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Janus 2001



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De Borgonha a Bolonha: as relações externas na Reconquista

Leontina Ventura *

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Aceitando, com Borges de Macedo, que a independência só pode existir quando uma política externa a exprime e a defende, reflectir sobre a história das relações internacionais de Portugal é então reflectir sobre a forma como a sociedade portuguesa foi tomando consciência das forças nela intervenientes, como o país foi demonstrando publicamente a sua capacidade para o exercício da independência: nas suas várias dimensões (administrativa, política, estratégico-económica e cultural); numa íntima conexão da história diplomática com a economia, a sociedade, o político e o militar; num quadro peninsular e num quadro europeu.

Não o farei senão no curto período que vai da consecução da independência à afirmação de um Estado: de Afonso Henriques a Afonso III ou, melhor, a D. Dinis, ou seja, da passagem de uma estrutura de poder senhorial para uma centralização régia, em que a uma definição jurisdicional política e territorial sustentada em unidades particularizadas se sucede uma concepção unitária global, o que significa a substituição de um assento territorial por outro. Em que a uma ideia de dependência, a um sistema de relações pessoais, se substitui a ideia de limite territorial, de controlo territorial, em suma, de Estado territorial.

Aceite-se manter a designação de dinastia de Borgonha atribuída tradicionalmente à primeira dinastia ou prefira-se a divisão desta em duas, de Borgonha até 1248 e de Bolonha de 1248 em diante, como propõe Oliveira Marques, ambas as designações, só por si, são tradutoras de relações externas da Península ou de Portugal com além-Pirenéus. Se a primeira é resultante e expressão da conquista do poder político, a segunda é manifestação de um novo e importante período da história de Portugal como Estado. Período de aprendizagem política e de afirmação de uma consciência do sentido do bem público, da utilitas publica, da utilitas regni ou da utilitas totius populi et corone regni (ou seja, da identificação de interesses entre a Coroa e a comunidade regida). Tempo de aperfeiçoamento das estruturas políticas e administrativas, de forte afirmação do poder régio, de definição muito concreta dos limites territoriais da soberania, inseparável, desde então, de um território. Consciência étnica e territorial a que, ao tempo de D. Dinis, se acrescentará, definitivamente, uma consciência linguística.

 

Conquistando a costa

Durante todo o primeiro período, mais precisamente até 1249, as conquistas constituíram um elemento essencial da política externa. A independência do Condado Portucalense decorre da conjugação dos esforços da luta armada e da luta diplomática, o mesmo é dizer, de uma intrínseca relação entre política interna e política externa. Esta, expressão e guardiã da independência, num país pequeno como Portugal, permitiu, na administração inteligente das suas virtualidades estratégicas, realizar os objectivos da sobrevivência possível, oferecendo sempre uma adequada resposta às diferentes conjunturas internacionais.

Começando esta síntese a partir de 1096, data da concessão do Condado Portucalense a D. Henrique — um estrangeiro de origem borgonhesa casado com D. Teresa, filha ilegítima de Afonso VI, a quem este concedeu aquela tenência dotada de hereditariedade — poder-se-á dizer que este acto é, em si, expressão da consciência da especificidade da área e da sua relevância estratégica, uma consequência das circunstâncias internas da Reconquista e bem assim das relações externas que, em reinados anteriores, mormente do avô e do pai de Afonso VI (Sancho o Maior de Navarra e Fernando Magno, respectivamente) se haviam iniciado com além-Pirenéus. O interesse em aproveitar as possibilidades e interesses da região (baliza eficaz contra qualquer invasão vinda do Sul), dotada de um dinamismo próprio, isto é, dos meios de expressão inseparáveis da autonomia da sociedade local e da sua capacidade militar, levaram ao reconhecimento do seu valor e da sua especificidade. Esta entidade feudal criada por Afonso VI, dotada de hereditariedade, cujos governadores, Henrique e Teresa, souberam enriquecer — tentando, no aproveitamento de discórdias de outros reinos peninsulares, nomeadamente na desestabilização matrimonial entre D. Urraca e seu segundo marido Afonso I de Aragão, ir-se furtando aos deveres da vassalagem —, será o embrião do reino de Portugal, para o qual o filho daqueles, Afonso Henriques, conseguirá a independência, no decurso do século XII.

À sua política de expansão territorial parece subjacente uma verdadeira teoria estratégica. Encaminha-se, ao longo da costa, de Leiria até Santarém, Lisboa, Almada, Sintra, Alcácer do Sal, com a posse do interior imediato, assenhoreando-se do conjunto dos estuários do Atlântico Ocidental e assegurando-se da posse das fozes dos rios, do Minho ao Guadiana. Assim se perspectiva a definição da influência portuguesa ao longo da costa, a consolidação da região portuguesa como a costa compreendida nessa série de embocaduras, desde a Galiza ao Algarve. Orientação, aliás, que, à parte pequenas e pouco duradouras divergências, é a que executarão os monarcas sucessores até se chegar à conquista de Faro, em 1249, a que se seguiu, pouco depois, o domínio de todo o território algarvio. D. Sancho I prossegue, em piores condições, até Silves, que depressa se vê forçado a abandonar.

Ao tempo de D. Afonso II garante-se o estuário do Sado com a conquista definitiva de Alcácer do Sal e D. Sancho II atinge a foz do Guadiana. D. Afonso III termina a Reconquista atribuindo ao território português a expressão actual. Estas conquistas, além de estabelecerem uma área funcional para o território português, como Estado, justificavam a sua independência para as controvérsias internacionais. Com efeito, a independência e a auto-definição não só não prejudicavam, mas até facilitavam — por meio de uma diversificação das forças políticas e de uma interrelação fecunda dos Estados — a tarefa peninsular e europeia da luta contra os mouros, antigos invasores. O auxílio prestado por cruzados franceses e ingleses nesta luta, mormente nas conquistas de Lisboa (1147) e Silves (1ª-1191) provam-no bem.

Esta posição estratégica de Portugal, no flanco ocidental, frente à pressão almorávida primeiro e à almóada depois, que fez dos reis portugueses os protagonistas da maior expansão de todos os reinos cristãos da Península, terá levado os vizinhos reinos de Leão e Castela a respeitarem e aceitarem a independência de Portugal, não entrando em conflitos senão por questões fronteiriças, pela disputa de terras e castelos. A paz de Tui de 4 de Julho de 1137, a paz de Valdevez de 1140 e a reunião de Zamora de 1143 já manifestam que a Terra Portugalensis era aceite como uma região separada e dificilmente recuperável. A conquista portuguesa de terras para Sul e a luta com Leão pela consolidação das suas fronteiras (na fronteira galega, em Ciudad Rodrigo e na zona de expansão de Badajoz), conjugadas com a consolidação da independência política entre 1144 e 1179, manifestam-no bem.

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Estratégia europeizante

Afonso Henriques não actuou, porém, exclusivamente dentro da conjuntura portucalense ou peninsular. Aliás, no sentido de legitimar a sua dinastia, procura subtrair o País à órbita peninsular. Desenvolve uma política europeizante, seja por via da vassalagem à Santa Sé, das alianças matrimoniais, de acordos com cruzados, de relações estabelecidas com Templários, Hospitalários e Cistercienses ou ainda das viagens de D. João Peculiar e outros bispos portugueses à cúria romana; com o seu casamento com Matilde da Sabóia (filha do conde de Mauriana e Sabóia e sobrinha-neta de Raimundo da Borgonha).

No quadro peninsular, ao lado de tempos de conflitos armados, os reis de Portugal estabeleciam relações com os reis vizinhos sempre que necessitavam de apoio contra outros reis peninsulares ou contra os muçulmanos. Neste âmbito, do mesmo modo, a política matrimonial estava submetida a verdadeiras estratégias políticas, que passavam, frequentemente, por casar o primogénito com a herdeira de outro reino para solucionar um conflito ou selar uma aliança.

Por outro lado, a constituição da igreja portuguesa tinha conseguido que a resolução dos problemas pudesse fazer-se em Roma e não na Península. Assim aconteceu com Sancho I e Afonso II (mediação do papa nas lutas do rei com as irmãs e com o clero), com Sancho II, (deposto pelo papa), com Afonso III (acusado de bigamia: casara com Beatriz de Castela, sendo viva sua esposa Matilde de Bolonha) e com D. Dinis (lutas com o clero).

De todos, o caso mais grave, que pôs em perigo a sobrevivência do estado português, foi o da guerra civil de 1245-47, de que saiu vencedor o conde de Bolonha, depois rei D. Afonso III e irmão do rei deposto. Mas para tal, além da campanha militar, foi preciso vencer-se uma batalha diplomática. O perigo da intervenção de poderes exteriores, em face das dificuldades internas do país fez-se presente. Terá chegado a surgir a hipótese de a Coroa de Aragão ocupar legalmente o trono, uma vez que o infante D. Pedro, irmão de Afonso II e tio dos contendores, cedera os seus direitos a favor do rei D. Jaime de Aragão. Isto ao mesmo tempo que Afonso conde de Bologne era convidado a ir à Terra Santa. Uma coligação dos barões com os eclesiásticos ofereceu, porém, o reino a Afonso, irmão do rei deposto e seu legítimo sucessor, por falta de herdeiro directo. Por certo também o auxílio prestado pelo infante Afonso, futuro Afonso X de Castela, a Sancho II de Portugal na referida guerra civil de 1245-47, e a consequente promessa de cedência do Algarve, terá originado uma posterior conflituosidade latente e mesmo uma situação bélica entre o rei de Portugal e o rei de Castela (unida com Leão desde 1230), relativamente aos direitos sobre o Algarve. Com Afonso III, para além da conclusão do ciclo da Reconquista, com uma expedição contra os muçulmanos detentores do Algarve, em Março de 1249, inicia-se um importante processo diplomático: o do esclarecimento sobre a posse legal do Algarve pela coroa portuguesa, que se vai realizar em conjunturas, peninsular e europeia, completamente diversas, entre 1250 e 1267.

 

A importância de D. Dinis

Por sua vez, D. Dinis, num momento em que em Portugal reinava a ordem pública e em Castela campeava a instabilidade governativa e os conflitos sociais, persistindo ainda uma conflituosidade latente entre os reis de Portugal e os reis de Castela, faz uma aliança com o reino de Aragão expressa no casamento com Isabel, filha de Pedro III o Grande. De facto, D. Dinis tirou partido da guerra com Castela para se apoderar de alguns territórios fronteiriços e para definir a fronteira com um rigor que não permitisse dúvidas no futuro. A sua preocupação com a fixação da fronteira manifestou-se ao proceder à demarcação dos limites, nos tratados e comissões mistas, na construção ou reparação de castelos fronteiriços e ainda no aperfeiçoamento do exército e do equipamento militar necessários à defesa. Beneficiando dos trunfos acumulados por seu pai e do poder material que ele próprio adquiriu, D. Dinis implanta solidamente o seu poder no interior do seu reino e fá-lo respeitar além-fronteira.

Como afirma José Mattoso, este é um tempo de "inequívoca demonstração pública da capacidade do Estado português para o exercício da independência"; de reafirmação de Portugal como "reino verdadeiramente independente no âmbito da Hispânia, sendo o seu rei considerado como um interlocutor essencial e uma autoridade política respeitada por todos". É também no seu reinado que se estabelecem dois tratados com os reis Eduardo I e Eduardo II de Inglaterra (1294 e 1308), que, tendo objectivos marcadamente económicos (comerciais), marcam o início das relações políticas e diplomáticas de Portugal com aquele país.

O tempo de Afonso III e de D. Dinis foi tempo de consciência política de delimitação fronteiriça. Em sintonia com o movimento de maturação político-ideológica e institucional das entidades políticas da Cristandade ocidental, também em Portugal se demarcou o território, se definiu o espaço, se territorializou o poder político, se precisaram os âmbitos geográficos das competências e se objectivaram os mecanismos institucionais. E foi tempo de ultimação das principais linhas de força que desde Afonso Henriques se vinham desenvolvendo: uma precisa definição da área de governo próprio e de influência; afirmação relativamente aos reinos vizinhos da Península; manutenção da busca de apoios diplomáticos e políticos fora da Península; obstáculo a quaisquer forças sociais internas que se pretendessem mais fortes que o poder central. Ainda e sempre uma política externa assente no quadro peninsular e no quadro europeu, na associação a grandes estados com os quais Portugal nunca se confundiu, apesar de frequentes e repetidas pressões internacionais.

Do exposto se conclui: por um lado, que o estabelecimento, mobilidade e consolidação das fronteiras de Portugal manifestam e expressam claramente a história da organização política e social do seu território; por outro lado, que o problema dos limites só se equacionou, verdadeiramente, ao tempo de Afonso III e de D. Dinis, um e outro reges Portugalie, com um projecto de centralização régia. Com eles e incarnada neles, enquanto entidades régias, surge a noção de coisa pública, de bem comum (utilitas publica)

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* Leontina Ventura

Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Especialista em História Medieval de Portugal (estudos da nobreza – séc.XI-XIV).

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Bibliografia

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