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Estado, instituições, poderes nos finais da Idade Média

Armando Luís de Carvalho Homem *

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A "Monarquia feudal" foi expressão usada pela primeira vez na década de 30, e em áreas muito tradicionais da historiografia francesa de então: Charles Petit-Dutaillis foi o seu introdutor, num volume da colecção "L’Évolution de l'Humanité"(1). Mas a fortuna terminológica de tal expressão ultrapassou galáxias historiográficas; e o andar dos tempos veio a consagrá-la como conceito singularmente adequado à compreensão de uma dada fase de algumas estruturas políticas do Ocidente medieval. O que não tem deixado igualmente de se fazer sentir entre nós, em tempos relativamente recentes.

A superação dos préjugés extra-historiográficos que pesavam sobre o prolongado debate em torno da existência de feudalismo nos reinos peninsulares levou a que se começasse a reparar numa enunciação, talvez apropriada ao compreender de um dado momento de uma construção política que tenha como vértice um rei: para não ir mais longe, veja-se o léxico ocorrente nas últimas Histórias de Portugal, ao ter-se, mormente, em conta os monarcas de Duzentos, a sua corte, o seu séquito, a sua oficialidade ou os actos normativos que produzem. E nem o take off do que usa referir-se como génese do Estado Moderno a partir de tempos dionisinos esbaterá de todo os traços de feudalidade integrantes de uma cabal caracterização do Reino enquanto estrutura política: lembremos tão-somente o peso do privilégio na retribuição do serviço dos oficiais régios (privilégio superante, nessa dimensão, da moradia enquanto prefiguração de um salário estável e regular); ou, já no século XV, a emergência de mecanismos como a resignação (resignatio in favorem), permitindo a continuidade de ofícios no seio de famílias; ou seja, à la longue, o anunciar da venalidade. Recuemos entretanto, e de novo, ao século XIII final. No quadro, também entre nós, do surgimento de uma "nova História política" dos finais da Idade Média, algo se tem escrito nos últimos anos sobre Estado / instituições / sociedades políticas / poderes. E a localização em Duzentos de algo considerável como ponto de partida de um processo é matéria em consensualização.

A superação da "crise política" de 1245 ss. com a realeza de Afonso III algo pode desde logo marcar: uma governação doravante, e definitivamente, assente no acto escrito, o correlativo desenvolvimento dos registos da Chancelaria régia; o esboço de um primeiro facies da oficialidade de Corte (mormente os agentes produtores de textos, ao tempo, e com toda a naturalidade, eclesiásticos); progressos na administração da justiça e das finanças e património do monarca, sequência da prática inquiridora dos direitos e poderes das aristocracias laica e eclesiástica (2)...

Bem mais marcantes serão, no entanto, as décadas dionisinas, verdadeiro tempo – charneira entre as nossas primeira e segunda Idades Médias. Ele próprio também monarca-inquiridor, Dinis, numa conjuntura ibérica marcada por múltiplos tratados interdelimitadores das unidades políticas, verá o seu nome ligado a um acordo com Castela que estará na base de uma das mais antigas fronteiras da Europa: Alcanices, 1297. Um Reino que assim se delimita e cujas zonas periféricas se procura decididamente povoar: e é toda a política régia de outorga de novos forais, na base da criação de concelhos no Alto Minho (onde se esboça urna verdadeira rede urbana) e (sobretudo) em Trás-os-Montes. Para além disso, uma itinerância da Corte que mostra com nitidez uma viragem para Sul, com a 'capitalização' de Lisboa a funcionar como símbolo da "fusão do Norte com o Sul num País viável" (A. H. de Oliveira Marques). E atente-se na importância (tradicional) de cidades como Coimbra, Santarém e Lisboa quanto ao número de deslocações e tempo de permanência do soberano e no emergir de Évora, com largo futuro como tal (em detrimento de Coimbra). Tempo marcado também pela consolidação de um elenco de oficiais administradores da Justiça a nível superior (ouvidores, sobrejuízes) e pela clara configuração dos vértices da burocracia (em torno do Chanceler e de escrivães vários (3), a época dionisina - neste aspecto devida e logicamente prolongada pela de Afonso IV e até pela do efémero Pedro I - assistirá ao surto de uma legislação régia que, não sendo novidade (4), tem agora a particularidade de incidir em boa medida sobre a oficialidade do Rei e suas atribuições, sobre a orgânica dos serviços de Justiça e de burocracia de Corte e de intentar, até, um primeiro esboço de articulação com o território, através da criação (ca. 1332/1340), das comarcas e dos respectivos corregedores, qual instância intermédia entre o Rei e as comunidades concelhias (5); as quais, presentes nas assembleias representativas do Reino (Cortes) desde meados de Duzentos, começam a partir de 1325 a apresentar aí com regularidade as suas reivindicações, já concertadamente (capítulos gerais), já de forma individualizada (capítulos especiais).

Enquanto que o (historiograficamente) mal-amado D. Fernando verá o seu nome ligado a leis sobre "política económica", ao surgir das primeiras manifestações de uma fiscalidade geral e permanente (as sisas, incidentes sobre os actos de compra e venda) e à tradução respectiva no consolidar de um núcleo de oficiais de competência acentuadamente financeira e fiscal. Ou seja, o período que abrange o século XIII final e, grosso modo, os três primeiros quartéis do XIV, vê desenhar-se todo um quadro de poderes e respectivas práticas institucionais. E o processo social e político iniciado em Dezembro de 1383 e culminado com a realeza do Mestre de Avis (Abril de 1385) em pouco mexerá (6) com tal quadro. 1383-85 nada tem portanto de revolução em termos de História institucional (7).

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O panorama de Quatrocentos aponta assim para uma sobrevivência longa dos quadros institucionais surgidos no século precedente. Mas com uma novidade: o afirmar de tal quadro passara em boa parte, como se disse, por uma produção normativa régia de intensidade considerável. Ora a segunda década do novo século assistirá ao arrancar do percurso visando o elaborar de uma primeira compilação de leis (8): é efectivamente por volta de 1418, numa altura em que o futuro rei D. Duarte se encontra já associado à governação, que se dão os primeiros passos no trabalho de preparação do 'código' que ficará conhecido como Ordenações Afonsinas, concluído em 1446, durante a menoridade de Afonso V e a regência do infante – D. Pedro, seu tio. Empreendimento de preparação demorada – era uma relativa novidade, e apanhou pela frente com duas sucessões régias (1433 e 1438) e com um complexo processo de atribuição de regência (1438-1439) –, os resultados finais poderão ser considerados positivos pela precocidade que uma tal compilação representa em termos europeus; mas com o seu quê de decepcionante se for tido em conta o conspecto geral de 4 dos 5 livros que o integram; de facto, os livros II-V estão bem longe do facies de um moderno código: boa parte dos títulos que os integram são verdadeiros apanhados "antológicos" de normas legislativas, fornecendo ao leitor toda a genealogia (9) da prescrição final que o texto formula (10); o que não facilitaria por certo a tarefa dos magistrados que, por dever de ofício, tivessem de aplicar tais normas. Isto, associado ao escasso número de cópias manuscritas que terão existido, bem como à conotação do empreendimento com o vencido político e militar de Alfarrobeira (1449) (11), não faria por certo das Ordenações Afonsinas algo muito praticável, nem, eventualmente, muito popular no seio da sociedade política do tempo.

Um pouco por tudo isto, o panorama institucional a partir das décadas centrais do século XV é cognoscível muito mais pela prática judicial e administrativa do que ao nível do normativo. Ainda assim, o estado actual de conhecimentos estabelecido pela pesquisa mais recente continua a dar-nos – e pelo menos até ao último quartel da centúria – a ideia de continuidade, pontuada pelo surgir ocasional deste ou daquele ofício, por legislação avulsa, por sugestões no sentido da reforma das Ordenações, enfim, a partir de ca. 1480, por primeiras manifestações de aumento numérico de uma oficialidade que se fora mantendo acentuadamente estável ao longo da maior parte do século (12). O que acaba por nos fazer concluir algo porventura surpreendente para o leitor: em termos institucionais, o medievalizar dos tempos de D. João II e, em boa medida, de D. Manuel I.

Balanço porventura tanto mais surpreendente para este último, protagonista que foi de tempos de poder-espectáculo (pelo cerimonial de Corte, pelo próprio espectáculo da escrita consubstanciado nos volumes de reforma dos registos da Chancelaria, conhecidos como "Leitura Nova"), de reforma – enfim – da compilação/ codificação legislativa (com as Ordenações Manuelinas (13), de produção de diversa outra legislação ou de reforma dos forais. Simplesmente, uma boa parte de tais iniciativas surge já perto do final do reinado. Quando, portanto, o seu pleno efeito? Ao mesmo tempo que não faltam manifestações (uma vez mais) de continuidade: ao nível das práticas da burocracia de Corte, das instituições e dos poderes concelhios, da geografia das comarcas e das dioceses, etc. E as novidades (v. g. um acentuado boom no provimento dos oficiais régios, na decorrência de um constatado take off populacional; numeramento [1527] "dixit"...) não parecem ocorrer antes da década de 30. Mais: a própria versão de 1521 das Ordenações Manuelinas representa, relativamente aos precedentes textos legislativos, um claro empobrecer da adjectivação do poder régio, em termos do sublinhar da sua origem divina e do para quê do real officium.

Rematando: o Portugal da fase 'áurea' das Descobertas seria politicamente moderno se por tal entendermos o ocorrer, também entre nós, de um processo longo, remontável aos finais de Duzentos e prolongável pelos séculos de Antigo Regime. Mas as manifestações de uma ruptura, que claramente individualizasse um "Estado do Renascimento" face à herança medieval, são-lhe posteriores. Uma hipótese com o seu quê de ousado; mas que cumpre a uma pesquisa – até agora muito insuficiente — sobre o Portugal da primeira metade de Quinhentos confirmar ou infirmar.

__________
1 Charles PETIT-DUTAILLIS, Monarchie (La) féodale en France et en Angleterre (Xe-Xllle siècle), 2.ª ed., Paris, Albin Michel, 1971.
2 A prática das Inquirições remontava a Afonso II (1220), e será retomada, ora generalizadamente, ora para zonas específicas do Reino, por Afonso III (1258), D. Dinis (1284,1288,1290,1301, 1301 e 1307), Afonso IV (1335 e 1343), D. Fernando (1373) e D. João l (1395).
3 Incluindo a 'proto-história' do ofício definitivamente conhecido como Escrivão da Puridade a partir de meados do século, e consagrado então como verdadeiro pivot do processo de elaboração de actos escritos. Note-se que a oficialidade dionisina é ainda, e também, acentuadamente clerical: cerca de um terço dos efectivos pelos anos terminais do reinado.
4 A produção normativa dos monarcas portugueses tivera o seu minuto zero com Afonso II, em 1211; e uma continuidade intensa com Afonso III.
5 As quais, por seu turno, verão o quadro institucional respectivo configurar-se entre os anos 30 e os anos 90 do século XIV, em paralelo com toda uma série de transformações sociais a que corresponde o emergir de elites várias. A governação concelhia passa a estar a cargo de um "executivo" (vereação), o acesso ao qual tende na prática a reduzir-se a um baixo montante de indivíduos ou famílias; o próprio processo de escolha dos oficiais integrantes de tal executivo, nos moldes a que se chega pelos finais do século (com a Ordenação dos pelouros, 1391), mais do que uma verdadeira eleição, sugere um 'sorteio', no interior de um elenco pré-estabelecido.
6 Descontadas, evidentemente, algumas desorganizações temporárias, inevitáveis na conjuntura.
7 Apenas uma ressalva: é que os praticamente 50 anos (sem crises acentuadas) da governação de D. João I permitirão, ipso facto, que as sucessivas gerações de oficiais cheguem ao termo do seu serviço por morte ou veterania. Se, por comparação com o século anterior, os servidores régios de Quatrocentos dispõem de outras condições de estabilidade/longevidade de carreiras, a tanto não será por certo estranha a própria longevidade do fundador da dinastia.
8 "Primeira" se, evidentemente, deixarmos de lado o precedente (de certo modo 'marginal') constituído, pelos finais de Trezentos, pelo Livro das Leis e Posturas; e o precedente (decisivo) constituído pelas Ordenações del-Rei D. Duarte, cujo manuscrito original integrou a biblioteca do monarca referido pelo título.
9 Através da transcrição da lei-W de um qualquer monarca dos séculos XIII-XIV, ao que pode seguir-se a diegese nas leis subsequentes, rematando-se pela posição final do legislador de Quatrocentos, que tanto pode ser a confirmação sem mais dos antecedentes normativos, como o formular, em termos de aditamento (decraraçom), da sua própria opção na matéria.
10 A excepção a este panorama é portanto o liv. I, que contém os regimentos dos principais ofícios públicos (régios e municipais).
11 Ainda que este, de facto, apenas tenha 'protagonizado' os sete derradeiros anos de um processo que se prolongou por quase três décadas.
12 Se bem que um aumento consistindo fundamentalmente em desdobramentos/ multiplicações de ofícios pre-existentes do que propriamente no surgir de dignidades novas. E este panorama pautará inclusivamente a própria versão final das Ordenações Manuelinas.
13 Com uma primeira versão em 1512-14 e uma segunda (definitiva) em 1521.

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* Armando Luís de Carvalho Homem

Doutorado em História. Docente na Universidade do Porto e na UAL.

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