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O contexto internacional da crise timorense

Carlos Gaspar *

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O fio condutor da crise timorense, na transição entre a ocupação indonésia e a administração internacional, foi a estratégia portuguesa que defendeu, ao lado da Igreja Católica e das forças políticas da resistência, o exercício livre e democrático do direito de autodeterminação. A continuidade dessa linha garantiu a sobrevivência do estatuto específico da questão timorense e determinou o sentido da transição. Porém, a chave da estratégia portuguesa estava, desde a primeira hora, nas mãos da Indonésia. O sucesso possível dependia da mudança indonésia e exigiu também a mudança das políticas da Austrália e dos Estados Unidos.

 

Indonésia: as virtudes do caos

O princípio da crise timorense corresponde ao fim do regime autoritário indonésio. Em Maio de 1998, Suharto retirou-se do poder e o seu lugar foi ocupado pelo presidente Habibie, que iniciou um processo de transição para a democracia.

A resolução do problema de Timor-Leste era parte integrante da estratégia de transição, pois tornara-se uma "pedra no sapato" da Indonésia, prejudicial para a sua posição internacional. Além disso, constituía um péssimo exemplo para os separatismos nas periferias ocidentais e orientais do Estado arquipelágico. Os riscos de balcanização só se podiam acentuar com a crise económica e política que caracterizava o processo de transição. A mudança de regime representava uma boa oportunidade para resolver o caso timorense. Em Junho, Habibie declarou estar preparado para conceder a Timor-Leste um "estatuto especial" na Indonésia, um modelo de autonomia no limite da independência, recusada por ser tida como inviável a sobrevivência separada de Timor-Leste, "cercado pelas 17 mil ilhas da Indonésia, mesmo no meio do arquipélago". Em Agosto, essa posição foi apresentada nas conversações tripartidas entre Portugal e a Indonésia, sob a égide do Secretário-Geral das Nações Unidas.

Portugal e a resistência timorense aceitaram trabalhar a fórmula do estatuto especial, na condição de um acordo sobre a autonomia não prejudicar o exercício do direito de autodeterminação num momento posterior. Nesse quadro, a Indonésia negociou uma proposta de autonomia elaborada pelas Nações Unidas que se configurava como uma etapa de transição para a independência, sem, todavia, conseguir impor o estatuto especial como a "solução definitiva" da questão timorense.

Nesse contexto, Habibie, decidido a resolver o problema antes da eleição presidencial indonésia, alterou a sua posição e anunciou, em Janeiro de 1999, estar disposto a admitir uma consulta sobre a proposta de autonomia, cuja rejeição significaria a separação de Timor-Leste. Essa consulta teria de se realizar antes do fim de Agosto, data prevista da primeira reunião da Assembleia Popular [MPR] depois das eleições gerais de Junho, à qual seria apresentado o resultado da consulta aos timorenses, uma vez que só essa instituição tinha competência para revogar o decreto de anexação.

O Presidente indonésio tinha "passado o Rubicão". A viragem era radical, e ainda mais quando, em Março, desistiu da sua oposição à realização de um referendo e cedeu à insistência portuguesa para que a consulta fosse livre, democrática e organizada pelas Nações Unidas, reservando para si apenas a responsabilidade pela segurança no território, como ficou estabelecido no acordo de Nova Iorque de 5 de Maio. A decisão presidencial revelou divisões internas profundas e comportava riscos evidentes, tal como a estratégia anterior, que criava o precedente de uma autonomia alargada na ordem constitucional indonésia. Tinha, em todo o caso, o mérito de resolver a questão dentro do período de transição, e acentuava a distinção entre o caso de Timor-Leste e os separatismos sem estatuto internacional reconhecido, para os quais a fórmula timorense não servia de precedente. Faltava executar essa estratégia. O caos da transição, que tornara possível o acordo, podia impedir o seu cumprimento, se o processo da democratização fosse interrompido. A contenção desses riscos dependia da pressão internacional e, sobretudo, da posição dos Estados Unidos e da Austrália, as duas potências relevantes num quadro regional alinhado com a Indonésia.

 

Austrália: os limites do seguidismo

A posição australiana perante a transição indonésia e a questão timorense era particularmente difícil. A segurança da Austrália assentava no seu relativo isolamento, impossível de manter quer num cenário de expansão indonésia, quer num cenário da balcanização do Estado arquipelágico, com a interferência de potências externas na redistribuição do poder no espaço crucial ocupado pela Indonésia.

Esses dois pesadelos estratégicos projectavam-se na questão de Timor-Leste. A Austrália fora a única democracia que reconhecera, sem reservas, a anexação e, perante a mudança indonésia, a Austrália foi forçada a reagir, pois corria o risco de ficar isolada na defesa dessa posição.

A diplomacia australiana começou por manter as suas distâncias e limitou-se a apoiar as posições indonésias. Porém, o primeiro ministro, John Howard, quis antecipar-se e, no Natal, escreveu uma carta ao presidente Habibie para lhe propor uma consulta, a prazo, sobre a autonomia, seguindo o modelo dos acordos sobre a Nova Caledónia. Em Janeiro de 1999, a mudança foi tornada pública: a Austrália declarava continuar a reconhecer a soberania da Indonésia em Timor-Leste até à realização, depois de um período de autonomia, de um acto de autodeterminação.

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Essa estratégia tornou-se supérflua com a decisão indonésia de submeter a proposta de autonomia a uma consulta prévia. A Austrália teve de seguir essa viragem e procurar conjugar as relações com o seu principal parceiro regional, reiterando a sua preferência pela continuidade de Timor-Leste como parte integrante da Indonésia, com uma crescente intervenção na crise timorense, considerando a consulta uma "oportunidade irrepetível" para resolver a questão de Timor-Leste. Nesse sentido, em Março foi anunciada a reorganização do dispositivo militar australiano, formando uma força de intervenção rápida para responder a contingências regionais, incluindo Timor-Leste, pronta em 30 de Junho. A Austrália estava preparada, se necessário, para uma intervenção militar, incluindo a evacuação da missão das Nações Unidas, bem como para comandar a força das Nações Unidas que substituiria os militares indonésios, no caso de os timorenses votarem pela independência. Entre uma coisa e a outra, a força australiana tinha uma qualidade dissuasora perante os efeitos possíveis do caos indonésio na crise timorense.

A posição da Austrália era crucial na dimensão de segurança, uma vez que se tratava da única potência com os meios de intervenção militar rápida. Porém, essa capacidade tinha limites, reiterados pêlos responsáveis, que só admitiam enviar forças australianas para Timor com um mandato internacional e o consentimento da Indonésia — a alternativa seria "uma guerra com a principal potência regional do Sudeste asiático".

O problema colocou-se quando, passado o dia 30 de Agosto de 1999, os militares indonésios deixaram campo livre para as forças para-militares e as milícias integracionistas iniciarem uma escalada de violência, em resposta ao voto pela independência. Portugal e a Austrália empenharam-se a fundo para assegurar o envio urgente de uma força internacional que pudesse restaurar a segurança. As suas pressões concentravam-se, naturalmente, nos Estados Unidos, o principal aliado de ambos.

 

Estados Unidos: o fardo da coerência

A questão de Timor-Leste tornou-se relevante para a política norte-americana sobretudo a partir do início da transição pós-Suharto. A sua importância decorria, por um lado, da necessidade de conter as tendências centrífugas que podiam pôr em causa a unidade da Indonésia e ameaçar a segurança das rotas marítimas entre o Indico e o Pacífico e, por outro lado, da prioridade atribuída à transição democrática na Indonésia — o maior país muçulmano e o quarto mais populoso do mundo.

A resolução da crise timorense era urgente, quer para separar um problema internacional dos separatismos internos no Estado arquipelágico, quer porque a democratização indonésia não ficaria completa antes de se ultrapassar a questão de Timor-Leste.

Nesse contexto, os Estados Unidos acompanharam, com todas as partes interessadas, incluindo a resistência timorense, o processo diplomático que levou ao acordo de 5 de Maio. Desde esse momento, a diplomacia norte-americana exerceu uma pressão pública sobre as autoridades indonésias, sublinhando a sua responsabilidade exclusiva pela segurança em Timor-Leste e pela realização da consulta, cujo objectivo era, no essencial, fortalecer a posição interna do presidente Habibie e da hierarquia militar, ameaçada pela estratégia de tensão desencadeada pêlos seus adversários no território.

Paralelamente, reforçaram a credibilidade dos planos de contingência australianos, designadamente com a marcação para Setembro de um exercício militar conjunto nas proximidades da ilha — cujo nome de código, Crocodile'99, não era excessivamente subtil — que poderia transformar-se numa força internacional de intervenção, se os seus aliados indonésios perdessem o controlo da situação em Timor-Leste. Naturalmente, o propósito dessa política era conter ou impedir esse cenário e, nessa medida, falhou quando, no dia seguinte à consulta, a explosão de violência veio pôr à prova a determinação dos Estados Unidos. A primeira resposta foi demasiado crua. Enquanto o Secretário-Geral das Nações Unidas fazia um ultimatum a Habibie, dando-lhe 48 horas para restaurar a ordem no território, um responsável norte-americano declarava: "Because we bombed in Kosovo doesn't mean we should bomb Dili". Essa declaração respondia ao primeiro ministro António Guterres, que tinha legitimidade para invocar a participação militar de Portugal na crise do Kosovo para apelar à intervenção do seu aliado em Timor-Leste. A segunda resposta foi dada pelo presidente Clinton, que se pronunciou no sentido da coerência: se a Indonésia não era capaz de pôr fim à violência, tinha de convidar a comunidade internacional para a ajudar a restaurar a segurança. Habibie fez isso mesmo e, a 15 de Setembro de 1999, o Conselho de Segurança votou, por unanimidade, a constituição de uma força internacional, sob comando australiano, que chegou a Dili cinco dias mais tarde.

No fim, a Indonésia denunciou o seu acordo de defesa com a Austrália, Habibie perdeu as eleições presidenciais e os movimentos separatistas persistiram no Aceh e em Irian Jaya, enquanto a transição indonésia continuava o seu caminho. A Austrália consolidou a aliança com os Estados Unidos e demonstrou a sua capacidade de intervenção em Timor-Leste, à custa de uma crise nas relações com a Indonésia. Os Estados Unidos, embora relutantemente, impuseram os princípios do direito internacional numa crise asiática e consolidaram a sua proeminência internacional, sem prejudicar as relações com os seus aliados regionais. Portugal e os timorenses conseguiram realizar a sua estratégia convergente para garantir o exercício livre e democrático do direito de autodeterminação e o respeito pelos seus resultados: com a retirada brutal dos militares indonésios e a instalação da administração das Nações Unidas, a crise timorense terminou e deu início a uma transição pacífica para a independência.

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* Carlos Gaspar

Professor Associado do Departamento de Relações Internacionais da UniversidadeLusíada.

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