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Antes disso houve, naturalmente, a criação do Estado de Israel e as guerras que se lhe seguiram, a dos Seis Dias, em 1967, e a do Yom Kippur, em 1973, mas esses eram vistos como acontecimentos essencialmente políticos e não tinham, ainda, o peso da religião. Curiosamente, foi em 1980, um ano depois da revolução no Irão, que nasceu a CNN, o canal de televisão norte-americano que marcou uma nova forma de fazer informação: em directo, em tempo real. E se as décadas de 80 e 90 assistiram, gradualmente, a um aumento de atenção relativamente ao Islão e aos muçulmanos, foram também as décadas de domínio da CNN (à qual responderam outras cadeias de informação, começando pela britânica BBC e passando por um fenómeno novo, o primeiro canal árabe global de informação contínua, a Al-Jazeera). Em Agosto de 1990, o então presidente do Iraque, Saddam Hussein, invadiu o Kuwait, dando início à Guerra do Golfo. Foi o período áureo da CNN, que teve um domínio quase exclusivo sobre a informação, com reportagens em directo de uma Bagdad sob bombardeamento das forças aliadas. Dez anos mais tarde, no início de uma nova década – e de um novo século –, a 11 de Setembro de 2001, com os ataques terroristas contra os EUA, o mundo mudou novamente. O Islão tornou-se o centro das notícias como nunca antes acontecera – e, pela primeira vez, os países ocidentais começaram a dar atenção aos muçulmanos que vivem na Europa e nos EUA, muitos deles filhos de imigrantes e já nascidos nestes países. A pergunta que os americanos fizeram e que ficou célebre foi «porque é que eles nos odeiam?». Como é que a CNN, a BBC e os media ocidentais em geral responderam ao desafio de encontrar uma resposta? Duas constatações iniciais: a primeira é que nunca anteriormente houve tantas tentativas de explicar e entender a religião islâmica; a segunda é a de que os muçulmanos por todo o mundo consideram, de forma quase unânime, que são mal representados pelos media ocidentais e que são vítimas de preconceitos e estereótipos.
Histórias sobre terrorismo Os estudos realizados sobre o tema parecem confirmar esta impressão. Um exemplo é o recente (de Julho de 2008) Images of Islam in the UK – The Representation of British Muslims in the National Print News Media 2000-2008 , realizado pelo departamento de Media e Estudos Culturais da Escola de Jornalismo da Universidade de Cardiff, no Reino Unido. A primeira conclusão do estudo é a de que a cobertura de temas ligados aos muçulmanos britânicos aumentou de forma significativa a partir de 2000, atingindo um pico em 2006 e mantendo-se em níveis elevados em 2007 e 2008. Este aumento de atenção prende-se, obviamente, com temas ligados ao terrorismo – «36% das histórias sobre os muçulmanos britânicos são sobre terrorismo», e isto é «particularmente evidente depois dos ataques terroristas nos EUA e no Reino Unido em 2001 e 2005». Outra das conclusões é a de que «a linguagem usada sobre os muçulmanos britânicos reflecte os contextos negativos ou problemáticos em que eles tendem a aparecer». São geralmente associados a «ameaças, problemas ou em oposição aos valores britânicos dominantes». Um exemplo: «a ideia de que o Islão é perigoso, atrasado ou irracional está presente em 26 por cento das histórias; por contraste, apenas 2% veiculam a ideia de que os muçulmanos apoiam os valores morais dominantes». As palavras têm um enorme peso mesmo quando, aparentemente, pretendem fazer uma descrição objectiva: os muçulmanos britânicos são identificados nos media geralmente como «extremistas», «islamistas», «bombistas suicidas» ou «militantes» e muito raramente como, por exemplo, «estudiosos» (em inglês scholars ). Por vezes, a intenção pode não ser a de reforçar um estereótipo, mas isso acaba por acontecer de forma quase imperceptível – um dos exemplos mais frequentes é o do uso da palavra «véu» nos títulos de trabalhos sobre mulheres muçulmanas, com expressões como «debaixo do véu» ou «por detrás do véu». Muito importante também é a escolha das imagens. Mais uma vez, nesse campo, o estudo conclui que há uma série de estereótipos que se repetem. Ao contrário dos cristãos, por exemplo, os muçulmanos são, na maioria das vezes, mostrados no seu ambiente religioso, na mesquita ou em oração, o que faz com que a identificação seja sempre pela religião e não por outras características («são muito menos identificados pelo seu trabalho ou profissão do que os não-muçulmanos», referem os autores do estudo). Algumas das figuras mais frequentemente usadas nas imagens que acompanham artigos ou peças sobre muçulmanos britânicos são os chamados «líderes religiosos radicais» como Abu Qatada, Omar Bakri Mohammed e, sobretudo, Abu Hamza al-Masri, que é cego de um olho e tem um gancho a substituir uma das mãos, o que lhe dá uma imagem particularmente ameaçadora. A necessidade de manter o público atento e interessado e de o ajudar a identificar facilmente um assunto leva também os editores a recorrer aos estereótipos: muçulmanos em fúria com o Corão das mãos, mulheres completamente tapadas, em vez de imagens do quotidiano (muitas vezes bastante mais «ocidentalizado», e por isso mesmo menos identificativo) desses países.
Simplificar a mensagem A situação repete-se na maioria dos media ocidentais. A televisão, em particular, tende a simplificar a mensagem e a reduzir conflitos complexos (como os do Líbano ou do Afeganistão) a realidades mais simples e facilmente apreensíveis numa peça curta. As imagens têm aí, naturalmente, um enorme peso. Katharina Nötzold, num trabalho intitulado Do Western Media Realy Understand the Islamic World? defende que a cobertura, considerada negativa, que os media ocidentais fazem do Islão pode ser marcada por preconceitos existentes nas sociedades mas resulta também de alguma ignorância em relação ao tema. «É muito simples culpar apenas os jornalistas ocidentais por espalharem estereótipos junto das suas audiências. Mas onde é que estas imagens são criadas? São realmente criadas para denegrir um povo ou uma fé ou podem surgir a partir de outros factores, como o tempo e as limitações económicas nas organizações de media, que ditam a cobertura do mundo árabe ou do Islão ou a obrigação de os jornalistas explicarem tudo, mesmo os acontecimentos que não têm uma explicação razoável para as pessoas no mundo ocidental?», interroga-se. Nötzold toca num ponto importante (confirmado através de várias conversas que manteve com jornalistas): o 11 de Setembro obrigou jornalistas que tinham um conhecimento reduzido do Islão a tornarem-se, de um dia para o outro, praticamente especialistas do tema. Tendo dominado os noticiários de uma forma quase absoluta durante meses, o assunto foi tratado e discutido por jornalistas que habitualmente cobrem outras áreas ou por pivots generalistas. Houve também (e aqui estamos a falar dos grandes canais de informação internacionais, como a CNN e a BBC) uma pressão para que «especialistas» e «analistas políticos», vindos do meio académico ou, muitas vezes, do próprio meio jornalístico, estivessem constantemente no ar dando explicações sobre os acontecimentos. O que muitos muçulmanos lamentam em relação a este ponto é o enorme desequilíbrio entre o número de «especialistas» não-árabes e não-muçulmanos e o número dos que têm uma ligação ao Islão. O comentário político foi dominado pelos primeiros (um desequilíbrio ao qual a Al-Jazeera veio tentar responder). Um dos argumentos que muitos muçulmanos usam é o de que é difícil compreender o que se passa no mundo islâmico quando se conhece mal os fundamentos da religião (o conceito de jihad , por exemplo, tem sido alvo de inúmeras discussões) e quando não se fala a língua. Ao aumento da importância destes temas na informação internacional somou-se, num segundo momento, um factor que parece contraditório: os media viram-se obrigados a cortar nos custos e, em muitos casos, a reduzir pessoal. Isto significa, tirando algumas excepções, uma cobertura dos países islâmicos cada vez mais feita à distância, a partir de muito poucas fontes dentro desses países.
A questão da objectividade A degradação da situação em zonas como o Iraque e o Afeganistão contribuiu ainda mais para esta tendência, por óbvias razões de segurança. A excepção continua a ser Israel, a partir de onde um grande número de correspondentes estrangeiros cobre todo o Médio Oriente. No caso das grandes cadeias de televisão, alguns destes correspondentes locais queixam-se a Nötzold de que, quando há um acontecimento mais importante, são enviadas as «estrelas» da estação, mesmo que pouco ou nada conheçam da realidade do país. A solução para a questão de segurança é, sobretudo no caso do Iraque, enviar jornalistas embedded com as tropas – uma opção em relação à qual os governos são muito favoráveis porque permite um muito maior controlo sobre a informação que é produzida. No trabalho Western Media and Terrorism: Is Objective Journalism Possible? The Cases of CNN and the BBC , Marlin Prinzing, investigador do Projecto Islão, do Observatório Europeu de Jornalismo da Universidade Suíça-Italiana, analisa a evolução da situação, relativamente à CNN e à BBC, entre a guerra do Golfo de 1991, que se seguiu à invasão do Kuwait, e a «guerra ao terrorismo» que se seguiu ao 11 de Setembro. Prinzing fala do chamado «efeito CNN», referindo-se à forma como a cadeia de televisão influenciava os acontecimentos e as orientações da política externa nesse início da década de 90, mas defende que hoje «a CNN é uma sombra de si própria». A teoria deste investigador é a de que «desde 1996, quando a Fox News foi criada e se tornou o seu maior concorrente, a cobertura feita pela CNN tornou-se cada vez mais patriótica», o que trouxe um declínio na credibilidade, e também na influência (embora este tenha afectado todos os grandes media, segundo conclusões do The Pew Research Center). No seu trabalho, Prinzing cita várias análises (por exemplo, H. Tumber e J. Palmer, em Media at War: The Iraq Crisis , de 2004; ou W. L. Bennett, The Perfect Storm? The American Media and Iraq , 2003) em apoio da ideia de que «durante a Guerra do Golfo I as condições eram más e a cobertura crítica era pouca, mas existia. Em 2003, no entanto – na sequência dos efeitos patrióticos dos ataques contra o World Trade Center e o Pentágono, em Setembro de 2001 – os media (e a CNN em muitos casos) fizeram voluntariamente uma cobertura não-crítica e revelaram uma tendência pró-americana». Mas a questão essencial está no próprio título do trabalho de Prinzing: depois de um choque como foi o 11 de Setembro, até que ponto é possível fazer um jornalismo objectivo?Informação Complementar Limites da liberdade de expressão Uma das questões que marcaram o debate pós-11 de Setembro, e que envolveu o papel dos media, foi a da liberdade de expressão. O caso mais exemplar ficou conhecido como a «crise dos cartoons» e aconteceu na Dinamarca, em 2005. O editor de cultura do jornal Jyllands Posten decidiu publicar 12 cartoons que apresentavam o profeta Maomé de uma forma que os muçulmanos consideraram insultuosa. Havia, por exemplo, uma imagem em que Maomé aparecia com um turbante em forma de bomba, numa evidente associação ao terrorismo. Mas, curiosamente – e foi isso que surpreendeu muitos observadores ocidentais – o que mais indignou grande parte dos muçulmanos foi o facto de Maomé aparecer representado, quando o Islão não permite a representação da figura humana. A crise foi, claramente, resultado de um choque cultural – o que é que ofende e o que é que não ofende «o outro»?. Mas muitos analistas consideram que, num segundo momento, ela foi manipulada politicamente, com manifestações de fúria de muçulmanos em vários países. Para o Ocidente, a questão essencial é a da liberdade de expressão, o que levou alguns jornais a publicar, por seu vez, os cartoons , mesmo quando não concordavam inteiramente com o seu conteúdo. A questão da liberdade de expressão na relação entre o Ocidente e o mundo islâmico teve outros episódios. Um dos mais graves foi o assassínio, por um muçulmano holandês, em 2004, do cineasta holandês Theo van Gogh, autor do filme Submission, considerado também ofensivo para o Islão. Em 2006, a direcção da Deutsche Oper, em Berlim, cancelou a ópera Idomeneo , de Mozart, porque a encenação foi igualmente considerada ofensiva para os muçulmanos e receavam-se protestos violentos. Também em 2006, o Papa viu-se obrigado a desculpar-se perante os muçulmanos depois de num discurso ter citado um imperador cristão do século XIV dizendo que Maomé trouxe apenas mal ao mundo. Estas polémicas abriram um debate na comunicação social sobre os limites da liberdade de expressão e os perigos da auto-censura – mas as posições defendidas são muito díspares e não existe, pelo menos até agora, um consenso.* Alexandra Prado Coelho Jornalista do PÚBLICO desde 1990. Fez reportagens em vários países, sobretudo no mundo árabe e muçulmano. Autora, em conjunto com o fotógrafo Daniel Rocha, do livro “Muçulmanos em Portugal – Onde fica Meca quando se olha de Lisboa?”.
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