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Janus 2001



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Tordesilhas: ponto de encontro, lugar de partida

Fernando Amorim *

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Entre Espanha e Portugal muitas foram as fronteiras e poucos os laços que a história foi construindo. Tordesilhas encarna um simbolismo histórico surpreendente: ao contrário do que seria de supor, constitui na origem um ponto de encontro. O triunfo da palavra e da negociação sobre o confronto bélico; a busca de pontes de entendimento entre dois países cujo fatalismo geográfico de vizinhança conduzira à necessidade de uma afirmação mais ou menos cíclica das suas especificidades e de desígnios distintos a cumprir.

Se do ponto de vista geográfico não existe uma fronteira entre Portugal e Espanha a fronteira que nos foi separando até à sua transformação em confim de um "Estado" resultou de uma definição progressiva no tempo e realizada a vários níveis, mas onde, de maior relevo, foi a da configuração política, considerada como tradução da vida pública de uma comunidade relativamente coesa, construída à sombra, mas também, em concurso com o poder régio português.

Dois países comungando de um mesmo espaço peninsular, acabariam por percorrer caminhos distintos e historicamente distantes.

No quadro das relações assumidamente concorrentes e nem sempre fáceis entre as duas coroas, fundamentalmente, desde o conflito que desembocara nos tratados de Alcáçovas-Toledo (1479-1480) e na definição de esferas de influência demarcadas a partir de um paralelo «para baixo» das Canárias, o tratado de Tordesilhas, firmado em 7 de Junho de 1494 (cf. Informação Complementar), enquanto recombinação e reordenamento desses interesses divergentes representa, neste sentido, um lugar de partida.

Dois conceitos acerca das relações Estado e Monarquia, o português e o espanhol, condicionarão a feitura do acordo; dois percursos opostos na relação entre Europeus e Povos, Civilizações e Culturas pluricontinentalmente diversificados, e ainda, duas distintas concepções de império emergirão deste encontro que marcaria definitivamente a diferença na história destes dois países até à sua integração na União Europeia.

Quanto ao primeiro aspecto, as relações Estado-Monarquia na época do Tratado de Tordesilhas, sendo Portugal, desde D. Afonso Henriques, uma monarquia hereditária, contudo, essa circunstância não impediu a concomitância das vassalidades e fidelidades reinícolas, propriamente ditas; nem a coexistência da vontade política e preeminente do rei, subjacente a um pacto de sujeição aceite entre realeza e comunidade política, com uma vontade de senhores, de regiões, de vassalos, de interesses económicos e obediências eclesiásticas que, no todo, prefigurariam a idiossincrasia de um Portugal nação e Portugal reino na reconquista e na expansão ultramarina.

O pactum subjectionis traduzido na especificidade portuguesa da aclamação do rei e que legitimava a preeminência régia enquanto reconhecimento da vontade nacional, se se consubstanciava num governo real efectivo, legitimava ainda, como efectivamente legitimou, a renovação da constituição monárquica – prévia e necessariamente demonstrada, na perspectiva do regime monárquico, a vacatura do trono – para assegurar a sobrevivência, nos acontecimentos políticos decisivos de 1383-1385, dessa já realidade que D. Duarte designará como o «nosso estado» de Portugal.

Quer dizer, a respublica continuou a rever-se na monarquia a cujo património político pertencia o reino; monarquia cuja autoridade única, de próprio movimento, certa ciência, livre vontade e poder absoluto provinha da concessão popular. É este o sentido de legalidade popular que enforma a acção do rei português de Tordesilhas, que tomará por divisa "Pola lei e pola grei" como expressão de uma consubstancialidade entre direitos reais e direitos de Estado, isto é, consubstancialidade entre Monarquia e Estado na pessoa de D. João II; uma monarquia activa na forma como aborda e pondera os termos da bula de Alexandre VI (bula Inter Coetera) de 3 e 4 de Maio de 1493, na sequência da primeira viagem de Colombo ao Novo Mundo; e activa ainda, no modo como preparou e conduziu a negociação do Tratado de Tordesilhas, logrando afirmar, em termos internacionais a definição de um domínio; de um império marítimo à escala mundial; reconhecido bilateralmente à luz de um momentâneo encontro; de um acerto de interesses no respeito pelo compromisso da palavra sobre o confronto bélico.

A identificação da monarquia e do estado na pessoa do rei; a justificação da acção régia pelos interesses de estado conduziram o rei português de Tordesilhas, sacrificando as ambições pessoais depositadas no senhor D. Jorge, seu filho bastardo, e ao contrário do ocorrido em 1383-1385, a reconhecer, em 1495, a sucessão monárquica legítima de seu primo e cunhado D. Manuel, Duque de Beja, desta feita, usando a constituição monárquica como instrumento de reforço e salvaguarda do estado. E o certo é que O Venturoso assumiu a substância desse legado, revelando, na profunda e moderna reforma legislativa, administrativa e ultramarina por si levada a cabo, uma concepção cesarista do «nosso estado» que quantitativa e qualitativamente transcende a natureza e os termos de um poder e direito de estado de que D. João II o reconhecera fiel depositário. Visando o princípio da unidade da Lei faz publicar uma nova compilação sistemática de leis – as Ordenações Manuelinas. Surgem novos órgãos de governo através de legislação avulsa ou reformam-se os existentes, tendo em vista acorrer às necessidades da administração ultramarina.

E é neste particular que a ratificação do Tratado de Tordesilhas (7.06.1494; Arévalo, 2.07.1494; Setúbal, 5.09.1494) mais se afirma como um lugar de partida: o subsequente império marítimo português fundar-se-á numa lógica pragmática e económica, traduzida na assunção da autonomia e diversidade geográfica e pluricontinental das suas partes constitutivas, e na minimização do esforço humano e material, de que resultou uma visível redução de custos políticos na administração ultramarina, ao contrário do que ocorrerá com o império espanhol, um império clássico, fundado no domínio efectivo e homogéneo de vastas extensões de território no Novo Mundo em nome do prestígio e reputação da coroa e sua soberania política.

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Aparentemente mais débil, o império português assentou a sua solidez numa construção descentralizada e modular que lhe permitiu ultrapassar as dificuldades de afirmação de soberania sobre alguma região particular ou sobre alguma das suas rotas marítimas fundamentais. Modularidade e descontinuidade territorial, se aparentemente contrastantes com um centralismo administrativo e institucional metropolitano ao nível do governo do império, ajudariam aliás à permanência de Portugal em África e na Ásia até aos nossos dias, com iniludíveis reflexos no plano da construção de um certo Luso-Tropicalismo como caldeamento étnico e cultural que transcende, hoje, o mero plano da relação entre ex-colónia e ex-colonizador.

Enquanto projectos ainda em elaboração, as nacionalidades emergentes da descolonização portuguesa, revêem-se num conjunto de – valores que o passado nos legou como características individualizantes: a multirracialidade; a capacidade intrínseca aos portugueses de se diluírem na identidade da comunidade adoptiva sem abdicarem das raízes; o idioma, na origem, a língua doOutro Civilizacional, que será tanto mais linha de fronteira com os outros que nos cercam quanto maior for a sua habilidade em deixar de ser só "português"; o sentimento de um fatalismo geográfico de insularidade e periferia face aos centros e à imensidão dos nossos vizinhos, mas que actua como factor de coesão na afirmação de um sentimento do nós e dos outros.

 

Informação Complementar

A arbitragem do papa espanhol

Da primeira partilha do Atlântico – Alcáçovas-Toledo (4-IX-1479; 6-III-1480) – à definição de um domínio marítimo mundial em Tordesilhas (7-VI-; Arévalo - 2-VII; Setúbal - 5-IX-1494):

A morte de Henrique IV de Castela (1454-1474) resultou numa guerra pela legitimidade na sucessão ao trono entre os partidários de D. Joana a Beltraneja e D. Afonso V, com D. Isabel a Católica, irmã de Henrique IV. Esta guerra ganhou uma dimensão ultramarina pela reivindicação de D. Isabel de Castela de direitos ao comércio na Guiné e apenas terminaria com a assinatura do Tratado de Alcáçovas (4-IX-1479) confirmado e ratificado pelo Tratado de Toledo (6-III-1480). Além das cláusulas relacionadas com a resolução do problema sucessório em Castela e da questão da soberania castelhana sobre o arquipélago das Canárias, Castela reconheceu a soberania de Portugal, além dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, sobre todas as terras e ilhas descobertas e a descobrir, bem como a exclusividade da navegação e comércio portuguesa, «das ilhas das Canárias para baixo contra Guinea», segundo um paralelo de demarcação a partir daquelas ilhas.

Em 1492 o problema renovou-se, em consequência da viagem de Colombo e da descoberta do Novo Mundo. D. João II, interpretando o estipulado em Alcáçovas reclamou para Portugal a soberania sobre aquelas terras, de que resultou a ameaça de reatamento da guerra e a arbitragem do papa Alexandre VI, que, coerente com a sua naturalidade espanhola, se inclinou em favor dos reis católicos ao promulgar em 1493 cinco bulas sucessivas de que a mais relevante é a Inter Coetera II (4-V-1493) por estabelecer uma linha de demarcação traçada de pólo a pólo – "línea del polo Árctico al polo antárctico (...) que diste de Ias islas que vulgarmente se llaman de los Azores o Cabo Verde cien léguas hacia occidente y mediodía".

A negociação entre as partes em Tordesilhas, em Marco de 1494, resultou em dois tratados independentes mas intimamente relacionados: um (o segundo) delimitando zonas de influência espanhola no reino de Fez (África do Norte) – base da ocupação de Melilla (1497) e expansão aragonesa para oriente – e concedendo aos reis católicos direitos de pesca na costa fronteira às Canárias. Outro, o primeiro, e mais importante, em que D. João II conseguiu: que a demarcação de áreas fosse efectuada, não a 100 léguas como o estabelecia a decisão papal, nem a 250 (na previsão de Colombo descobrir novas terras no decurso da sua segunda viagem) mas a 370 léguas a Ocidente de Cabo Verde, O monarca português obteve assim uma dupla vitória em termos de direito de estado: consolidou a sua estratégia para o Atlântico, salvaguardando a rota da índia para as armadas portuguesas e, no plano diplomático, logrou afastar o Papado das negociações, transformando as bulas alexandrinas, que consubstanciavam uma outorga aos reis de Espanha, na base negocial de partida para um tratado bilateral, celebrado directamente pelas partes interessadas. O Tratado de Tordesilhas representa assim, em termos internacionais, a segunda divisão do Atlântico mas segundo, a definição do contrameridiano de Tordesilhas, decorreria do conflito renascido na sequência da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães (1519-1522) e da questão das Molucas (1524-1529)

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* Fernando Amorim

Mestre em História/História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Docente na UAL.

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Bibliografia

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