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A política de casamentos da Casa de Avis (1385 – 1580)

Fernando Amorim *

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Surgindo na Idade Média como resultado, entre outros factores, da tendência mais ou menos centrífuga da monarquia castelhana; definidas cedo as suas fronteiras (até 1325) enquanto entidade distinta no quadro cristão peninsular – as geográficas pelo Tratado de Alcanises (1297) – Portugal constituir-se-ia, desde D. Afonso Henriques, como uma monarquia hereditária idiossincrática, logrando realizar a consolidação de uma teia de vassalidades e fidelidades reinícolas, base da autoridade política e preeminente do rei, no quadro de um pacto de sujeição tacitamente aceite entre a realeza e a comunidade política, sem embargo da manutenção das prerrogativas senhoriais ou regionais, e dos interesses económicos e obediências eclesiásticas preexistentes.

Deste pacto – pactum subjectionis – uma verdadeira constituição monárquica de Portugal, provinha a especificidade portuguesa da aclamação do rei, que legitimava a preeminência régia enquanto reconhecimento da vontade nacional, e por outro modo, a consagração de um direito de resistência dos povos – clero, nobreza e povo – na eventualidade do desrespeito pelos juramentos e foros anteriormente proclamados no acto da aclamação régia. É este o sentido que explica o percurso pelo qual a respublica enveredou, aquando da crise dinástica que colocou em perigo a independência de Portugal em 1383-1385.

Em tempos de Grande Cisma do Ocidente e de Guerra dos Cem Anos que ganhara, também, uma feição peninsular com as guerras fernandinas, produto da reclamação de direitos dinásticos à coroa de Castela, a comunidade política, que enforma a respublica, demonstrada na perspectiva da hereditariedade a vacatura do trono, continuou a rever-se na monarquia a cujo património político pertencia o reino e optou pela eleição de um novo rei; de uma nova dinastia – a dinastia de Avis – dramaticamente nascida e morta sob o signo inquietante da união ibérica, impondo a uma legitimidade dinástica representada em D. Beatriz (casada com D. João de Castela), mas discutida e revogada nas cortes de Coimbra (1385), um sentido de legalidade popular como expressão de uma consubstancialidade entre Monarquia e Estado na pessoa do rei.

Legitimada no plano jurídico com a argumentação do Doutor João das Regras, jurista formado na doutrina do direito romano renascido em Bolonha, Itália, a aclamação do Mestre de Avis traduzia também uma reformulação e renovação dos protagonismos políticos concomitantes da ascensão de novas clientelas, com consequências no redesenhar dos esquemas de vassalagem e obediência e na consequente distribuição de benesses. A legitimidade formal da nova dinastia, observada na afirmação de uma autoridade poderosa, de próprio movimento, certa ciência, livre vontade e poder absoluto não tinha, contudo, reflexos sólidos no plano das relações internas com a comunidade política que a elegera e aclamara. É neste plano de afirmação do cesarismo régio da nova dinastia que importa, pois, considerar a acção política de D. João I, que se realiza a dois níveis: um jurídico-político, de que se retêm a instalação em Lisboa da Casa do Cível, tribunal para os feitos cíveis com jurisdição em toda a extensão do território português e jurisdição crime em Lisboa e seu termo; ainda, a preocupação em constituir uma compilação da legislação régia – um verdadeiro jus regni (Direito Real) – iniciada pelo herdeiro com as primeiras ordenações do reino, as Ordenações de D. Duarte, que integram as formulações de direito da monarquia portuguesa medieval desde D. Afonso II, complementada, no reinado seguinte (D. Afonso V), com as Ordenações Afonsinas.

A outro nível, o político-diplomático e exceptuando o casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre, explicado à luz da estratégica aliança marítima luso-britânica (tratado de Windsor de 9-V-1386) a dinastia de Avis levará a cabo uma política peninsular de ligações matrimoniais, vulgarmente apresentada com o intuito de uma afirmação externa do País e expoente da concórdia entre rei e comunidade em torno da ideia de monarquia, mas que, na essência, traduzir-se-á numa política de engrandecimento familiar, com sério risco para a autonomia política do país e que, a longo prazo, permitirá a Filipe II de Espanha tornar-se rei de Portugal (Cortes de Tomar, 16-III-1581 a 16-IV-1581). A influência profundamente inglesa, na cultura e nos costumes, que D. Filipa de Lencastre exerceu sobre o rei e a vida da corte portuguesa serviu essa estratégia de afirmação e propaganda régia relativamente à clientela política de uma nova nobreza, mas também face a uma fidalguia de pergaminhos: os filhos do rei - a ínclita geração - recebem o título de duques à inglesa, deixando o tradicionalmente português de infantes; ao primogénito dá-se o nome de Duarte, Edward, indicativo do seu sangue Plantageneta e a outro chamou-se Henrique, Henry. A ambiência em que se desenrola a investidura cavaleiresca dos príncipes, reflectindo a influência dos romances e os ideais da cavalaria inglesa, integra-se, também, no quadro da propaganda de um protagonismo régio que compara, na sua grandeza, a tomada de Ceuta (21 de Agosto de 1415) à batalha de Azincourt.

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Aparentemente paradoxal, a verdade é que a aliança com a Inglaterra, não obstante as motivações estratégicas e marítimas presentes na sua firmação, insere-se num âmbito mais vasto de alargamento das relações diplomáticas de Portugal com a Europa dos séculos XIV e XV. O advento da dinastia de Avis não representa a Sétima Idade proclamada por Fernão Lopes, antes, a manutenção do quadro diplomático tradicional, de entabulamento de contactos, mais ou menos intensos, e em todas as formas de actividade com os novos estados emergentes, mas também, com os reinos ibéricos, embora com motivações distintas em tempos distintos: em busca das pazes simples com Castela (definitivas em 1411 e perpétuas em 1431) como da hegemonia peninsular ou da união ibérica.

Os sucessivos tratados de aliança e de casamento entre príncipes de sangue serviam essa estratégia: com Aragão realizam-se os casamentos do futuro rei D. Duarte e D. Leonor (22-IX-1429), filha de Fernando I de Aragão, e do infante D. Pedro, futuro regente na menoridade de D. Afonso V, e D. Isabel (entre Março e Setembro de 1429), filha do conde D. Jaime de Urgel; a aliança com a Borgonha, potência política emergente do ainda fraccionado reino de França, pelo casamento da infanta D. Isabel com Filipe «o Bom» (7-1-1430), traduzia essa evolução na continuidade, reforçando, também, os interesses económicos de Portugal na sua feitoria de Bruges na Flandres, o maior porto do comércio Atlântico no século XV; com a Inglaterra renovou-se a aliança de 1386 com o casamento da infanta D. Beatriz, sucessivamente, com o conde de Arundel (1405) e o barão de Irchenfield (1415); com Castela, efectuou-se o casamento de D. Isabel, filha do infante D. João (mestre da Ordem de Santiago da Espada) com o rei D. João II (1447); com o Sacro Império Romano Germânico resultou a aliança e casamento de D. Leonor, irmã de D. Afonso V com Frederico III (1451); de novo com Castela, o casamento de D. Joana, irmã de D. Afonso V, com o rei Henrique IV (1455). Ainda, no ramo descendente do regente D. Pedro, vencido em Alfarrobeira, o casamento da sua filha D. Beatriz com Adolfo Von Kleve (1450-1455); do infante D. João com Carlota de Lusignan, rainha de Chipre (1456); e a breve e trágica realeza (como rei da Catalunha, 1464 - 29-V-1466) do condestável e Mestre de Avis D. Pedro. O primeiro sonho ibérico sob a égide portuguesa desenrola-se com a questão da sucessão em Castela por morte de Henrique IV: o casamento de D. Afonso V com a sobrinha D. Joana a Beltraneja supunha a formação de um bloco atlântico, com a união de Castela e Leão a Portugal, em reacção a um forte bloco aragonês resultante do casamento de Isabel de Castela com Fernando II de Aragão.

O desfecho político de Toro (2-III-1476), com a perda de apoios de D. Afonso V, fez esboroar momentaneamente esse projecto confirmado nas pazes de Alcáçovas-Toledo (4-IX-1479; 6-III-1480). Na realidade, estas pazes significavam também o reatamento da ideia de união ibérica, porquanto, complementarmente, acordou-se, pelo capítulo adicional designado Tratado das Terçarias de Moura, datado de 10-IX-1479, o casamento entre filhos de ambas as partes: do príncipe de Portugal, D. Afonso, filho do Príncipe Perfeito, com D. Isabel, filha mais velha dos Reis Católicos, realizado em 23-XI-1490. Sete meses e vinte e dois dias depois, a desastrosa morte do príncipe D. Afonso (13-VI-1491) aos dezasseis anos de idade, na sequência de uma queda de cavalo, provocava, mais uma vez, a ruína do sonho ibérico sob a égide e tendência centrípeta portuguesa. Derrotada a tentativa de legitimar o filho bastardo, D. Jorge, e reconhecida por D. João II a sucessão monárquica legítima de D. Manuel I, pertenceu ao Venturoso a manutenção do sonho da união ibérica: demonstra-o o seu casamento (1497) com D. Isabel, viúva do príncipe D. Afonso; o juramento do filho de ambos, o príncipe D. Miguel da Paz como herdeiro de Leão, Castela, Aragão (24-VIII-1498) e de Portugal (7-III-1499) no rescaldo da morte da mulher; o segundo casamento de D. Manuel com D. Maria (1500), outra filha dos Reis Católicos, após a morte de D. Miguel (Granada, 20-VI-1500), que, sem embargo de desfazer o sonho da dualidade monárquica por não ser herdeira de Castela, contudo, pelos nove filhos em que resultou, não apenas asseguraria a continuidade dinástica em Portugal, como também, a prazo, a realização última daquele sonho, mas já sob a égide da Espanha, porquanto Filipe II, neto de D. Manuel, lograria obter a aclamação régia nas cortes de Tomar (16-IV-1581).

O terceiro casamento de D. Manuel (em 1518) com D. Leonor de Áustria e Habsburgo, irmã de Carlos V e sobrinha das antigas mulheres, é já o prólogo da afirmação e vitória da tendência centrípeta de uma Espanha imperial, em que se enquadram, também, as quatro alianças matrimoniais, todas elas com a monarquia vizinha, efectuadas no reinado de D. João III: o próprio casamento do rei com D. Catarina, irmã do imperador e de D. Leonor (1525); o casamento de Carlos V (e I de Espanha) com D. Isabel (1526), irmã do rei de Portugal e filha de D. Manuel I, de que nasceria Filipe II de Espanha, rei de Portugal após a morte do cardeal D. Henrique (rei de 3-VIII-1578 a 31-1-1580) e a derrota da realeza de D. António Prior do Crato (aclamado em 19-VIII-1580) na batalha de Alcântara (25-VHI-1580); o casamento do filho e herdeiro do imperador, Filipe (H de Espanha) com D. Maria, filha de D. João III (1543); e, por último, o casamento do malogrado infante D. João, herdeiro da Coroa portuguesa, com D. Joana de Áustria, filha de Carlos V (1552), de que nascerá (em 1554) D. Sebastião, o Desejado. Domínio filipino (união ibérica) e império marítimo português constituem assim os dois pilares capitais na consciencialização da nossa individualidade; na cristalização de uma consciência do nós e dos outros. Ambos marcam o nosso carácter por meio de uma dicotomia permanente entre um complexo de inferioridade que a união dinástica peninsular representa, enquanto instrumento de viabilização, à época, de uma solução de estado em Portugal, e o cunho distinto de um sentimento de grandeza e desígnio a cumprir que os descobrimentos nos despertam. Sem, por certo, o imaginarem, os reis de Avis e os Filipes de Espanha contribuíram decisivamente para a afirmação da nossa personalidade e da nossa identidade.

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* Fernando Amorim

Mestre em História/História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Docente na UAL.

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