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- JANUS 1999-2000 -

Janus 2001



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Do Tribunal de Nuremberga ao Tribunal de Roma

Catarina Albuquerque e Patrícia Galvão Teles *

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Os Tribunais Militares de Nuremberga e Tóquio foram criados por acordos internacionais firmados entre os países aliados vencedores da Segunda Guerra Mundial. O seu objectivo era julgar os principais criminosos de guerra alemães e japoneses. Estes tribunais tinham competência para julgar e condenar os indivíduos que cometeram qualquer um dos seguintes crimes:

(a) Crimes contra a paz: designadamente, planeamento, preparação, início ou condução de uma guerra de agressão ou de uma guerra em violação de tratados, acordos ou garantias internacionais, ou participação num plano ou conspiração para levar a cabo essa guerra;
(b) Crimes de guerra: designadamente, violações das leis ou costumes da guerra. Tais violações incluem, entre outras, homicídio, maus tratos, deportação para trabalhos forçados ou outros fins, da população civil de ou num território ocupado, homicídio ou maus tratos de prisioneiros de guerra, homicídio de reféns, abuso de propriedade pública ou privada, destruição de cidades, vilas ou aldeias não justificada pelas necessidades militares;
(c) Crimes contra a humanidade: designadamente, homicídio, exterminação, escravatura, deportação e outros actos desumanos cometidos contra a população civil, antes ou durante a guerra, ou perseguições com base em motivos políticos, raciais ou religiosos em execução ou em conexão com algum crime no âmbito da jurisdição do Tribunal, em violação ou não do direito interno do Estado onde perpetrados.

O julgamento dos principais criminosos de guerra da Segunda Guerra Mundial nos Tribunais de Nuremberga e Tóquio confirmou o princípio consagrado nos seus Estatutos segundo o qual existe uma responsabilidade individual pelas infracções graves às normas aplicáveis em caso de conflito armado. Como foi afirmado pelo Tribunal Militar Internacional de Nuremberga, "crimes against international law are committed by men, not by abstract entities, and only by punishing individuais who commit such crimes can the provisions of international law be enforced."

A posição oficial, mesmo de Chefe de Estado ou de Governo, não constitui uma excepção ao princípio da responsabilidade individual. Em Nuremberga, no julgamento dos principais criminosos de guerra dos países do Eixo foram efectuadas 23 condenações. E em julgamentos subsequentes, ao abrigo da Lei n.º 10 do Conselho de Controlo da Alemanha, contam-se, pelo menos, os seguintes casos: EUA v. Pohl; EUA v. Ohlendorf; EUA v. Altsoelter et al; EUA v. von Weizsacker et al; EUA v. Flick et al; Caso Einsatzgruppen; Caso I.G. Farben; Caso Comando Superior Alemão. No Tribunal de Tóquio foram julgados e condenados 25 indivíduos. Porém, nenhum soldado ou oficial aliado foi julgado num tribunal internacional ou nacional por actos praticados durante a Segunda Guerra Mundial.

 

Ex-Jugoslávia e Ruanda

Os Tribunais Penais Internacionais para julgar os crimes cometidos na Ex-Jugoslávia e no Ruanda foram criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 1993 e em 1994, respectivamente. As diferenças existentes nos seus Estatutos têm sobretudo a ver com a natureza do conflito, uma vez que, ao invés do conflito que ocorreu no território da Ex-Jugoslávia, a situação no Ruanda foi um conflito de carácter meramente interno.

O Tribunal Penal Internacional para julgar os crimes cometidos na Ex-Jugoslávia, com sede em Haia, tem poderes para julgar pessoas responsáveis por infracções graves do direito internacional humanitário (ou direito dos conflitos armados) cometidas no território da antiga Jugoslávia a partir de 1991. O Tribunal é competente para julgar pessoas que cometeram ou ordenaram a comissão de:

(a) Infracções graves às Convenções de Genebra de 1949, nomeadamente os seguintes actos contra pessoas ou bens protegidos pelas Convenções: homicídio intencional, tortura ou tratamentos desumanos, infligir intencionalmente grande sofrimento ou ofender gravemente a integridade física ou a saúde, destruição ou apropriação de bens não justificadas por necessidades militares e executadas em grande escala, de forma ilícita ou arbitrária, obrigar uma pessoa protegida a servir nas forças armadas da potência inimiga ou privá-la do seu direito de ser julgada regular e imparcialmente, deportação ou transferência ilegais, reclusão ilegal, tomada de reféns civis, etc;
(b) Violações das leis e costumes da guerra: utilização de armas proibidas, destruição de cidades, vilas ou aldeias não justificada pelas necessidades militares, ataque ou bombardeamento de cidades, aldeias ou edifícios indefesos, apropriação ou destruição de instituições dedicadas à religião, caridade, educação, arte, monumentos históricos, etc;
(c) Crime de genocídio: actos com a intenção de destruir, em todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso (homicídio de membros de um grupo, ofensa grave à integridade física ou mental de membros de um grupo, imposição de condições de vida que podem levar à destruição física do grupo, imposição de medidas de controlo de natalidade no grupo, transferências forçadas de crianças do grupo para outro grupo);
(d) Crimes contra a humanidade: actos contra a população civil durante conflito armado, tais como, homicídio, exterminação, escravatura, deportação, encarceramento, tortura, violação, perseguição política, religiosa ou racial, e outros actos desumanos.

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O Tribunal Penal Internacional para julgar os crimes cometidos no Ruanda, com sede em Arusha, é competente para julgar indivíduos responsáveis por sérias violações do direito internacional humanitário cometidas no território do Ruanda e para julgar cidadãos ruandeses responsáveis por tais violações cometidas no território de Estados vizinhos entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 1994.

O Tribunal é competente para julgar os crimes de genocídio, contra a humanidade – estes dois definidos em termos idênticos aos utilizados no Estatuto do Tribunal da Ex-Jugoslávia – e as violações do artigo 3.º das Convenções de Genebra de 1949 e do 2.º Protocolo Adicional às mesmas Convenções. Estas violações incluem interalia: violência contra a vida, saúde e bem-estar físico e psíquico da pessoa, e em particular homicídio, tratamentos cruéis tais como tortura, mutilação ou qualquer forma de punição corporal; punições colectivas; tomada de reféns; actos de terrorismo; actos contra a dignidade pessoal, em particular tratamentos humilhantes e degradantes, violação, prostituição forçada e qualquer forma de ataque sexual; pilhagem; condenações e execuções sem julgamento prévio, pronunciado por um tribunal regulamente constituído, com todas as garantias judiciais reconhecidas como indispensáveis pelos povos civilizados; entre outros.

De acordo com ambos os Estatutos, a pessoa que planeou, instigou, ordenou, cometeu ou ajudou no planeamento, preparação ou execução dos crimes é individualmente responsável pelo crime. A posição oficial do acusado, quer seja Chefe de Estado ou de Governo ou responsável governamental, não impede a responsabilidade penal nem mitiga a punição. A jurisdição do tribunal é concorrente com as jurisdições nacionais, mas o tribunal internacional goza de primazia sobre os tribunais nacionais. Ambos não permitem julgamentos in absentia.

O Tribunal Penal Internacional para julgar os crimes cometidos na Ex-Jugoslávia formulou já 24 acusações públicas (com um total de 83 acusados), e várias outras acusações não públicas. Actualmente, encontram-se 26 indivíduos sob custódia do tribunal. Vários indivíduos, sérvios e croatas, foram já condenados pelo Tribunal: Erdemovic (condenado em 1996 e 1998); Tadic (condenado em 1997); caso Celebici (3 indivíduos condenados em 1998); e Furundzija (condenado em 1998). O Tribunal Penal Internacional para julgar os crimes cometidos no Ruanda formulou já 22 acusações (com um total de 35 acusados). O Tribunal tem actualmente sob sua custódia 31 indivíduos, incluindo líderes políticos e militares. Dois altos funcionários do regime foram condenados em 1998 por crimes de genocídio e contra a humanidade (casos Kambanda e Akayesu).

 

Processos em tribunais nacionais

No rescaldo das duas grandes guerras e dos conflitos ocorridos no território da Ex-Jugoslávia e Ruanda, vários tribunais nacionais julgaram indivíduos por crimes de guerra e crimes contra a humanidade:

(a) Primeira Guerra Mundial: 13 condenações (Alemanha).
(b) Segunda Guerra Mundial: Eichmann (Israel); Touvier, Barbie, Papon, Aztiz (França); Menter (Holanda); Yamashita, May Lai, Demjanjuk v. Petrovski (EUA); R. v. Finta (Canada). Outros indivíduos foram ainda julgados em tribunais alemães, austríacos e checoslovacos.
(c) Ex-Jugoslávia (entre 1993 e 1998): S. Kadic v. R. Karadzic (USA); Jane Doe v. R. Karadzic (Holanda); Ministério Público v. G. Grabec (Suíça); Ministério Público v. R. Sanic (Dinamarca); E. Javor et al v. X (França).
(d) Ruanda: V. NT (Bélgica). Alguns destes julgamentos foram efectuados inabsentia, o que significa que alguns dos indivíduos condenados se encontram ainda em liberdade, como é o caso de Radovan Karadzic.

 

O Tribunal Penal Internacional

A 17 de Julho de 1998, em Roma, cerca de 150 Estados decidiram criar um Tribunal Penal Internacional permanente para julgar indivíduos pelas mais graves ofensas que dizem respeito à comunidade internacional. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional foi aprovado por 120 votos a favor, 7 contra e 21 abstenções, e entrará em vigor após a 60.º ratificação. O Tribunal, que terá sede em Haia, será competente para julgar o crime de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Apesar de terem sido discutidos, ficaram por enquanto de fora os crimes de agressão (consagrado no Estatuto, mas a ser definido em momento posterior), terrorismo e tráfico de estupefacientes.

O Estatuto do Tribunal define detalhadamente todos os crimes sobre os quais este possui competência. A definição de genocídio é idêntica à dos tribunais da Ex-Jugoslávia e Ruanda. Os crimes contra a humanidade são definidos em muito maior detalhe e não dependem da existência de um conflito armado, tendo apenas de ser parte de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil: homicídio, extermínio, escravatura, deportação ou transferência forçada da população, tortura, violação e outras formas de violência sexual, desaparecimentos, perseguição política, religiosa, racial ou outra, etc.

A definição de crimes de guerra compreende a levada a cabo pelo estatuto da Ex-Jugoslávia mas é mais abrangente, incluindo os conflitos internacionais e não internacionais, e muito mais detalhada. O princípio fundamental do Tribunal é o da complementaridade. Ele entrará em acção apenas quando não for possível julgar o acusado nas jurisdições nacionais. Isto é, o Tribunal não é competente se o caso estiver a ser investigado ou julgado por um Estado que tenha jurisdição sobre ele, a não ser que esse Estado não possa ou não queira proceder a um julgamento que cumpra as regras internacionais.

 

Perspectivas para o século XXI

As grandes evoluções nesta matéria concentram-se, como foi visto, na segunda metade do século XX e sobretudo na sua última década. A criação dos Tribunais Penais da Ex-Jugoslávia e Ruanda, do Tribunal Penal Internacional e o processo Pinochet (ver Informação Complementar) deixam adivinhar que será cada vez mais improvável que os mais graves crimes internacionais permaneçam impunes.

O Tribunal Penal Internacional desempenhará um papel importante na repressão destes crimes, se para tal houver vontade política. Mas esta instituição permanente é meramente complementar das jurisdições criminais nacionais, que continuarão a possuir competências importantes na matéria. Daí a necessidade de harmonizar e melhorar a legislação penal interna, de modo a reflectir as preocupações do direito internacional, e de garantir procedimentos de extradição, tendo o nosso país ainda um longo caminho a percorrer nesta matéria.

Por outro lado, a verdade é que para além dos tribunais nacionais mais nenhum tribunal será competente para julgar certos crimes, sobretudo os ocorridos num passado recente. Pondo de lado a hipótese da constituição de um tribunal internacional para o efeito – em alguns casos poderia ser ponderado no contexto da resolução global do problema, noutros seria já demasiado tarde —, nem o Tribunal Penal Internacional terá jurisdição pois a sua competência só abrange crimes cometidos após a entrada em vigor do seu Estatuto ou, em princípio, depois da adesão do Estado onde o crime foi cometido. Não será por isso possível recorrer a este Tribunal permanente para trazer justiça aos crimes cometidos durante os horríveis conflitos ocorridos na segunda metade deste século, cujos autores permanecem impunes: Vietname, Camboja, Iraque/Irão, Iraque/Kuwait, Timor-Leste, Afeganistão, Angola, Moçambique, Burundi, Zaire, El Salvador, Guatemala, etc. E evidente que seria preferível confiar a responsabilidade de julgar estes crimes a jurisdições internacionais. Mas não sendo tal possível, a solução nacional é preferível à impunidade.

 

Informação Complementar

O caso Pinochet

No dia 25 de Novembro de 1998 assistiu-se a uma decisão histórica na Câmara dos Lordes britânica, embora esta decisão corresse o risco de ser anulada. Cinco juízes decidiram, por uma maioria de 3 contra 2, que o general Augusto Pinochet não tinha imunidade de jurisdição nos tribunais ingleses e que poderia prosseguir o processo de extradição iniciado por um pedido de Espanha, onde Pinochet é acusado de estar envolvido na morte e desaparecimento de mais de três mil pessoas.

A opinião maioritária considerou que Pinochet não tinha imunidade de jurisdição nos tribunais ingleses em razão do seu estatuto de ex-Chefe de Estado. Estes juízes concluíram que tanto a tortura como a tomada de reféns são consideradas ilícitas pelo direito internacional, sejam praticadas por Chefes de Estado ou qualquer outra pessoa, e que estes actos eram ilícitos mesmo antes de 1973, data em que Pinochet chegou ao poder. Como disse Lord Nicholls, a partir do julgamento do Tribunal de Nuremberga, nenhum Chefe de Estado poderia ter qualquer dúvida sobre a sua potencial responsabilidade individual se participasse em actos considerados pelo direito internacional como crimes contra a humanidade.

Nem a decisão dos Lordes, nem a autorização do processo de extradição concedida corajosamente pelo Home Secretary, Jack Straw, na véspera do 50.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, constituem garantia de que Pinochet seja de facto extraditado e julgado em Espanha, ou em qualquer um dos outros países que subsequentemente pediram a sua extradição. Depois do processo Pinochet, uma coisa é no entanto certa. Ficou mais claro para o mundo, que a comunidade internacional está cada vez mais disposta a não deixar impunes as mais graves infracções cometidas contra o direito internacional.

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* Catarina Albuquerque

Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestre em Relações Internacionais/Direito pelo Institut Universitaire de Hautes Études Internationales, Génève. Técnica do Gabinete de Documentação e Direito Comparado. Docente na UAL.

* Patrícia Galvão Teles

Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestre e Doutoranda em Relações Internacionais/Direito pelo Institut Universitaire de Hautes Études Internationales, Génève.

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