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Ambiente e comércio internacional: uma relação difícil

Vítor Martins *

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Entre o Relatório Brundtland publicado em 1988 e a Conferência do Rio assistiu-se, à escala mundial, a uma mobilização, sem precedentes, nas relações internacionais, animada, sobretudo, por considerações de ordem ambiental e que culminaram, em Junho de 1992, com a aprovação, na Conferência sobre o Ambiente e o Desenvolvimento, de um conjunto de documentos com implicações directas no domínio ambiental e com impactes significativos nas esferas das relações internacionais, em especial nos domínios comercial e do direito internacional.

Esta vaga de entusiasmo, ampliada por um vento mediático sem precedentes, criou, durante um certo período, a ilusão de que a comunidade internacional tinha, finalmente, assumido as suas responsabilidades e que o conceito de desenvolvimento sustentável – popularizado em inúmeros textos internacionais – iria servir de quadro estratégico, não só no plano do desenvolvimento interno dos países, mas também como uma agenda para as relações inter-estados. Aconteceu, porém, que a vaga foi diminuindo mais rapidamente do que se havia formado, deixando, no imediato, esperanças decepcionadas, projectos inacabados e reformas abortadas.

Todavia, nem tudo pôde ser esquecido e por várias razões: as convenções internacionais entretanto negociadas e assinadas criaram situações novas no plano das relações internacionais; alguns países, em particular os do Norte da Europa e a própria União Europeia, foram assumindo posições de liderança na defesa dos princípios do Rio, estabelecendo nesta área uma competição saudável com os Estados Unidos e o Japão.

Por fim, mas talvez a razão mais significativa, a degradação ambiental, o aumento dos riscos e indícios de irreversibilidades ambientais colocaram os Estados numa posição de terem de actuar em domínios tão diversos como a mudança climática, o controlo do comércio das substâncias químicas, a poluição transfronteiriça e a desertificação. Não só os acordos firmados no Rio, alguns com uma linguagem que se pensava futurista, se mostraram actuais, como ainda se tornou necessário aprofundar o consenso internacional para uma actuação mais programada e urgente. E o caso da negociação do Protocolo de Quioto sobre a redução das emissões dos gases com efeito de estufa, cuja aprovação teve lugar em Dezembro de 1997.

A proliferação de novas regras e a imposição de determinados comportamentos, associados aos novos instrumentos de direito internacional ambiental, estão a criar forçosamente novas oportunidades na afectação dos recursos, na deslocalização das actividades e na competitividade das empresas e chocar com a circulação de bens e com a sua valorização em termos de comércio internacional.

A questão que se coloca, num prazo muito curto, é de saber em que medida é possível assegurar a protecção do ambiente e ao mesmo tempo manter e reforçar um sistema de comércio internacional multilateral e aberto.

Foi, sobretudo, a partir de 1991, na sequência da decisão do GATT que declarou ilegal uma lei dos Estados Unidos sobre os métodos de pesca de atum que não respeitavam as regras de protecção aos golfinhos, que o diferendo entre ambiente e comércio adquiriu visibilidade pública e a necessidade de partir dos grandes princípios, em geral aceites por todos, para o campo da sua aplicação prática.

Deste ponto de vista, são relevantes os seguintes aspectos:

  • a consideração dos processos e métodos de produção e a sua incidência potencial no próprio produto e na protecção ambiental, tanto local como global,
  • a relevância de certas disposições dos acordos ambientais internacionais, susceptíveis de constituir excepções ao regime do comércio livre,
  • o problema da extracção e comercialização das matérias-primas e a sua dimensão para além da estrita valorização económica feita pelo mercado,
  • finalmente, o uso de normas ambientais estritas como forma de proteccionismo ou, ao contrário, a utilização de técnicas e processos poluentes nos processos produtivos como forma de originar dumping potencial.

As medidas relacionadas com os processos e os métodos de produção constituem a questão fundamental da ligação comércio e ambiente. No essencial, trata-se de responder a uma questão muito simples: há diferença entre um produto confeccionado segundo práticas ambientais correctas e um produto produzido com impactes negativos sobre o ambiente? Por outras palavras, e tomando o diferendo do atum como paradigma: o atum pescado com artes que provocam a morte de golfinhos será um produto comercialmente diferente do atum pescado com artes ambientalmente correctas?

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A posição da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre esta questão não é definitiva, compreendendo-se que associar ao produto o impacte do seu ciclo de produção equivaleria a criar um conjunto de produtos diferentes com todas as dificuldades que isso iria exigir em termos de definição de métodos e de técnicas de produção normalizados. Apesar das dificuldades, este é o problema fundamental a resolver e equivalente às duas regras básicas do actual sistema de comércio livre: a cláusula da nação mais favorecida e o tratamento nacional, dependendo ambos do mesmo conceito: os países devem atribuir o mesmo tratamento aos produtos" semelhantes", provenientes dos países da OMC, tanto nas fronteiras como no mercado nacional.

Sem a clarificação do problema do conteúdo ambiental dos bens – dois produtos serão " semelhantes" se as condições ambientais da sua produção o forem - a integração do ambiente no comércio será sempre inconsequente.

O uso de medidas comerciais implícitas ou explícitas em acordos ambientais internacionais tem vindo a ser prosseguido, embora em escala ainda reduzida. A progressiva diminuição e mesmo a proibição do comércio de certas substâncias que põem em perigo a camada de ozono estão definidas no Protocolo de Montreal e têm vindo a ser objecto de controlo por parte de órgãos do Protocolo. A Convenção sobre a Protecção de Espécies de Fauna e de Flora em perigo de extinção (CITES) contém disposições proibitivas ou restritivas sobre o comércio internacional, bem como a Convenção de Basileia sobre movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos. Nestes acordos é bem visível a característica ambiental dos bens como motivo de excepção à liberdade de comércio.

Os grandes problemas ambientais actuais (aquecimento global, perda de biodiversidade, poluição tóxica e extinção de espécies animais e vegetais) estão ligados à extracção de matérias-primas e aos processos de transformação que sofrem até ao estado de produtos finais. A aplicação de regras ambientais básicas na extracção destas matérias-primas pode provocar uma alteração significativa da concorrência e dos padrões do comércio internacional a menos que as políticas comerciais permitam beneficiar os que efectivamente aplicam essas regras.

Este assunto é importante para os países em vias de desenvolvimento na medida em que, por razões históricas, são os grandes produtores de matérias-primas e, por isso, a introdução de regras ambientais, neste mercado, pode vir a prejudicá-los seriamente. Repare-se na posição do Brasil e da Indonésia, que é de extrema precaução, em questões como a possibilidade da negociação de uma Convenção internacional sobre as florestas.

A solução do problema das matérias-primas passa pela introdução de regras de mercado que não prejudiquem os produtores e que sejam impostas a todos os participantes ao longo da cadeia que leva da extracção ao mercado do produto final. Só desta forma será possível evitar que a apropriação da renda disponível – diferença entre o custo de produção e o preço de mercado – não seja feita em detrimento dos países produtores, na maioria dos casos, países em vias de desenvolvimento.

O argumento da protecção do ambiente pode e tem sido utilizado, quer como instrumento de posições proteccionistas, quer como factor de dumping ambiental. O uso de sistemas de rótulo ecológico e de embalagem ecológica não constitui, em si, uma distorção às regras da concorrência e do comércio livre. A questão pode colocar-se no momento em que se associam a estas características do produto processos ou métodos de produção ou, ainda, obrigações de gestão do ciclo do produto, situações que, como acima se referiu, não estão ainda sancionadas pela Organização Mundial do Comércio. Esta prática é característica de países industrializados, que a usam como uma forma disfarçada de proteccionismo.

Por outro lado, surgem situações decorrentes da não-harmonização de regras de protecção ambiental a nível mundial. Desta forma, a não-internalização de custos de protecção ambiental em muitos países, particularmente países em processo de industrialização, proporciona às empresas uma economia de custos de produção que não pode ser imputada à eficiência dos processos de produção, provocando uma vantagem competitiva em relação a países onde o princípio do poluidor pagador ou a regulamentação ambiental constituem enquadramento obrigatório para os agentes económicos.

Para além do fenómeno de dumping ambiental de âmbito puramente comercial, existe um outro aspecto de importância significativa, relacionado com a afectação dos recursos, em particular com a migração do investimento estrangeiro e de certas actividades produtivas poluentes para países com baixos níveis de protecção ambiental. A não-integração de restrições ambientais no Acordo Multilateral de Investimentos, negociado no quadro da OCDE, levou ao seu adiamento, devido à oposição generalizada de alguns países e também de organizações ambientalistas.

Nos últimos dez anos, a aceleração dos fenómenos de globalização dos mercados desenvolveu laços comerciais e económicos entre os países a um nível nunca antes atingido. A protecção do ambiente vem, neste contexto, introduzir uma dimensão que é, também, global mas que não pode ser gerida de forma idêntica às relações económicas e comerciais, isto é, de maneira descentralizada pelo mercado. À semelhança do que acontece com as externalidades localizadas, existe uma falha de mercado no tratamento das questões ambientais globais, assim:

• a estabilização do clima não é susceptível de ser atingida, de forma espontânea, pelo mecanismo de compra e venda de direitos de poluição;

• a gestão dos recursos naturais mundiais, tais como as pescas, as florestas, a água doce, os oceanos e a biodiversidade, não pode ser orientada por critérios exclusivamente de mercado;

• a internalização dos riscos ambientais e tecnológicos de dimensão global não se depara com a existência de mercados adequados para tratar os níveis de incerteza e risco previsíveis.

Deste modo, e para além da simples integração ambiente e comércio no domínio dos produtos convencionais, existe toda uma gama de problemas cuja resolução passa por uma reformulação profunda das relações comerciais internacionais que ultrapasse os princípios clássicos até agora consagrados: o princípio do poluidor pagador, a harmonização dos standards ambientais e o tratamento não-discriminatório.

As questões globais acima ventiladas não podem ser resolvidas no quadro da Organização Mundial do Comércio, uma vez que, mesmo no seu quadro mais convencional, não foi ainda possível criar um conjunto de regras que responda às questões mais prementes, como o problema dos processos e dos métodos de produção.

O debate sobre a compatibilização do comércio internacional com a protecção ambiental tem de ser colocado, prioritariamente, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, o que pressupõe um envolvimento directo e activo de todos os Estados na elaboração de procedimentos ligados à formação de regras de boas práticas ambientais num quadro mundial.

A negociação de acordos ambientais com metas programadas, como parece ser o objectivo de Quioto, deve resultar na criação de estruturas internacionais adequadas, porque não há protecção ambiental sem estruturas que enformem instituições com credibilidade e vontade política.

Só no quadro destas instituições é possível que os acordos ambientais internacionais, já negociados ou a negociar, prevaleçam em termos de direito internacional sobre as regras do comércio livre e sobre os acordos internacionais de investimento.

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* Vítor Martins

Professor Catedrático do ISEG.

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