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Janus 2001



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O caminho difícil da democracia

Guilherme d’Oliveira Martins *

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Cinquenta anos após a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cabe perguntar qual o futuro da democracia no mundo e quais as condições concretas para o respeito e salvaguarda das liberdades fundamentais.

O século XX foi dominado por tendências contraditórias – de um lado, a afirmação de modelos totalitários de diversos cambiantes, de Auschwitz ao Gulag, naquilo que Hobsbawm designou como a "idade dos extremos", e de outro a extensão da vida democrática a um número crescente de países. De qualquer modo, há um intenso debate sobre se essa extensão da vida democrática conduz a um respeito substancial dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Declaração Universal e se o pluralismo é salvaguardado através de autênticos Estados de direito democrático.

Antes do mais, trata-se de saber se a democracia conduz à consagração de modelos uniformes de organização política. Naturalmente que a resposta é negativa. A democracia concretiza-se de diversos modos. Os modelos democráticos têm de se adaptar às diferentes realidades culturais. Há, porém, princípios fundamentais que têm de ser respeitados: o primado da lei, a legitimidade do voto, a renovação periódica dos mandatos através de eleições livres, a legitimidade do exercício do poder, a limitação de poderes e a sua separação e interdependência. Infelizmente, a carta geográfica relativa ao respeito destes princípios oferece-nos sérios motivos de preocupação.

Em muitas situações, o primado da lei é formal, a salvaguarda dos direitos fundamentais depara com excepções injustificáveis e ilegítimas. E se nos recordarmos das considerações de Montesquieu depressa verificamos que o fundamental estará na consagração de sistemas de freios e contrapesos que impeçam o abuso do poder ou a sua eternização – afinal a democracia é obra comum de rivais... Importa, pois, distinguir os modos de organização da democracia e a dimensão universal dos direitos humanos, assente na dignidade da pessoa humana e na busca da felicidade para os cidadãos – numa sociedade que se pretende de seres humanos livres e iguais. Assim, os modos de organização democrática têm de ser compatíveis com a diversidade cultural e a complexidade social – partindo do pluralismo como valor, do carácter laico dos Estados, por contraponto às tentações teocráticas, do primado da lei e da limitação entre poderes.

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Não basta haver eleições, não basta existirem órgãos de aparência democrática – é indispensável haver uma orientação para a dignidade humana, para a justiça, para o respeito da autonomia individual e da diversidade cultural e para a solidariedade voluntária. Fareed Zakaria tem falado na emergência da noção de democracia não liberal – dando à expressão um sentido minimalista, como sinónimo de sistema que consagra a existência de eleições periódicas. O autor é levado, porém, a entender a superioridade das autocracias liberais sobre as democracias não liberais. Nesse sentido, o fundamental estaria no respeito formal das liberdades, designadamente nas esferas da propriedade e do mercado... Impõe-se, porém e pelo contrário, clarificar a noção de democracia para além desses aspectos formais.

A democracia envolve a liberdade e a legitimidade, o consentimento e a representação, o mercado e a regulação. Nessa acepção, deve haver uma confluência entre a diversidade cultural, a multiplicidade de interesses e a universalidade do respeito pela dignidade humana.

E o pensamento democrático contemporâneo considera a noção de democracia política a partir da ideia de sociedade aberta, respeitadora da esfera individual dos cidadãos (seres humanos livres e iguais em dignidade e direitos) para chegar à noção de solidariedade cívica do Estado Social. Como afirma A. J. P. Taylor: "Everyone in private life strikes a balance between self interest and high principle. The people want the same in public afifairs. They will never support a policy which thinks of 'national interest' alone; nor will they sacrifice themselves, and others, for an idealism which does not count the cost. (...) The professional diplomats must have ideals; and the idealists must have some common sense" ("Europe: Grandeur and Decline", Penguin, 1985, p. 363).

Há, porém, perigosos sintomas de uma enfermidade da democracia. Vivemos no tempo das opiniões públicas, depois das eras dos parlamentos e das massas; a verdade é que urge compreender que a democracia não pode ser um exercício de malabarismo, esquecido de uma ética da responsabilidade e do bem comum. Plutarco disse, por isso mesmo, que um homem de Estado deve sempre preferir, na sua conduta política, o que é honesto ao que deleita. E Robert Dahl (Cf. "La Democracia. Un Guia para los Ciudadanos", trad. Fernando Vallespin, Taurus, Madrid, 1999) alerta para que "os valores e os fins da democracia acabarão por sucumbir se aqueles que acreditam neles deixam de os apoiar o melhor que possam".

A verdade é que nesta "terceira vaga democrática" (Samuel Huntington) iniciada por Portugal, caracterizada pelo desaparecimento dos regimes autoritários do sul da Europa, pelos fracassos das ditaduras latino-americanas, pelo desmoronamento do bloco soviético, há problemas novos com que lidamos mal. A internacionalização das instituições políticas, a globalização económica, a fragmentação geopolítica, os choques multiculturais, a exclusão social, a corrupção, exigem uma nova consciência cívica.

Dos 192 Estados do planeta, 65 têm, de algum modo, governos democráticos – segundo os cinco critérios de Dahl: a participação de todos os cidadãos nos processos de decisão, a igualdade do voto, a existência de alternativas que permitam escolhas conscientes, o controlo dos cidadãos relativamente à agenda política do Estado, o reconhecimento dos direitos de cidadania para todos os adultos. E assim chegamos ao que o autor vem designando como "poliarquia", ponto culminante do processo em que se integram o impulso das revoluções inglesa, americana e francesa e a estabilização reformista dos últimos cinquenta anos.

Cargos públicos eleitos, eleições livres, imparciais e frequentes, liberdade de expressão, fontes alternativas de informação, autonomia das associações voluntárias e cidadania inclusiva – eis o que tem de ser preservado, controlando-se o poder militar e policial através de órgãos eleitos e garantindo o predomínio dos valores democráticos na cultura política.

Mas a democracia e o capitalismo formam um "tempestuoso matrimónio", não sendo a democracia um epifenómeno ou uma consequência necessária da economia de mercado. Perante uma relação de contradição e de complementaridade e uma tendência para distribuir desigualmente os recursos políticos, económicos e culturais pela população, há necessidade de orientação e de regulação – para que as pessoas se governem a si mesmas como politicamente iguais adoptando recursos e instituições com esse sentido. Entre a utopia e a adaptação, no tornar possível o necessário, tem de situar-se uma política de princípios e de palavra. E assim o pluralismo torna-se condição da cidadania.

No século que agora chega ao fim, começou por aprofundar-se a herança das revoluções liberais de 1688, inglesa, e de 1789 em França – em nome da autonomia individual e da liberdade política. Depois do final do primeiro conflito mundial surgiram os primeiros sinais – sentidos antes em 1848 e 1870 – da exigência de uma democracia social adaptada ao industrialismo e à proletarização – que Ortega y Gasset designou como rebelião das massas e que Elias Canetti também analisou com muita pertinência. Depois, a grande depressão iniciada em 1929 e a segunda guerra conduziram ao Estado social, que viria a oscilar historicamente entre o "Estado produtor" do colectivismo e a acepção mitigada da "economia social de mercado". Mas o pós-guerra trouxe, ainda, a Carta das Nações Unidas, a descolonização e a emergência de "novas nações", deixando o tema da democracia de ser exclusivo dos países industrializadas, para ligar-se cada vez mais à concretização do direito ao desenvolvimento.

Nos anos 70, a Europa do Sul anunciou um movimento no sentido do aprofundamento democrático – através de um equilíbrio entre as dimensões política e social das democracias. Os regimes democráticos tornaram-se, deste modo, sinais e símbolos de desenvolvimento – considerado como um salto qualitativo, ligando legitimidade, representação, coesão, prosperidade e dignidade humana.

Em 1989, o fim da guerra fria e o processo de abertura e democratização no centro e no leste da Europa nos países do pós-comunismo, marcaram um novo impulso extraordinário, que se somou à evolução democrática na América Latina, no sentido da universalização tendencial do debate democrático. A democracia deixou de poder ser considerada como um sistema formal, exclusivamente baseado politicamente no voto ou assente economicamente num modelo de satisfação de necessidades básicas. Os direitos políticos, económicos, sociais e culturais tornaram-se claramente indivisíveis. Autonomia e responsabilidade, liberdade e igualdade, dignidade e igual respeito e consideração por todos são complementares.

"O ser humano é o sujeito central do desenvolvimento e assim deve ser participante activo e beneficiário do direito ao desenvolvimento" – afirma a Declaração sobre o direito ao desenvolvimento adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas de 4 de Dezembro de 1986. E aí afirma-se ainda que "o direito ao desenvolvimento é um direito inalienável do homem em virtude do qual toda a pessoa humana e todos os povos têm o direito de participar e de contribuir para um desenvolvimento económico, social, cultural e político no qual todos os direitos humanos e todas as liberdades fundamentais possam ser plenamente realizadas, e beneficiar deste desenvolvimento".

Democracia e desenvolvimento ligam-se, deste modo. Não é possível mais distinguir as questões, uma vez que o político e o social ligam-se intimamente. Os novos fenómenos de exclusão têm repercussões inseparáveis nas esferas política e económica. A liberdade individual e a igualdade de consideração e respeito para todos não podem ser vistas como estranhas entre si... Um dia, um velho combatente do desembarque da Normandia perguntou: "Por que razão combatemos nós Hitler em defesa da liberdade? Não certamente porque pensássemos que a liberdade significa que não existem padrões". E esse antigo soldado logo lembrou a célebre afirmação de Thomas Jefferson, expressa na Declaração da Independência dos Estados Unidos: "Os homens foram criados iguais e dotados pelo Criador de direitos inalienáveis, como o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade". Ainda hoje a democracia tem de estar orientada nesse sentido — na linha do aperfeiçoamento permanente da sociedade, na compreensão de que a liberdade e a justiça são faces da mesma moeda.

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* Guilherme d’Oliveira Martins

Licenciado e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Secretário de Estado da Administração Educativa.

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