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Conceito estratégico de defesa nacional, lei da programação militar

Maria do Rosário Vaz *

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A primeira vez que em Portugal se redigiu um conceito estratégico de defesa nacional foi em 1985, passados três anos sobre a extinção do Conselho da Revolução e da publicação da primeira lei sobre a defesa nacional e as forças armadas. É aliás este diploma que define a necessidade da sua existência como documento escrito, público e como imperativo legal. Não havia naturalmente durante a vigência do Conselho da Revolução condições para aprovar uma lei de defesa nacional que consagrasse a subordinação das forças armadas ao poder político, premissa basilar de qualquer regime democrático. Esta consagração teria forçosamente de preceder à formulação das grandes orientações em matéria de política de defesa. Segundo o estipulado na Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas, é do conceito estratégico de defesa nacional que depende o conceito estratégico militar, que por sua vez fixa as modalidades concretas da estrutura e do dispositivo das forças armadas.

O conceito de 1985 corresponde essencialmente à «reintegração» de Portugal na NATO. Embora membro fundador, como bem se sabe, Portugal teve durante vários anos prioridades completamente diferentes das da Aliança e dos seus membros. A sua participação na NATO foi de carácter eminentemente passivo, cingindo-se praticamente à cedência de infra-estruturas. Por outro lado, em consequência igualmente das guerras coloniais, o modelo de organização, a estrutura e o equipamento das forças armadas portuguesas estava desajustado das necessidades do país em matéria de segurança e defesa, agora que se virava para a frente europeia, contra o inimigo comum.

O facto de a restauração do regime democrático ter sido obra dos militares conferiu-lhes uma predominância e um papel directo na vida política que na quase totalidade dos países membros da NATO era coisa impensável. Essa influência manteve-se porém até bastante mais tarde em matéria da formulação da política de defesa, realidade que o documento de 1985 reflecte, e que o documento aprovado em 1994 não corrige totalmente.

O conceito estratégico de 1985 não corresponde totalmente à reformulação das prioridades gerais do país. Ignora por completo a 'metade europeia' da definição «euro-atlântica» do posicionamento de Portugal, e dá à 'metade atlântica' do termo um peso dominador. Esta é tomada por sinónimo de aliança com a potência marítima dominante (consubstanciada em termos práticos pela presença de Portugal na NATO). Já a Espanha era membro da NATO (desde 1982), e ainda surge nas entrelinhas do conceito de 1985 mais como um adversário de que Portugal tem que se defender ou contra o qual, ao menos, tem que se acautelar, do que como um aliado com o qual, quanto mais não seja pela proximidade física, há que especialmente concertar posições.

Domina o conceito de 1985 uma extraordinária preocupação com a unidade do território e a preservação da identidade. Na parte consagrada à defesa colectiva no quadro da NATO, a preocupação central é assegurar a capacidade de defesa autónoma, cuja incompatibilidade com a defesa colectiva é mesmo sugerida, uma vez que se estipula que esta deve ser «desenvolvida de forma a não pôr em perigo a unidade nem enfraquecer a soberania nacional»; na parte consagrada à defesa territorial propriamente dita, sugere-se a hipótese de uma agressão ao território português que não acarretasse a solidariedade da Aliança. Para além da menção da obrigatoriedade do serviço militar e da manutenção de um «nível mínimo» de forças para assegurar a dissuasão da agressão, mais não diz quanto ao tipo de forças militares que Portugal deve manter.

Aprovadas na vigência do «bloco central», vigoraram estas orientações até 1994. Deram-se entretanto profundas mudanças na cena internacional, e a Europa deixou de ser o palco previsível do confronto Leste-Oeste. A aliança atlântica, «transformada» pela declaração de Londres (1990), deixou oficialmente de ter inimigo e definiu como riscos ou ameaças difusas, sem lhes precisar a origem, os problemas da segurança europeia em face dos quais deveria precaver-se. A NATO deixa de ser, de facto, um colectivo de defesa territorial (sem abandonar, evidentemente, essa característica) e passa a ser um colectivo de defesa da paz e da segurança, cuja acção é possível fora do perímetro considerado no seu tratado fundador.

Foi então lançado o debate «Defesa Nacional — Anos 90», com o objectivo de recolher ideias e preparar o terreno para a aprovação de todo o edifício legislativo da defesa e da organização e equipamento das forças armadas que correspondesse quer às grandes mudanças na cena internacional quer à plena adaptação das forças armadas portuguesas ao Portugal democrático e euro-atlântico. Foi a fase inicial do reequipamento, reestruturação e redimensionamento das forças armadas, e da efectiva «desconstitucionalização» do serviço militar obrigatório, não só pelo efectivo abandono do seu carácter universal — cada vez menos cumpriam de facto a obrigação que a todos devia caber, constitucionalmente — como pela redução para um período curto de mais (quatro meses), para justificar no plano prático a sua utilidade.

O conceito de 1994 corresponde pois essencialmente à «reintegração» plena de Portugal nas prioridades europeias, ou seja, à adaptação ao fim da guerra fria. Toma em conta as transformações operadas no panorama mundial e europeu em particular, e justifica a posteriori a reestruturação efectivamente operada. Como instrumento programático, é no entanto excessivamente vago. Como orientação geral, excessivamente abrangente, regendo-se ainda pela máxima «tudo é defesa». E é esta máxima — sem prejuízo da «interdisciplinaridade» que à defesa nacional se reconhece — que é preciso abandonar, sob o risco de poder cair-se numa desvalorização da componente militar.

E a componente militar, não sendo a única, é certamente exclusiva da defesa nacional. A defesa tem um campo próprio, e tem que ter meios próprios, quer em homens quer em armas, quer em preparação, quer em equipamento, não mínimos mas bastantes para as missões, próprias, que a Portugal cabe desempenhar. Este é um risco a ter particularmente em conta num contexto de «defesa sem ameaça», em que os países europeus, tal como os Estados Unidos e o Canadá, reduzem sensivelmente os gastos com a defesa.

Se bem que se verifique um consenso bastante amplo entre as várias forças políticas em matéria de política externa e de política de segurança e defesa, que encontra correspondência numa identificação mais ou menos consensual de ameaças potenciais ou de riscos, a definição e a condução da política de defesa cabe ao governo, sob o controlo e o acompanhamento do parlamento, em especial da sua Comissão de Defesa. Ao governo cabe interpretar o interesse nacional e propor as medidas concretas que, perante situações concretas, o salvaguardam, nesta como noutras matérias. A constante invocação do interesse nacional em matéria de defesa, sobretudo quando associada à defesa da identidade, como se esta estivesse em risco, chega a ser por vezes obsessiva.

Os interesses nacionais são muitos e variados — a saúde pública e a paz no mundo, a solidariedade social e a não proliferação dos armamentos, a educação, a independência, a democracia. Não há uma maneira única nem permanente de os interpretar — caso contrário não faria sentido a alternância democrática. Mesmo que a independência e a soberania sejam considerados interesses permanentes, a soberania muda hoje de contornos, tal como as fronteiras, e não é indissociável, num Estado democrático, do exercício da cidadania.

A preocupação central da reformulação do conceito estratégico de defesa nacional deve ser a de reflectir a «europeização» da política de segurança e defesa de Portugal, que acompanhou idêntico movimento da sua política externa. A participação de tropas portuguesas na Bósnia é uma manifestação evidente desse facto. Mas a operação de paz na Bósnia é liderada pela NATO. O caso da Albânia, em que Portugal não participou, ao contrário dos outros países da Europa do Sul, parece porém indicar que o factor NATO foi determinante na participação de Portugal na Bósnia.

Portugal conta-se entre os países que defendem a plena integração da UEO na União Europeia, posição que aponta também no sentido de valorizar a componente «segurança e defesa» da política externa e de segurança comum. Os interesses de Portugal podem ser postos em causa e exigir, no quadro europeu, a projecção de forças na Europa ou fora dela, e eventualmente em dois cenários simultâneos. Esta eventualidade não pode deixar de ser considerada, tanto nas grandes orientações como nos documentos programáticos que dele decorrem. O conceito estratégico da NATO está actualmente a ser debatido pelos aliados, com vista à sua reformulação. A revisão do conceito de defesa nacional deve ter também em conta a preocupação de ser útil à intervenção de Portugal nesse debate.

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Informação Complementar

Actualizar o conceito estratégico de defesa nacional

O conceito estratégico de defesa nacional, na sua actual versão, de 1994, é unanimemente considerado desadaptado. A sua reformulação, baseada na realidade internacional e na realidade das relações político-militares, deve servir para repensar o conceito estratégico do Portugal democrático, europeu e atlântico, com o estatuto internacional que adquiriu. Em quatro aspectos fundamentais:

Adaptação à situação internacional: o fim da estratégia «contra». Sem inimigo que se possa apontar, a estratégia dos aliados deixa de ser «contra» mas «por». As missões mais prováveis são de paz e não de guerra, fora do território e não dentro. Trata-se em suma de uma nova forma de «defesa avançada» da paz e da segurança colectivas. A estrutura, a organização e a preparação das forças não são fundamentalmente diferentes, porém, num caso e noutro: exige-se em ambos flexibilidade, mobilidade, interoperacionalidade e, num plano mais micro, capacidade de adaptação a diferentes teatros de operações.

A ausência de ameaça directa ao território ou os dividendos da paz. Finda a guerra fria, Portugal não tem inimigos. Uma agressão ao seu território, protegido pela força dissuasora da Aliança Atlântica e pelo arsenal nuclear americano, é praticamente inconcebível, mais inconcebível ainda uma agressão de que tivesse que defender-se sozinho. Como todos os países europeus, reduz as suas forças e, como quase todos (a grande excepção, por razões que não têm directamente a ver com a situação internacional, é a Alemanha), opta pela profissionalização.

Fronteiras, interesses e valores. A par do conceito de soberania, evolui o conceito de fronteira. As fronteiras, strictu sensu, de Portugal, não são apenas as do seu território – nem sequer as fronteiras do território da Nato. São as fronteiras da União Europeia, pese embora o facto de o Tratado da União não conter um artigo 5° — seria impensável que um país da União Europeia (não membro da NATO) fosse agredido militarmente e os outros não acorressem em sua defesa. Mas além das fronteiras do território há que proteger as fronteiras dos interesses, e aqui o princípio da extra-territorialidade assume pleno sentido: porque estamos nós na Bósnia se não para proteger o interesse de Portugal na manutenção da paz na Europa? Porque estamos e estivemos em Angola se não para proteger o interesse de Portugal em que haja paz naquele país? Porque participamos em operações de paz se não para prolongar, através da acção militar quando disso é caso, a defesa dos valores — da democracia, da paz, da solidariedade —, por que pugnamos tanto na ordem interna como na ordem externa? As missões «civis».

Sem cair na tentação de justificar a existência das forças armadas, ainda mais quando totalmente profissionais, pela sua «utilidade» no plano interno, melhorar a articulação com a protecção civil, principalmente em situações de emergência e catástrofe, mantendo as missões tradicionais de salvamento e patrulhamento.

 

Modernização e reequipamento

O Ministério da Defesa Nacional elaborou uma proposta de lei de programação militar para o período 1998-2003, que formalmente decorre do conceito estratégico militar vigente. A lei de programação militar visa porém, essencialmente, completar o reequipamento das forças armadas pós-redemocratização. Não se acrescentou muito às listagens dos anos '80, uma vez que não foi possível completar o reequipamento ainda durante a guerra fria — designadamente no que diz respeito à aquisição pela Marinha de draga-minas e de submarinos (a aquisição de maior vulto foi a do grupo de três fragatas da classe Vasco da Gama). Equipamentos deste tipo são considerados essenciais para o desempenho das missões NATO, designadamente no quadro do Iberlant.

Um dos obstáculos significativos à modernização das forças armadas, no capítulo do armamento e material, é o desequilíbrio entre despesas com pessoal (63%) e gastos em equipamento e investimento. A correcção deste rácio é conseguida através do redimensionamento e racionalização dos efectivos. Esta correcção é particularmente importante, do ponto de vista da optimização da operacionalidade no conjunto das missões, quando a redução geral da despesa pública se reflecte na redução dos gastos com a defesa.

Fica em aberto a questão de saber se a alteração das missões das forças armadas, nomeadamente no que se refere à capacidade de projecção (transporte e sustentação, fundamentalmente) deve ou não levar ao reequacionamento das prioridades de cada um dos ramos.

 

Segurança cooperativa tem hoje em dia aceitação praticamente universal. A sua aplicação nas áreas mais próximas ou de maior interesse para Portugal – Mediterrâneo, África, América Latina – têm como corolário a capacidade de participar com voz própria em iniciativas multinacionais (parceria euro-mediterrânica. iniciativa mediterrânica da Nato e outras instâncias de diálogo em matéria de segurança), e desenvolver iniciativas bilaterais – cooperação em matéria de segurança e defesa com os países da CPLP, por exemplo.

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* Maria do Rosário Vaz

Investigadora do Instituto de Estudos Estratégicos e internacionais. Editora dos “Lumiar Papers” e de “Estratégia-Revista de Estudos Internacionais” – IEEI.

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