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Onde estou: | Janus 1999-2000 > Índice de artigos > Um olhar para o passado > [Portugal – Brasil: sob o manto dourado do Barroco] | |||
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ESTE ARTIGO CONTÉM DADOS ADICIONAIS CLIQUE AQUI! Desnecessário se torna aqui rever as diversas formas de relacionamento desenvolvidas neste tempo-secular, desde o primeiro contacto oficial reportado por Pêro Vaz de Caminha acompanhando a evolução das formas de articulação da administração do Reino com as sucessivas estruturas de governação, centrais e intermédias luso-brasileiras, até ao termo do processo onde sobressaiu uma solução original: a de momentaneamente se terem invertido as posições da lógica colonial com a instalação do Governo do Império em terras de Santa Cruz e a satelização da pátria europeia relegada para fardo que muitos, do outro lado do Atlântico, consideraram melhor deserdar em definitivo da sede da Monarquia. Desde os primeiros contactos do português com a nova terra que se afirmaram as originalidades de um percurso que se rasgou perante dois confrontos imprevistos: uma ocupação humana primitiva e uma Natureza dominadora. Ao inverso do processo de conquista imposto na construção da América castelhana, cujos alicerces se estruturaram na neutralização das requintadas civilizações pré-colombianas, a obra erguida na Terra de Santa Cruz desenvolveu-se com um investimento militar relativo aproximando-se mais do hoje discutido conceito de Descoberta, – incluindo retorno, notícia e colonização – criticado por europocentrista, e ilustrado pela conhecida imagem, bem ao gosto sul-americano, da primeira chegada a terras do Novo Mundo: se o descobridor proclamou do cesto da gávea "terra! terra!", o ameríndio, perante o desenho da embarcação no horizonte, gritaria em simultâneo na sua língua "barco! barco!". Ou, em versão europeia mais erudita, L’élargissement de l'acculturation implique découverte commune, partagée, reciproque; le découvreur est découvert à son tour."(1). Ou ainda a chamada "descoberta do outro", fórmula ambígua, à portuguesa, de compromisso de um tempo que vive ainda na sombra do passado por exorcizar. Neste ciclo de efemérides é importante contextualizar os conceitos de colónia, colonização e colonialismo que, no domínio das correntes de opinião contemporâneas, deixaram de ser comemoráveis sem reticências como anteriormente. Neste encontro de povos e mundos, o que previamente era soma passou a ser, para alguns, subtracção, e até intromissão indesejável. As mais diversas formas de nacionalismo reivindicam os alicerces civilizacionais das nações presentes. "Tupi or not Tupi that is the question": a adaptação da célebre dúvida shakespereana legendava a entrada da megaexposição "O Brasil dos Viajantes" que descobriu Lisboa em 1997. A questão sustentada no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, obra do modernismo brasileiro, considerada chave da reinvenção de um "inconsciente nacional", motivador de um "ritual cultural de devoração do outro" como via de reconquista dos poderes dos antepassados. O discurso libertador não se detém por aí: "A devoração do discurso estrangeiro podia revelar o nosso íntimo. A vingança do nativo contra o colonizador instaurava-se a partir do ponto de vista do caraíba, que conta o encontro com os cristãos, que lhe parecem seres estranhíssimos". Celebra-se, em suma, "o ritual de fundação de uma 'nova' cultura nacional (2). Serve esta introdução para situar os pontos de vista que constituem o leque de opções sobre a passagem lusitana pelas terras americanas e que necessariamente se transferem para a análise dos mais diversos legados relativos ao período colonial que o tempo conservou. Numa leitura de longa duração emergem, porém, alguns aspectos que importa salientar: em primeiro lugar que a génese do Brasil se inscreve numa etapa fulcral da história do Ocidente: a do encontro do Antigo e do Novo Mundo; e em segundo que a sua própria construção prolonga a secular rivalidade luso-castelhana por terras americanas, na definição quase a palmo das respectivas fronteiras; em terceiro e último, mas não menos importante, promove-se a primeira vaga de transbordo de populações num movimento de aproximação intercontinental que envolveu África na construção de uma realidade populacional, cultural e civizacional nova. Nesse tempo dos Descobrimentos os pontos de fixação dos portugueses centraram-se, sobretudo, nas faixas litorais, cobrindo extensões inimagináveis face à reduzida escala de um país com baixas potencialidades demográficas. Frei Vicente do Salvador, na sua História do Brasil, datada ainda do primeiro terço do século XVII, referia não se saber a "largura que a terra do Brasil tem para o sertão...porque até agora não teve quem a andasse por negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejo". Era ainda o tempo da cultura de latitude, a que noutro contexto chamámos tarefa de impermeabilização consolidando a protecção litoral que sustentaria a cultura delongitude de descoberta e ocupação do sertão que, a ritmos e estímulos diversos, se seguiria. O signo do caranguejo, utilizado pejorativamente pelo citado historiador baiano, regressaria numa imagem de expansão, cujas pinças desenhadas no leito do Amazonas e sua bacia hidrográfica, a Norte, e pelos roteiros paulistas, a Sul, se fechavam na aventura setecentista na descoberta do macroespaço do interior brasileiro. A ocupação desse vasto sertão e o nascimento das cidades do interior desde os arraiais mineiros de Minas Gerais até às regiões mais distantes do Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade constituem uma outra descoberta do Brasil muitas vezes esquecida nos programas comemorativos. Tornaram-na real migrações híbridas de povos, – europeus, índios mansos africanos e respectivos descendentes cruzados – numa corrente de vida e de morte, face aos desafios da natureza indómita e do gentio hostil. Eram as bandeiras verdadeiras "cidades ambulantes", conduzindo milhares de pessoas sobre um espaço achado "vazio", cuja paisagem natural e humana, formas de religião e outros factores civilizacionais se mantinham estranhos ao olhar do europeu. Muitos recém-chegados sentiriam o torpor desse desenraizamento: "Da aldeia e dos santuários familiares para um mundo sem limites" (3) sem a referência da "casa", do "lugar" ou do "sítio" que favorecessem uma rápida adaptação. Na agressividade desse mundo novo emergiria a vontade de ressuscitar, à distância, o ambiente da aldeia metropolitana abandonada, a memória tranquilizadora da ordem e da religião, do Estado e da Igreja, onde antes do adorno da arte era preciso fixar a cruz e o pelourinho. Essas primeiras marcas lusitanas na hostilidade do sertão obedeciam, mais do que a uma ideia de planificação urbana, à necessidade de enquadrar o espaço do tesouro dos "adiamentos" auríferos e diamantinos, fundando-se acampamentos a partir dos quais se desenvolviam organicamente os arraiais mineiros, primeira semente de urbanidade no interior revelado. Uma vez estabelecidos, lançavam-se os laços da administração procurando formatar os novos concentrados populacionais criados ao sabor do voluntarismo dos garimpeiros. Embora a efemeridade destas povoações predominasse, muitas vezes abandonadas à notícia de novos eldorados, algumas cidades viriam a nascer a partir destes pequenos núcleos urbanos improvisados, como é o caso de Ouro Preto. Das primeiras cabanas "a pau e pique", tectos de colmo, à terra e madeira, até aos requintes da "pedra e cal"…das construções efémeras das primeiras igrejas, casas da câmara, cadeias, cuja fragilidade permitia a fuga dos detidos ao primeiro temporal... ao levantamento dos grandes conjuntos urbanos, Património Mundial da Humanidade reconhecido pela Unesco, se edificaram as cidades históricas desse Brasil interior, onde o confronto entre essa monumentalidade arquitectónica e o improviso urbanístico acabam por cativar e conferir singularidade inconfundível ao património sobrevivente. O progressivo avanço para o interior, desenvolvido ao longo do século XVIII, assistiria a uma recomposição dessa energia exploradora. A unidade desse grande espaço inviolado começava porém, por iniciativa do Estado, a desagregar-se, formando-se novas divisões administrativas que procuravam acompanhar o reconhecimento do sertão. Minas Gerais, Goiás, Cuiabá e Mato Grosso constituem exemplos dessa extensão reguladora sobre o interior. No processo de ocupação da última destas novas capitanias, também de grande riqueza mineira, a capacidade de enquadramento do poder central europeu sobre o terreno havia ganho uma nova eficácia. A atenção da Coroa sobre esta marca fronteiriça levaria a uma mais firme intervenção política na paisagem. Os avanços dos aventureiros na pesquisa das riquezas escondidas nos rios do Mato Grosso, as suas efémeras e caóticas povoações de campanha, assistiam, em paralelo, à fundação de centros urbanos patrocinados e regulados pela Coroa. A fixação das populações tornara-se uma prioridade estratégica à luz do princípio jurídico do uti possidentis (4) determinante nas negociações dos Tratados dos Limites que definiriam as fronteiras brasileiras. Como o reconheceu David Davidson, (5) a epopeia dos Bandeirantes viria a obscurecer o papel crucial do Estado no desenho e manutenção da fronteira ocidental do Brasil. Os capitães dessas expedições de fixação eram portadores de instruções régias reguladoras da instalação das novas vilas. Eis um elucidativo extracto relativo à fundação de Vila Bella da Santíssima Trindade de Mato Grosso: "O sítio que se eleger para a fundação da dita Vila seja o mais saudável, e em que haja boa água para beber, e lenha bastante, e se determine o lugar da praça no meio da qual, se levante o pelourinho, e se assinale área para o edifício da Igreja capaz de receber competente número de freguezes, quando a povoação aumente, e fará logo ele Ouvidor delinear por linhas rectas, a área para as casas se edificarem, deixando ruas largas e direitas, e em primeiro lugar se determine nesta área, as que se devem fazer para Camará, Cadeia, Caza das Audiências, e mais oficinas públicas, e os oficiais da Camará depois de eleitos darão os sítios que se lhes pedirem para casas e quintais nos lugares delineados e as ditas cazas em todo o tempo serão feitas todas no mesmo perfil no exterior, ainda que no interior as fará cada morador à sua vontade, de sorte que se conserve a mesma formosura da terra e a mesma largura das ruas. Junto à Vila fique bastante terreno para logradouro público e para nele se poderem edificar novas casas, que serão feitas com a mesma ordem e concerto com que se mandam fazer as primeiras." O programa não era novo mas a administração pombalina havia-lhe conferido uma outra capacidade de execução. De uma forma acidental ou planificada o novo Estado construía-se pela base. Esses alicerces – e não só no manto dourado do Barroco e Rococó mineiro que os cobre – devem ser preservados e recordados nos momentos evocativos.
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