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O facto de Portugal não ser "visto" não implica que ele perdeu visibilidade. Implica apenas que ele não é especialmente visível. O que traduz um processo de desculpabilização, um saudável cicatrizar do passado. A tentação maior dos colonizados é o complexo de vítima, o discurso apelativo. As elites moçambicanas não são alheias a esse complexo. Mas elas não são Moçambique. E esta nação que é ainda um projecto em construção não olha especialmente os outros porque não tem uma imagem de si própria. Se perguntássemos — como Moçambique é visto por Moçambique? — teríamos como resposta um sem número de equívocos, de hesitações. Este sujeito capaz de um olhar (de uma visão no singular) implica uma consolidação de identidade que Moçambique ainda não realizou. Essa ausência de retrato a corpo inteiro não é uma desvantagem. Pode ser mesmo uma vantagem histórica: estamos abertos a inventar o nosso próprio rosto, possuímos o olhar multifacetado do insecto. O mundo está cheio de lados. Num desses lados está Portugal. Ou melhor, está o conjunto de mistificações que se acumularam sobre os lusitanos. Tudo esbatido em fumos, cacimbos antigos. Tudo aberto a ser reinventado. Para os que concebem as relações entre países pelo modelo das trocas afectivas poderia nascer aqui um arrepio: já não somos unidos por laços de paixão? Mesmo na zanga, já não brigamos como partes de uma só família? Não se pode responder a perguntas que nasceram tortas como ramos do cajueiro. Mas o distanciamento saudável a que me refiro não obriga a um esfriamento afectivo. O que acredito é que um relacionamento de afectos não pode contabilizar apenas do passado. Há um investimento permanente que no nosso caso, receio bem, esteja em carência. Há mesmo mal-entendidos criados por certas políticas oficiais que em nada ajudam. Uma parte dessa culpa recai sobre uma certa visão moçambicana que se apressa em expulsar da história os sinais dessa passagem europeia como uma excrescência. Os moçambicanos, nessa visão, só existiriam em função do Outro, em função de como resistiram ao colonizador. Os únicos seres que merecem destaque no nosso passado são os da resistência ao colonialismo. Pela negativa, são os colonizadores que autorizam a que a gente moçambicana tenha direito a existir. Outras culpas recaem sobre uma certa revalorização do portuguesismo entendido na sua forma provinciana. A meu ver, onde os portugueses marcaram o tecido social moçambicano foi exactamente na sua capacidade de se dissolverem, de perderem identidade. Vejo com algum receio uma proclamação das características "únicas" e "especiais" da língua portuguesa. Esta glorificação em pouco ajuda um relacionamento descomplexado. É preciso que se entenda: Moçambique não é um país de língua portuguesa. Ou pelo menos não o é no sentido em que os outros concebem. O idioma luso é falado por uma minoria e, em quase todos os casos, é uma segunda língua. Esta condição é muitas vezes esquecida quando se fala das possíveis "opções" linguísticas do meu país. A língua portuguesa será tanto mais amada e apropriada quanto ela tiver a habilidade de deixar de ser "portuguesa". Ora, o discurso político de alguns saudosistas parece forçar desnecessariamente a tónica da lusitanidade. Essa tónica apenas pode criar sentimentos de rejeição, necessidades de demarcação por parte daqueles que, postos perante essa mistificação, sentem necessidade de lhe oporem outras glorificações de pátria, raça ou cultura. Um dos elementos perturbadores de uma relação saudável entre os nossos países são os portugueses "regressadores". O Presidente Sampaio já se insurgiu contra a expressão "regresso", usada por portugueses que tentam refazer a sua vida em Moçambique. A ideia de que nada mudou, que foi tudo um passo em falso, norteia muito da conduta destes "re-retornados". Uma inevitável arrogância dificulta a sua inserção. E acaba por criar tensões. Porque estes anos foram uma escola de nacionalidade para os moçambicanos. Nestes vinte anos, criaram-se orgulhos, sentimentos de estima que são incompatíveis com a conduta de alguns que eu já ouvi referir como "os novos mouzinhos". Outra distorção é a forma nervosa como Moçambique é olhado por certo grupo em Portugal. O modo como se agigantou e retorceu a questão do uso da língua portuguesa em Moçambique é um bom exemplo. Primeiro, porque essa "questão" só é assunto para esses portugueses. Nunca os moçambicanos problematizaram essa opção. Moçambique não é um país de língua portuguesa mas a língua portuguesa é a língua da nação moçambicana. Isso é claro para os moçambicanos desde que a sua bandeira se inaugurou num mastro. Segundo, porque a possibilidade de haver uma opção a favor do inglês era vista como uma deslealdade. O que, no fundo, traduzia um sentimento de marido traído. Moçambique — a donzela que fugira de casa — não pode ser encarado como capaz de escolher soberanamente os seus caminhos. Com quem andará a minha ex-mulher? A mesma angústia martiriza o marido abandonado e um império deixado de o ser. Moçambique não escolheu a sua história. No nosso caso, a mão da história usou os dedos da geografia. Nós somos o resultado desta grande árvore que é a África do Sul. Como uma sombra, também nós não escapamos a esse destino independente. O estrangeiro é, antes de tudo, esse vizinho imenso. Nós somos o quintal, os subúrbios desse centro. Portugal disputou, desde há muito, o epicentro das nossas dependências. Essa disputa permanece viva. Possivelmente mais viva que o esforço próprio que teríamos de fazer para deixarmos de ser periferia. A língua portuguesa (a nossa língua portuguesa) é uma espinha dorsal para sedimentarmos esse corpo soberano que é a nação moçambicana. Por via desse idioma — que começou por ser a língua do Outro — estamos a romper laços. A língua é o nosso cordão desumbilical, uma linha de fronteira com os outros que nos cercam. O olhar que vamos construindo sobre Portugal depende muito desse processo de fazer do idioma português um espelho que devolva não apenas o retrato mas o filme da construção da nossa identidade. Esse processo de fabrico de espelho é o mesmo que vai construir essa janela onde olharemos o mundo. E Portugal como parte desse mundo. Essa parte não será apenas um país mas uma projecção daquilo que foi História e, sem medo, foi História nossa, de ambos os povos. Como quem olha alguém, na outra margem do tempo, e diz — tivemos uma relação. Sem que haja saudade, ressentimento. Nem culpa.
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