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Sobre a prática e a ideia de guerra em Portugal (séculos XVI a XVIII)

Rui Bebiano *

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Os três séculos da história moderna de Portugal foram vividos com a presença continuada e visível da guerra. Ao lado de campanhas travadas com regularidade, ocorreram transformações essenciais ao nível da definição da orgânica militar, da sequência dos processos técnicos e tácticos, e da própria forma de interpretar, de preparar e de sentir o fenómeno bélico. Nada que na mesma época não acontecesse na generalidade das potências europeias, mas que aqui deteve traços particulares, essencialmente determinados pela opção ultramarina e pelas características periféricas do Estado. A violência de natureza guerreira foi entretanto, entre os séculos XVI e XVIII, uma constante nacional, se tivermos em conta a amplitude do espaço no qual a presença dos portugueses se mostrou. Tal se deveu ao facto de os períodos de completa e efectiva paz terem sido, se apreciada a sucessão dos factos, efectivamente escassos e muito limitados, e estes terem contido sempre diversas manifestações de uma preocupação incessante com a eventualidade – ou, à medida desta época, com a fatalidade – da guerra.

 

Uma realidade omnipresente

Seguir uma cronologia rigorosa dos eventos do período conduz a deparar com uma realidade que nem sempre foi devidamente ponderada. A crítica, adiantada em determinada altura, de uma escrita da história entendida como descrição apologética das batalhas e dos seus mandantes forçou a que, durante algum tempo, se não prestasse a devida atenção ao valor da violência guerreira no domínio da história nacional. A continuada observação dos factos impediria a manutenção desta atitude e, por isso, mais recentemente começou a prestar-se uma atenção crescente a esta área essencial para o conhecimento do nosso passado colectivo.

A omnipresença da guerra detecta-se antes de mais, como é natural, nas suas campanhas mais ruidosas e sangrentas. E destas existem permanentes marcas, ao longo desse trajecto de cerca de trezentos anos. Desde os recorrentes combates marroquinos à sucessão de actos necessários ao lançamento e manutenção do império – em particular nas regiões da Índia e do Brasil –, passando pelas constantes preocupações de defesa e punição levantadas pela acção da pirataria e do corso.

Dentro do território nacional, nos momentos de um mais completo empenho guerreiro, como os vividos durante a longa guerra da Aclamação, ou da Restauração (1640-68), durante o conflito dos inícios de Setecentos em torno da Sucessão da Coroa de Espanha, ou na fase de "estado de prontidão" que correspondeu à presença do conde de Lippe e aos episódios da Guerra Fantástica (1762). Se, ao longo de toda a época, nem em todos os momentos tais ocasiões envolveram um grande número de homens e formações armadas regulares, a verdade é que a preocupação com o brandir das armas se manteve sempre muito visível, tanto na acção da governação (também sob este aspecto crescentemente activa e centralizadora), como no quotidiano das populações (que de tal irão dando repetidos testemunhos).

Por outro lado, existe uma presença das coisas da guerra que advém do lugar político e social detido pelo militar, em particular o do oficial. Este herda do período medieval a ligação da sua função com o estatuto de nobreza, mantendo-se uma relação estreita e recíproca entre os dois elementos: o nobre está talhado para dirigir a guerra, ao mesmo tempo que esta permite, frequentes vezes, a elevação de condição do homem de armas com tarefas de chefia. A renovação da nobreza portuguesa que se segue a 1640 é feita, em larga medida, dentro deste quadro, e ainda na segunda metade do século XVIII essa ligação se mantém, no contexto da reformulação da força armada aplicada no tempo de Pombal. Assim, a função guerreira permanece sempre como atributo, efectivo ou simbólico, do homem de condição. Quanto ao simples soldado, situado no extremo oposto da organização social, e em regra olhado com temor ou desconfiança pelas mesmas populações de onde provinha, a sua presença – ampliada com as crescentes necessidades em efectivos do novo tipo de exército, claramente distinto da hoste medieval, que agora se vai formando – é uma constante dos documentos com os quais é possível desenhar um retrato da época.

Um universo em mudança

A organização da actividade militar é submetida durante todo este tempo a experiências, a legislação e a reformas de vária ordem. Em termos gerais, pode dizer-se que se assiste à passagem gradual de uma força armada ainda em larga medida tributária do tipo de organização militar numericamente limitada, largamente dependente do sistema senhorial e da organização dos concelhos, que foi característica do período medieval, para uma força crescentemente alargada de homens que possuem uma organização uniforme e que têm como primeira e única obediência a que devem ao seu rei.

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A evolução da orgânica contém variantes que dependem da evolução do armamento e dos processos tácticos, verificando-se, todavia, uma notável dissemelhança entre a realidade experimentada em zonas nas quais o opositor segue as regras da guerra ao tempo mais avançadas, como acontece nos territórios europeu e brasileiro, e aquela outra na qual a presença armada se adapta a formas mais circunscritas e episódicas do exercício militar, como acontece nas paragens de África e do Índico (descritas por João de Barros, Mendes Pinto ou Diogo do Couto).

A par deste aspecto, existe ainda uma outra variante essencial, determinada pela forma de organização militar portuguesa que antecede ou que segue os sessenta anos de perda da independência. É que foi durante esse período, no qual não existiu exército nacional, que ocorreu na Europa uma profunda "revolução militar", caracterizada por quatro grandes mudanças. Primeiramente, uma completa alteração táctica, suscitada pela substituição da lança pelo pique e do arco pelo mosquete, a qual anularia o potencial bélico da cavalaria tradicional. Depois o acentuado crescimento numérico dos exércitos. Em terceiro, a adopção de estratégias mais complexas e ambiciosas, concebidas para dispor de modo eficaz essas crescentes massas de homens reunidos e armados para o combate. Por fim, o facto de todo este conjunto de mudanças ter ampliado poderosamente o impacte da guerra na sociedade: os formidáveis custos de toda a máquina posta agora em movimento, as enormes perdas e destruições por ela provocadas, as grandes alterações administrativas que tudo isto condiciona, situam a guerra como um fenómeno que passa a estar, como nunca antes acontecera, no centro das preocupações dos governantes e da população em geral.

O exército português será reconstruído depois de 1640, quase a partir do nada, numa estreita relação com essa mudança mais geral. Durante o longo reinado de D. João V, que ocupa quase toda a primeira metade de Setecentos, serão lançadas tentativas não conseguidas de modernização orgânica e legislativa da coisa militar, mas será com Lippe, e com a concordância de Pombal, que será efectivamente elaborado um arrojado plano de reorganização do exército (que incluía a definição de um quadro regular de regimentos), que serão traçados os pormenorizados regulamentos de cavalaria e de infantaria vigentes por muito tempo, que se organizará de um modo coerente o ensino e a prática da artilharia e da engenharia militar, que serão lançadas as bases orgânicas do controlo das instituições militares por parte do Estado, e que serão definidos critérios de hierarquização, de enquadramento disciplinar e de treino dos combatentes. As hesitações na política de defesa e a perda de ímpeto renovador verificados no final do século não serão suficientes para apagar essas marcas.

 

Uma cultura própria

Também a forma de interpretar, de dirigir e de sentir a guerra é, em Portugal, objecto de uma constante iniciativa, ao longo destes três séculos. Existe uma profusa literatura em volta do tema, que inclui, em versões originais, glosadas ou traduzidas, obras sobre o direito da guerra, a memória dos factos bélicos, a forma de dirigir operações, de adestrar as tropas ou de construir mecanismos ofensivos e defensivos. Se, para o século XVI, as preocupações são ainda sobretudo as de justificar ou de registar os actos de guerra – do que são testemunho a reflexão de alguns jesuítas nacionais acerca da sua justeza, ou, na segunda direcção, os escritos dos cronistas da expansão ultramarina – volumes como o Perfeito Soldado e Política Militar (1659), de João de Medeiros Correia, e da Doutrina política, civil emilitar (1664), de Luís Marinho de Azevedo, representam, já depois de 1640, marcos no sentido da elaboração de uma arte da guerra autóctone. Eles denunciam uma evolução no tratamento do fenómeno de sentido mais pragmático, e permitem também avaliar o já elevado grau de actualização – articulado em termos metodológicos com a divulgação de alguns aspectos do pensamento de Descartes e dos seus discípulos – que detinha então o saber marcial dos portugueses.

A saída de O Engenheiro Português (1728), do proto-iluminista Manuel de Azevedo Fortes, obra de carácter técnico, ímpar na altura pelo seu alcance, extensão e grau de actualização, marcará, décadas depois, a evolução para uma reflexão altamente especializada e conforme com a evolução da arte de fazer a guerra. Curioso, pelo seu significado simbólico, O Capitão de Infantaria Português (1751), de André Ribeiro Coutinho, um escrito que marca – ao misturar preceitos disciplinares e tácticos com regras de pura etiqueta destinadas a uma nova situação de sociabilidade dos oficiais – uma etapa mais na transformação do graduado nacional, do essencialmente temerário homem de guerra, inteiramente dominante no século XVI, em homem conhecedor do seu métier, num "técnico" de trato cortês e socialmente integrado. A completa reformulação do significado e do alcance das instituições militares no nosso país poderá ainda ser observada através das Instruções Gerais relativas a várias partes do serviço diário para o Exército, mandadas publicar sob a supervisão de Lippe em 1762. Aí se compassava ao pormenor o quotidiano da instituição, definindo regras precisas e idênticas para todos os militares de idêntico grau, um aspecto de importância acrescida pelo simples motivo de não existir anteriormente nada de semelhante.

Outra faceta encontra-se ilustrada na Memória sobre os Exercícios de Meditação Militar, obra escrita pouco tempo depois, na qual o marechal apelava a que se rompesse com a posição, tradicional entre nós, que separa o conhecimento das letras da prática especializada das armas: "A leitura serve para formar-se o espírito militar e prover-se de ideias: por ela se enriquece com luzes e com a experiência dos outros". Menos explorada nos documentos que os anteriores aspectos, a forma de sentir a guerra e as coisas que com ela se relacionam foi igualmente uma preocupação constante, ainda que encarada de diversificadas formas, dos portugueses deste tempo.

O estudo do extensíssimo sermonário de temática guerreira (especialmente elaborado ao longo do século XVII, e onde Vieira tem importante responsabilidade), dos fragmentos memorialistas que é possível conhecer (de entre os quais merece destaque o semi-inédito manuscrito legado pelo soldado Mateus Rodrigues), da poesia nas suas várias formas (e não apenas na épica, bastando, para o perceber, uma apreciação da actividade das academias literárias), das várias modalidades da literatura de cordel, não cessam de testemunhar uma preocupação com a guerra enquanto fenómeno situado no centro da vida e das preocupações dos nossos antepassados de então.

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* Rui Bebiano

Professor Auxiliar da Faculdade de Letras de Coimbra.

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