lisboa. Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL.

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

Link em nova janela Tipos de violência comum nas sociedades contemporâneas e sua percepção

Link em nova janela A violência do ponto de vista dos seus protagonistas

Link em nova janela Importância dos media na divulgação / amplificação da violência (I)

Link em nova janela Importância dos media na divulgação / amplificação da violência (II)

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