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– Você vem muitas vezes à Índia... Confirmo a verdade impressa dos carimbos. E ele quer saber: – Porquê? Digo apenas: – Porque gosto. Ele sorri, satisfeito com a explicação curta. E pousa suavemente mais um carimbo na página que os espera. Não como um carimbo mas como um carinho.
A multidão permanente Dizem as estatísticas que, de há vinte anos a esta parte, entram em Bombaim mil e quinhentas novas pessoas por dia. Vêm dos campos e trazem nada consigo. E em Bombaim não há espaço para eles. Os velhos blocos de apartamentos estão cheios, os arranha-céus entretanto construídos estão cheios, as barracas erguidas a torto e a direito estão cheias. Foi V.S. Naipaul, Nobel da Literatura, que escreveu: «Estar em Bombaim é estar na multidão permanente. De dia, as ruas estão apinhadas; de noite, os pavimentos estão repletos de gente que dorme». Os pobres são necessários em Bombaim. Eles são as mãos e o trabalho barato. Mas a cidade não foi feita para os acomodar. As estatísticas dizem também que cerca de duzentas e cinquenta mil pessoas dormem nas ruas de Bombaim. Mas este número parece demasiado curto, extraordinariamente curto para quem atravessa os quilómetros e quilómetros de avenidas da cidade e os vê empilhando-se em passeios, nas ombreiras das portas, nos separadores das vias rápidas. É preciso um esforço muito grande para entender a Índia. É preciso entender que a mendicidade sempre foi importante para os hindus como uma espécie de teatro religioso, uma demonstração dos trabalhos do karma, uma lembrança permanente das obrigações de cada um para consigo próprio e para com as suas vidas futuras. Apenas o exagero dos números foi, com o tempo, desvalorizando esta ideia. Em Bombaim vi defeitos físicos que não pensava possíveis. Vi mutilações horrendas que aterrorizam os olhares. Muitas são, ao que me dizem, infligidas na infância pelos pais, que assim julgam garantir um futuro para os seus filhos, ou por um mendigo-chefe de uma qualquer estrutura organizada de pedintes que adquiriu a criança e pretende assim provar-lhe os pecados cometidos nas suas vidas anteriores. E os miseráveis foram corrompendo a nobreza de Bombaim tornando-se uma força política nascida de uma nova religião cujos seguidores se consideram adstritos a um exército: o Shiv Sena, o exército de Shiva. Não o Shiva deus, mas Shivaji, o líder da guerrilha maratha no século XVII que desafiou o Império Mongol e fez dos Marathas, o povo da região de Bombaim, um dos grandes poderes da Índia durante o século que se seguiu. Junto ao Hotel Taj Mahal, um dos mais luxuosos do Mundo, de frente para as Portas da Índia, está a estátua equestre de Shivaji. Ele é o emblema do poder do Sena, do poder das colónias do pavimento, do poder dos habitantes das ruas, dos párias que demandavam a cidade e o trabalhos nas antigas fábricas de cortumes. Pelas vizinhas artérias de Colaba, pela largura de Cama Road, ali ao lado, espalham-se as figuras descarnadas dos seus súbditos. Realidade assimétrica Já passei por tantas estações de comboio na Índia. Vou-lhes perdendo a conta. Mas em todas encontro um fascínio especial, um chamado obscuro, qualquer coisa escondida ainda por descobrir. As moscas picam como vespas por cima da roupa, as caras mais indesvendáveis cruzam-se nas plataformas. De onde vem este sikh de turbante cor-de-laranja e uma estranha pressa na mecânica dos passos? Com que sonha esse velho senhor enrugado bebendo a sua mistela de chá, leite e açúcar, de olhar perdido nas linhas paralelas que se encontrarão provavelmente no infinito? Quem terá direito à ternura daqueles olhos enormes, negros, aveludados, que espreitam por entre as pregas de um chawl púrpura? Homens escuríssimos de longos bigodes; carregadores de berrantes camisas vermelhas e cor-de-rosa; mulheres de meia idade de óculos de aros de massa grossa, barrigas à mostra caindo sobre os lunghis como odres apenas meio cheios; rapazes magros de dhotis brancos e chinelos cambados; guardas de estação de pomposas fardas castanhas e pingalins na mão; raparigas exibindo na testa bindis de cores vivas: encarnados, verdes, azuis, amarelos; homens ocidentalizados de fato e gravata e calças de ganga; gente suando em bica na exasperação do calor húmido; as carruagens enfileiradas num silêncio de ferros prometendo-me novos destinos e cumprindo sempre as suas promessas. No seu livro «India. From Midnight to the Millenium», Shashi Tharoor serve-se de ambas para exemplificar como o Bharat começou a dominar a Índia dos dias de hoje. A Índia, o país que manda satélites para o Espaço, que tem a maior taxa de crescimento no domínio do audovisual de todo o planeta, o lugar onde se fez a primeira chamada de telemóvel, entre o líder comunista de Bengala Ocidental e o Ministro das Telecomunicações; e o Bharat, a Índia que só fala hindi, que vive em aldeias, que cultiva os campos, que não tem telefones, que cumpre as regras das castas e rejeita todos os tipos de modernidade. «Convencidos de que os nomes das cidades indianas revelam a colonização da sensibilidade nacional», escreve Tharoor, «os bharatvasis estão decididos a reverter definitivamente o processo. Por isso, o Shiv Sena – o governo do Estado de Maharashtra – rebaptizou a capital de Mumbai, proibindo a utilização da palavra Bombaim para qualquer tipo de iniciativa oficial». Continuemos a lê-lo, que vale a pena: «Mumbai já era o nome da cidade em marathi; e o que é que se ganhou com a alteração além de um ressuscitar nativista que parece beneficiar apenas os pintores de sinais e as impressoras de documentos? O Shiv Sena foi mais longe e rebaptizou a principal estação de caminho--de-ferro, Victoria Terminus, uma construção indo-gótico-sarracena universalmente conhecida por VT e completamente distante, na imaginação seja de quem for, da falecida Rainha-Imperatriz. VT é agora, forçadamente, conhecida por Chhatrapati Shivaji Maharaj Terminus. Experimente dizê-lo a um condutor de táxi. [...] O DMK, que governa o Estado de Madrasta, rebaptizou-o de Tamil Nadu (a terra dos Tamiles) e decidiu que a cidade de Madrasta também tinha de ser rebaptizada. O governador fora informado de que Madrasta era uma corrupção do português, vinda do nome de um comerciante chamado Madeiros ou de um príncipe chamado Madrie (tal como Bombaim teria vindo da expressão portuguesa Boa Baía). “Madrasta não é um nome tamil”, anunciou o chauvinista governador justificando o novo nome de Chennai. [...] Infelizmente, na sua precipitação, ignorou o facto de Madrasta ser, de facto, um nome tamil (derivado ou do nome de um pescador local, Madarasan, ou da palavra para mel: madhu-ras). E pior: ignorou o facto embaraçoso de Chennai não ser, como pensava, de origem tamil. Vem de Chennappa Naicker, o rajá de Chandragiri, que concedeu aos britânicos o direito de comércio na Costa do Coromandel, e que falava telugu, a língua do actual Andhra Pradesh». Na Praça Nagar Chowk, frente à estação de Chhatrapati, um mendigo dorme à sombra de uma mangueira, a prótese desatarrachada jaz sem vida ao estender da mão, um ruído contínuo de motores, uma vaca atravessa a rua tranquilamente e os edifícios coloniais e austeros de Naoroji Road, de Amrit Prath, St. Georges Road e D'Mello Road dão a imagem de uma Inglaterra vitoriana perdida num lugar que não é seu. Ao contrário de outras cidades indianas, Bombaim não cresceu em volta de templos ou de caminhos. É uma criação colonial dos ingleses para servir os seus interesses comerciais. Em Marine Drive, a brisa não sopra. Em Bombaim há apenas três estações: «warm, warmer and warmest». As águas do mar são negras de sujidade. Os homens que dormem no passeio encostado ao muro que caminha para Chowpatti Beach parecem ter saído delas.* Afonso de Melo Licenciado em Direito. Jornalista. Passou pela Redacção de alguns dos principais jornais portugueses. Tem treze livros publicados, entre romance, poesia, contos e reportagem, além de ser responsável pela tradução de muitos outros para várias editoras.
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