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- JANUS 2009 -



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Al Jazeera: uma televisão «árabe»

Paulo Moura *

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Quando, em Janeiro de 2008, surgiram notícias sobre uma crise no canal em inglês da Al Jazeera, foi claro que estava em causa muito mais do que um conflito circunstancial. A crise deixou em evidência as contradições de uma estação que se afirma como global e viável sob o ponto de vista empresarial, comprometida com os princípios do jornalismo e imune às pressões de quaisquer interesses económicos ou políticos.

A crise era, sobretudo, laboral. Os jornalistas revoltavam-se com os salários em atraso, as más condições de trabalho, a ausência ou não renovação de contratos. Demitiu-se o director de Recursos Humanos e vários produtores e editores. Mas na origem de toda a tensão estavam questões de filosofia. Os trabalhadores da Al Jazeera têm ou não o direito de ganhar tanto como os seus congéneres da BBC ou da CNN? A representação das populações árabes e do «mundo do Sul» deverá continuar a ser uma prioridade, agora que a estação emite em língua inglesa (desde 2006), para falantes de inglês, com jornalistas não-árabes (hoje, a maioria), de várias nacionalidades, recrutados pela sua qualidade, e não pela sua etnia ou religião? A «sucursal» em língua inglesa, que tem estúdios em Londres, Washington e Kuala Lumpur, deve ser independente, ou submeter-se à estação-mãe, em Doha? Os valores do jornalismo são universais ou ocidentais? Certos backgrounds culturais constituem um handicap para a execução do jornalismo do contraditório e da problematização que a Al Jazeera apregoa? (Várias queixas de jornalistas referem-se a discriminação sexual, étnica e religiosa).

A Al Jazeera nasceu em 1996, por iniciativa do emir do Qatar, o xeque Hamad bin Khalifa Al Thani. No ano anterior, a BBC assinara um contrato com a empresa saudita Orbit Communications para criar um canal internacional de notícias em língua árabe. A Orbit fornecia os meios tecnológicos para a emissão por satélite, a BBC os conteúdos e os jornalistas, formados nos seus serviços de rádio em língua árabe, cuja qualidade, independência e altos padrões éticos sempre foram reconhecidos.

Mas o novo canal não durou muito. Em Abril de 1996, quando a BBC emitiu uma reportagem sobre direitos humanos na Arábia Saudita em que era mostrada a decapitação de um acusado, a Orbit rompeu o acordo. Uma equipa de excelentes jornalistas de língua árabe formados na BBC ficou subitamente no desemprego. O fracasso poderia ter sido visto como um teste falhado à possibilidade de criar um canal árabe de jornalismo independente. Mas o que o xeque Hamad viu foi a oportunidade de fazer uma nova tentativa, usando aquele grupo de jornalistas. Convidou-os para fundarem a Al Jazeera, em Doha, em Novembro de 1996. Desembolsou 137 milhões de dólares e prometeu-lhes todas as condições para fazerem um jornalismo independente, ao contrário do que sucedia com todas as televisões do mundo árabe. Hamad queria dar um exemplo de modernidade e inteligência e mostrar que o bom jornalismo não era um exclusivo do Ocidente.

 

O modelo adoptado

O modelo seria a CNN, embora sem os preconceitos e a visão ocidentalista da estação americana. Emitiria notícias e outros programas de cariz informativo 24 horas por dia, 365 dias por ano, sem qualquer restrição ou censura. Realizaria reportagens em lugares onde os media ocidentais nunca iam. Ouviria os que nunca têm voz. Levantaria temas de debate que o Ocidente acha inoportunos ou desprezíveis e que no Médio Oriente são considerados tabu.

O nome Al Jazeera significa «a ilha» e contém em si toda a ambiguidade de que a própria estação nunca se livraria. Pode referir-se ao território do Qatar, uma pequena península que é quase uma ilha no Golfo Pérsico, ou à Península Arábica, a que muitas vezes os muçulmanos se referem como «a ilha». Ou simplesmente à situação única de um canal independente rodeado de jornalismo tendencioso por todos os lados.

O símbolo, um conjunto de caracteres em forma de gota de água, foi desenhado em 20 minutos por um homem que ouviu no rádio do seu carro o aníncio do concurso de design lançado pelo emir. Em breve se tornou um dos logos de marca mais reconhecíveis no mundo inteiro.

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A Al Jazeera abriu escritórios em Londres, Washington, Nova Iorque, Paris, Bruxelas, Moscovo, Jacarta e Islamabad. Tornou-se imensamente popular no Médio Oriente e no resto de planeta, até atingir a marca dos 100 milhões de lares em que é vista hoje, competindo com a CNN e a BBC.

O seu percurso foi acidentado e acompanhou os acontecimentos históricos da última década.

Numa primeira fase, em que era praticamente desconhecida no Ocidente, a Al Jazeera impôs-se no mundo árabe e muçulmano. Introduziu programas e formas de abordar as notícias que eram desconhecidas das audiências islâmicas. Incluiu na programação debates e talk-shows com participação, por telefone, dos telespectadores. Entrevistou mulheres e abordou os problemas da sua discriminação nas sociedades muçulmanas.

 

O direito ao contraditório

A Al Jazeera colocou frente a frente palestinianos e israelitas. Chamou ao estúdio membros das oposições aos regimes dos países onde era emitida. Países onde a maior parte das pessoas nunca tinha visto um elemento da oposição nem tão pouco sabia que existia, algures no exílio, alguém que criticava abertamente o presidente, que denunciava a falta de liberdade, a existência de presos políticos, os abusos e a violação dos direitos humanos.

De forma lenta mas consistente, a Al Jazeera ia ganhando amigos entre as populações e ganhando inimigos entre os governantes. Até que chegou o 11 de Setembro de 2001. Aí, e pela primeira vez, a estação foi chamada a definir-se.

Fê-lo optando pelo jornalismo, o que nem sempre, nem por todos, assim foi entendido. Quando os Estados Unidos começaram os bombardeamentos sobre o Afeganistão, a Al Jazeera era a única televisão presente, a documentar os efeitos das bombas, a fazer entrevistas a líderes e a pessoas comuns. Foi nessa altura que começou a irritar as autoridades em Washington. Mas o que verdadeiramente a lançou no campo minado da ambiguidade foram as ligações com Osama Bin Laden e a Al Qaeda.

Exemplo interessante dessa ambiguidade, com toda a riqueza de problemas que ela levanta, é o do então correspondente da Al Jazeera em Cabul, o sírio de nacionalidade espanhola Taysir Alony.

Em Outubro de 2001, Bin Laden mandou um mensageiro ao escritório de Alony comunicando que estava disponível para uma entrevista, sob determinadas condições. Falaria pessoalmente com Taysir, num local secreto, desde que ele submetesse previamente duas listas de perguntas – uma da Al Jazeera, outra da CNN.

 

Taysir e Doha

Taysir contactou com Doha, que, por sua vez, contactou Atlanta (sede da CNN) e recebeu as listas. No dia seguinte, partiu num jipe, de olhos vendados, para o refúgio de Bin Laden. Após três horas de viagem, estava frente a frente com o terrorista mais procurado do mundo. Com um sorriso, Bin Laden pediu desculpa pelo desconforto da viagem e a rudeza dos guardas e informou que só responderia a questões de ideologia e não de política nem da sua vida pessoal.

Taysir já se tinha encontrado com Bin Laden, sob as mesmas condições de secretismo, em Abril do mesmo ano. Tinha então solicitado uma entrevista, a que o xeque tinha anuido, na condição de ser sobre a sua vida pessoal. Naquela altura, explicou ele, andava «muito ocupado». E ficou de o contactar mais tarde. Fê-lo, realmente, mas um mês depois de ter lançado o maior atentado terrorista da história.

Naquela situação, e com as condições que Bin Laden estava a impor, Taysir decidiu avançar com a entrevista. Não tinha forma de contactar Doha para pedir a opinião dos seus chefes, mas pensou que, posteriormente, eles poderiam sempre decidir não emitir o trabalho.

Bin Laden começou por pôr ostensivamente de lado a lista de questões da CNN. Do que Taysir perguntou, respondeu ao que quis. Respondeu também ao que não lhe foi perguntado e lançou vários apelos inflamados aos muçulmanos, para que se mobilizassem contra os EUA.

Taysir enviou as cassetes para a Al Jazeera, mas, depois de as terem analisado, os seus editores decidiram não transmitir a entrevista. Consideraram que as condições de Bin Laden não eram deontologicamente aceitáveis.

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Pedidos de gravação

A CNN pediu para ver a gravação. Ao contrário da sua congénere do Médio Oriente, optou por pôr no ar excertos da entrevista, atribuindo-a à Al Jazeera.

Taysir Alony foi contactado mais algumas vezes por Bin Laden, para lhe entregar cassetes com declarações, que foram emitidas pela Al Jazeera, quando achou oportuno fazê-lo.

Para muitos, a Al Jazeera começou a ser vista como o veículo das mensagens de Bin Laden. Voluntariamente ou não, foi promovida por ele, uma vez que o mentor dos atentados de Nova Iorque era, na altura, infinitamente mais famoso do que a estação do Qatar.

Mais uma vez, houve quem aplaudisse esta prova de objectividade e independência, e também quem não compreendesse que se desse voz a um terrorista, como se ele fosse alguém respeitável. Os EUA chegaram mesmo a sugerir que, nas suas alocuções televisivas, Bin Laden estaria a dar aos seus apaniguados instruções em código para ataques terroristas.

 

Al Jazeera: alvo militar

Quando os americanos começaram a bombardear Cabul, Taysir e a sua equipa fizeram reportagens sobre o que se passava. Mas ao mesmo tempo perceberam que tinham a vida em perigo. Taysir não confiava nem nos americanos nem nos talibãs. Por precaução, decidiu abandonar a sede da Al Jazeera, durante a noite. De facto, duas horas depois, o edifício foi destruído por quatro bombas americanas certeiras.

Dois anos depois, Taysir Alony foi enviado especial da Al Jazeera ao Iraque. Aos media ocidentais, os EUA deram oportunidade de assistirem e transmitirem a «guerra em directo», permanecendo embedded com as forças no terreno. Apenas órgãos de comunicação selecionados pelo Pentágono foram admitidos neste sistema. A Al Jazeera, obviamente, não foi.

Em vez disso, o hotel em Bassorá onde se alojavam os jornalistas da Al Jazeera foi bombardeado, em Abril de 2003, provocando a morte do correspondente no Iraque, Tareq Ayoub.

Em Novembro, o jornal britânico Daily Mirror noticiava que, quando decorria o ataque americano a Falluja, o Presidente George W. Bush propusera a Tony Blair bombardear a sede da Al Jazeera no Qatar. Em Falluja, a Al Jazeera, a única estação no terreno, mostrara imagens da morte de mulheres e crianças em ataques americanos.

No dia anterior ao encontro de Bush e Blair, o secretário da Defesa americano, Ronald Rumsfeld, declarou numa conferência de imprensa: «O que a Al Jazeera está a fazer é mal intencionado, pouco rigoroso e indesculpável».

O Daily Mirror nunca conseguiu provar a veracidade da sua notícia mas as transcrições da reunião Bush-Blair nunca foram divulgadas, não obstante os pedidos da imprensa.

 

Ligações perigosas ou cumplicidade?

Os esforços americanos para conotar a Al Jazeera com o terrorismo terão levantado suspeitas em relação ao canal de informação árabe, apesar de este alegar que se limitava a «mostrar o outro lado» e a «ouvir a outra opinião». Mas terão, por outro lado, feito crescer a simpatia pela Al Jazera nos sectores mais anti-americanos da opinião pública mundial. E estes, como se sabe, não têm visto diminuir as suas amplitude e influência, nos últimos anos.

Taysir Alony, entretanto, continuou a ser um dos repórteres mais prestigiados no seio da Al Jazeera. Mas, quando o juiz espanhol Baltazer Garçon realizou a sua investigação sobre os atentados do 11 de Setembro, o nome de Alony estava no seu relatório.

Segundo provas cabais (que incluíam transcrições de telefonemas) apresentadas por Garçon, o antigo correspondente da Al Jazeera em Cabul contactou de forma sistemática e prolongada elementos das células espanhola, britânica e alemã da Al Qaeda. Taysir conversou e deu guarida em sua casa a alguns dos futuros participantes nos atentados. Aproveitando-se da sua nacionalidade espanhola (é casado com uma espanhola) e do seu visto de residência no Afeganistão, transportou várias vezes dinheiro para Bin Laden, provindo da célebre célula da Al Qaeda de Hamburgo. Tudo para manter contactos privilegiados com os terroristas, em nome do bom jornalismo. Taysir Alony foi condenado a 7 anos de prisão.

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* Paulo Moura

Licenciado em História e em Comunicação Social. Grande Repórter do jornal PÚBLICO. Professor na Escola Superior de Comunicação Social, onde lecciona, entre outras, a disciplina de Jornalismo Literário. Foi correspondente do PÚBLICO nos Estados Unidos e enviado especial do mesmo diário a várias zonas de conflito, como o Iraque, Afeganistão, Tchetchénia ou Sudão.

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