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As culturas no debate estratégico

Álvaro Vasconcelos *

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O mundo pós-guerra fria é caracterizado por uma aceleração da globalização económica, a que se tem chamado simplesmente globalização. Mas o termo globalização esconde o facto de que, apesar de haver uma tendência indiscutível para a mundialização das técnicas e mesmo para a universalização dos valores fundamentais, existe uma tendência para a fragmentação estratégica e para a afirmação das especificidades culturais, religiosas e regionais. O desaparecimento da coesão estratégica contra criou as condições para a afirmação das identidades culturais. A identidade cultural ou civilizacional passou a fazer parte não só do debate político como económico.

Cultura e civilização passaram a ser instrumentalizadas para fins de afirmação política ou preservação do poder. Governos antidemocráticos defendem-se com a especificidade da cultura dos povos: é o discurso justificativo sobre os «valores asiáticos» ou «africanos», contra a universalização da democracia e dos direitos humanos. Assistimos, por outro lado, à emergência do nacionalismo identitário como primeira causa de conflitos, sangrentas «limpezas étnicas» e mesmo do genocídio. É assim natural que tenha havido uma contaminação do discurso estratégico, mesmo dos responsáveis de governos democráticos, pelos argumentos culturalistas. O paradigma de Huntington do conflito de civilizações é apenas a versão mais «global» de uma abundante literatura. Mas deverão os países democráticos assumir uma visão cultural das suas prioridades estratégicas? Não será tal visão um risco sério para as relações entre os Estados, nomeadamente de áreas culturais diferentes, e sobretudo para a própria democracia?

 

O nacionalismo identitário

A principal causa dos conflitos pós-guerra fria, quer interestatais quer, sobretudo, intra-estatais, foi o nacionalismo identitário. Foi assim na Bósnia ou no Ruanda, é assim na Argélia ou no Afeganistão. As «políticas de identidade» a que se refere Thomas Meyer passaram a fazer parte ou a constituir por completo o programa de correntes políticas em vários pontos do globo: a extrema-direita xenófoba, com expressão eleitoral significativa em França, na Áustria e nalguns länder da Alemanha oriental, o total-nacionalismo na Europa de leste, o fundamentalismo religioso-político no mundo islâmico e hindu.

Que haverá de comum entre um nacionalista sérvio e um islamita radical? Antes do mais, a instrumentalização política da identidade e sobretudo da religião. A afirmação de que a sua civilização, confundida com a religião, está ameaçada e que é necessário defendê-la do outro, regra geral de outra civilização ou de outra religião. O líder sérvio bósnio Radovan Karadzic afirmava combater os bósnios de religião muçulmana em defesa do mundo ocidental e cristão. Le Pen diz que os emigrantes oriundos do Norte de África são uma ameaça não só para o emprego, mas também para a identidade da nação francesa. O aspecto mais inquietante de um conceito de segurança alargada, sobretudo o aspecto mais perverso do seu desenvolvimento (que se constata igualmente no Norte) é que ela diz respeito em primeiro lugar à segurança «identitária», que tem por preocupação central a defesa da identidade ameaçada. No fundo será esta a noção que têm da segurança as correntes do islamismo político.

Aqui, as expressões islamismo político e islamismo radical são utilizadas indiferentemente para designar uma variedade de movimentos políticos, de base popular, que visam a criação de um Estado teocrático e uma substituição dos poderes existentes, quer por via pacífica, quer pela violência, quer ainda pela combinação das duas. A sua noção de segurança está definitivamente ligada a uma valorização das questões morais, culturais, «civilizacionais», em nome da pureza do Islão. Como se assistíssemos agora a uma terceira fase, completadas as duas primeiras, política e económica, a fase cultural, da descolonização.(François Burgat, L'Islamisme en face, Editions La Découverte, Paris, 1995, p. 77). Este ponto de vista foi expresso com extraordinária clareza por Ali Ben Hadj, dirigente da FIS, o qual afirmou antes das eleições argelinas de 1991: «E se o meu pai e os seus irmãos (em religião) expulsaram, fisicamente, a França opressiva da Argélia, eu com os meus irmãos consagro-me, com as armas da fé, a bani-la intelectual e ideologicamente e a pôr termo à existência dos seus partidários...». (Entrevista conduzida por Slimane Zéghidour, em Politique Internationale, 49, 1990, p. 156).

Não terá a revolução iraniana destacado como primeiro alvo prioritário a cultura ocidental, norte-americana? Os islamitas argelinos voltam-se por seu lado contra os governos acusados de importar do Ocidente «costumes contrários à moral do Islão» (ver Séverine Labat, Les Islamistes algériens, Seuil, Paris, 1995, p. 57), cujos frutos seriam a desigualdade social e a dependência económica, e contra os intelectuais francófonos, a laicidade e o secularismo, identificados com o ateísmo, as «paradiabólicas», a emancipação das mulheres e tudo o que representa a intolerável intrusão do Ocidente. Os islamitas tendem a substituir o nacionalismo pan-arabista por um nacionalismo pan-islamita. Esta visão xenófoba, identitária, revela-se igualmente a norte, sob uma forma primária equivalente em formações nacionalistas extremistas, que fazem campanhas para expulsar os imigrantes que professem outras culturas e religiões, os quais representariam uma ameaça para a identidade, para o emprego e para a segurança.

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Cultura e conceito de segurança

Mas não são só as correntes nacionalistas extremistas que são tentadas por um conceito de segurança identitário. Também nas instituições de segurança dos países democráticos existe uma tendência para sobrevalorizar o factor cultural. Esta tese é partilhada também pelos que colocam o confronto das civilizações no centro dos conflitos intra e inter-estatais presentes e futuros e explicam através dos conflitos étnicos e religiosos os processos actuais de decomposição de certos Estados. Para tais correntes as diferenças religiosas e culturais não são uma fonte de enriquecimento das sociedades mas pelo contrário uma fonte de tensões que tendem a resolver-se pela violência. A tese de Samuel Huntington sobre o choque de civilizações teve e tem ainda popularidade entre alguns decisores ocidentais. Afirma ele que «os principais conflitos futuros resultarão do confronto entre as civilizações». Em consequência, o Ocidente (que reduz à Europa católica e protestante e à América do Norte) deve preparar-se para um conflito com o inimigo de substituição entretanto encontrado: o Islão e o confucionismo, tendo em conta a sinistra coligação «islâmico-confundonista que emerge para desafiar os interesses, os valores e o poder do Ocidente». ("A Clash of Civilisations?", Foreign Affairs.Vol 72, n°. 3, Verão de 1993). Huntington não se fica, aliás, por aqui na tentativa para fazer da defesa da identidade o grande tema da coligação ocidental. Considera também que, à semelhança da Europa, os Estados Unidos estão perante uma séria ameaça à sua identidade política, representada pelos imigrantes «hispânicos e não brancos».

Para muitos, nas sociedades do Sul, a tese do confronto das civilizações confirma afinal que o Norte considera o Sul, e essas mesmas sociedades, como uma ameaça. «Huntingtoniano» passou a ser um termo depreciativo, usado para designar exactamente a política que se não deve seguir em relação ao mundo islâmico. Como huntingtonianas foram classificadas as afirmações produzidas pelo então secretário-geral da NATO, Willy Claes, no sentido de que a Aliança devia preparar-se em função da nova ameaça global, a ameaça islâmica. Vários artigos na imprensa magrebina sublinharam, nessa altura, que a Europa encontrara finalmente um inimigo, uma «ameaça global» capaz de substituir a desaparecida ameaça soviética. É verdade que a totalidade dos governos dos países membros da Nato rejeitou as declarações de Claes, mas a suspeição ficou e ressurgiu publicamente, no Norte de África, quando foi anunciada a constituição da Eurofor.

Para os defensores da inexorabilidade do confronto com o Islão ou a China, quer o mundo islâmico quer o mundo confucionista seriam impenetráveis aos valores da democracia e dos direitos do homem, assumindo assim como seus os argumentos dos «valores asiáticos» ou dos «valores islâmicos». Para eles, não só os valores democráticos seriam específicos do Ocidente, como as culturas não interagem. Para Huntington a maior ameaça ao Ocidente seria a que resultaria de uma coligação entre a China e o mundo islâmico. Para além de nenhum factor empírico confirmar tal coligação, não existe do ponto de vista político e muito menos estratégico, uma internacional do radicalismo islâmico.

É no Norte de África e no Médio Oriente que é mais notória a fragmentação estratégica e a afirmação do nacionalismo, apesar de com ela coexistir, indiscutivelmente, um mesmo sentimento de pertença cultural ao mundo árabe e ao mundo islâmico. A identidade cultural e religiosa, civilizacional, não se traduz porém em nenhuma forma real de solidariedade política entre os Estados. A conflituosidade no Mediterrâneo não é no sentido norte-sul, ao contrário do que afirmam com ligeireza alguns analistas de questões de segurança, mas sim no sentido sul-sul. As relações entre Portugal e Marrocos são muito melhores que entre Marrocos e a Argélia; os fundamentalistas iranianos são os principais inimigos dos fundamentalistas talibãs do Afeganistão.

O principal erro analítico das teorias sobre a inevitabilidade do choque de culturas e das guerras de civilização é a confusão entre identidade e instrumentalização política. É considerar o radicalismo político como porta-voz único de uma dada cultura. Ora todos nós constatamos, mesmo no nosso país, que existem formas diferentes de afirmação da identidade. A afirmação da civilização islâmica não se faz hoje apenas pela via do islamismo radical ou pela via tradicionalista, como na Arábia Saudita. Faz-se também pela via da modernidade, que valoriza o pluralismo (M. Marty/S.R. Appleby). O mesmo se passa no mundo confucionista. Vejam-se, por exemplo, as críticas dos líderes democráticos da Birmânia à tão propalada noção de «valores asiáticos». A universalização dos valores democráticos e da «racionalidade instrumental» não significa o fim da diversidade cultural, civilizacional ou religiosa. Muito pelo contrário, são as sociedades abertas as que melhor permitem a livre expressão dessa diversidade.

 

O debate sobre o conceito estratégico da NATO

Um dos factores que contribuiu para o apoio que o nacionalismo identitário encontra na opinião pública do sul, é exactamente a popularidade no norte das teses sobre a ameaça islâmica. A percepção da opinião pública no Norte de África é que a ordem internacional é hoje, uma ordem injusta, em que o ocidente tem uma política de dois pesos, duas medidas. É assim que é percebida a diferente atitude face ao incumprimento pelo Iraque e por Israel das resoluções das Nações Unidas. É esta percepção que explica o apoio de largos sectores da população Magrebina a Saddam Hussein.

A NATO irá aprovar na cimeira de Washington de Abril de 1999, comemorativa dos seus 50 anos, um novo conceito estratégico. Há, na Aliança, quem defenda que o conceito estratégico da NATO devia incluir na listagem das ameaças a imigração, ao lado das armas de destruição maciça ou do terrorismo. A imigração é uma questão económica e social, não uma ameaça nem sequer um risco, e muito menos uma questão militar. Tratá-la como tal é no fundo aceitar as teses sobre o choque de civilizações e legitimar as correntes xenófobas de extrema-direita, como a Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen ou o partido austríaco de Haider, que fazem da «ameaça» dos imigrantes à segurança um dos temas centrais do seu programa político. Qualquer incursão da NATO em temas ligados à imigração não deixaria de provocar reacções veementes no Sul, em particular entre os nossos vizinhos mediterrânicos.

A União Europeia tem um papel central a desempenhar no diálogo entre as diferentes civilizações. Para tal é necessário antes de tudo que se continue a construir-se como um projecto de integração aberta — capaz de integrar no mesmo projecto a sua enorme diversidade política, cultural e religiosa. Hoje, o Islão é a religião de muitos milhões de cidadãos europeus, é uma religião europeia. A União Europeia tem que resistir à tentação identitária. Deste ponto de vista, a questão turca é central. Não se pode dizer «não» ao pedido de adesão da Turquia à União Europeia porque ela não é cristã, como fizeram certos dirigentes do Partido Popular Europeu. As condições de adesão são iguais para todos, qualquer que seja a religião que professa a maioria da sua população — há critérios económicos e critérios políticos, em que se inclui evidentemente a aceitação integral do acquis comunitário. A União Europeia não se define pela identidade cultural, mas por uma identidade política, assente num projecto comum. Portugal deve assumir a temática da luta contra a xenofobia, corolário da defesa consequente dos direitos do homem, como componente essencial da sua política europeia.

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* Álvaro Vasconcelos

Director do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais.

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