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Repensar a guerra: o fim do monopólio clausewitziano

Pedro Pezarat Correia *

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“A globalização, seja ou não essa a correcta designação do sistema de relaçõesinternacionais pós-Guerra Fria, tem-se também caracterizado por profundas alteraçõesna interpretação e gestão da guerra. Tudo é posto em causa, nos campos conceptual,estrutural, organizacional ou funcional. Obviamente, tal tem a ver com a passagemdo sistema bipolar a um outro que é, sem dúvida, unipolar. Porque os EUA, únicasuperpotência sobrevivente do anterior sistema, vêm acentuando a superioridaderelativamente às outras potências, tornando-se numa hiperpotência, situação quea generalidade dos seus teóricos considera favorável, justa e que deve ser preservada.A nova conceptualização da guerra enquadra-se, justamente, no objectivo dessapreservação, que não passará obrigatoriamente pelo recurso à violência, mas àqual recorrerá se necessário. É o uso criterioso da coacção nos vários patamares,suscitação, ameaça, agressão ou, na sua própria terminologia, softpower ou hardpower, conforme melhor serve a pax americana.

Há quem veja nesta evolução uma revolução de fundo e por isso lhe chamam Revolution in military affairs (RMA), porque põe em causa os fundamentos clausewitzianos da guerra, que dominaram o pensamento militar nos séculos XIX e XX. Clausewitz enunciou a filosofia política da guerra na base de que “a guerra é um acto de violência cuja finalidade é forçar o adversário a executar a nossa vontade», mas uma violência que deve ser interpretada como «um instrumento racional da política nacional”. Nesta filosofia baseia a sua definição trinitária: “A guerra (…) é (…) uma verdadeira trindade composta pela violência original do seu elemento (…) pelo jogo da probabilidade e do acaso (…) e pela natureza subordinada de um instrumento político (…). Esta definição da guerra apresenta-se sob a forma de um sistema indissolúvel, cujas componentes são a violência do povo, o cálculo estratégico do chefe militar e a inteligência do dirigente político”.

É neste edifício conceptual clausewitziano, ao qual podemos acrescentar a sua célebre ‘fórmula’ “A guerra é a continuação da política por outros meios”, que podemos encontrar, explícitos ou implícitos, os paradigmas essenciais que o levam a distinguir uma situação de guerra, que se encontra nas respostas às perguntas clássicas: o quê, quem, como, porquê e para quê. Assim, para Clausewitz, só se está perante uma situação de guerra quando um conflito violento é um fenómeno social e racional (o quê), que põe em confronto Estados (quem), através das suas forças armadas (como), por motivos de interesse nacional (porquê) e para servir objectivos políticos (para quê).

A Guerra Fria já introduzira inovações na polemologia, criando uma nova tipologia da guerra. Com o aparecimento da arma nuclear surgem os conceitos de não-guerra e de arma de não-emprego. A guerra subversiva conferira estatuto de beligerante a forças armadas irregulares accionadas por entidades políticas não estatais. Os sectores militares e políticos mais tradicionalistas resistiram ao reconhecimento destes novos tipos de guerra: a guerra nuclear era apenas um patamar mais elevado da guerra clássica com recurso a armas mais potentes, e a guerra subversiva, meras acções terroristas a resolver com acções de polícia. Acabaram por se impor como tipos de guerra, dando lugar a vasta proliferação de doutrinas, conceitos estratégicos, regulamentos tácticos, e ao aparecimento de novos equipamentos, estruturas organizacionais e relações civis-militares. Mas, no fundo, ainda se inseriam no edifício conceptual clausewitziano e eram tipos de guerra complementares da guerra clássica, sem porem em causa os fundamentos desta como instrumento do Estado moderno. Continuava a ser para esta que se concebiam, preparavam, organizavam e equipavam as instituições militares.

É a RMA, ainda em plena elaboração, que está a pôr em causa tudo isto. Já nada impede que continue a falar-se de guerra, mesmo quando estão em causa os paradigmas de Clausewitz, isto é, quando o conflito não está confinado ao Estado-nação, a valores e interesses nacionais, a forças armadas nacionais, ou quando estão em causa os conceitos de agressor e agredido, o estatuto de combatente, as ameaças a enfrentar.

Numerosos autores consideram que a guerra total (major wars), se vem tornando obsoleta, começando mesmo a surgir o termo “desbelicização”, para designar esta tendência. Em seu lugar estariam surgindo “novas guerras”, às quais se vem aplicando um vasto leque terminológico, mas no qual se vem impondo a designação de “conflitos de baixa intensidade”, assim chamados porque contemplam opções restritivas, geográficas, de objectivos, de meios e de tecnologias. Mas estas guerras ainda envolvem as grandes potências que lideram o sistema internacional, ou coligações em que as grandes potências participem e por isso a designação é ambígua, pois estas só aceitam restrições que não colidam com a necessidade. Para quem dispõe de toda a liberdade de acção, a amplitude territorial, a selecção dos objectivos militares e a escolha quantitativa e qualitativa dos meios, será sempre a necessária e suficiente para atingir os objectivos políticos que determinaram a guerra.

Daí que, no âmbito das novas guerras, seja possível detectar um outro tipo de guerras, travadas na periferia do sistema e que não afectam interesses vitais das grandes potências nem visam objectivos eminentemente políticos. Chamadas pequenas guerras, guerras moleculares ou guerras de terceiro tipo, assiste-se passivamente ao seu desencadeamento e prolongamento, apesar de, em geral, ocasionarem muito mais destruição material e muito maior sofrimento humano. Está assim posto em causa o primeiro dos paradigmas de Clausewitz, “o quê” é a guerra.

Estas novas guerras já não envolvem apenas entidades políticas e têm como protagonistas novos actores, para-estatais, sub-estatais ou marginais, ou outros, que foram sempre agentes da violência, mas só agora vão ganhando estatuto de partes na guerra, como são confissões religiosas e agências nacionais ou transnacionais do crime organizado. Deste elenco de novos actores decorre uma nova percepção da ameaça e uma nova identificação do inimigo para as potências dominantes.

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Já não é apenas aquele contra quem se combate, ou contra quem é provável que se venha a combater, mas também tudo aquilo ou aquele que, pela sua natureza, comportamento ou objectivos pode, ainda que só eventualmente, perturbar ou pôr em risco o sistema internacional e os interesses vitais das potências hegemónicas. De qualquer forma é o fim do conceito weberiano do Estado como monopólio da violência legítima e organizada e, assim, a queda do segundo paradigma, “quem” faz a guerra.

A execução da guerra deixa de ser exclusivo de forças armadas institucionais, ou forças irregulares de expressão nacional, uns e outros instrumentos da política. Proliferam grupos terroristas profissionais e bandos armados marginais de senhores da guerra. Vai-se também legitimando o recurso a empresas privadas de serviços militares, a que se vem chamando de novo mercenariato. Estes novos agentes, utilizando as novas tecnologias, arrastam novos equipamentos, novas estruturas, novos métodos, novas doutrinas, novas atitudes. A intervenção militar das grandes potências é hoje dominada por princípios tornados obcecantes de rapidez, superioridade, precisão e segurança, o que quer dizer que só se envolvem numa guerra se estiverem certos de a resolver rapidamente, de disporem de uma esmagadora superioridade de meios e de correrem o mínimo de riscos. O princípio da segurança assim interpretado traduz-se na preocupação de não sofrer baixas nas unidades combatentes, chamado princípio das baixas-zero e que tem efeitos perversos, pois significa aumento de baixas nos não-combatentes e destruições de alvos não-militares, os eufemisticamente chamados danos colaterais. É óbvia a ruptura com o terceiro paradigma, “como” se faz a guerra.

Muitas das novas guerras não são já motivadas por interesses ou valores nacionais nem visam já objectivos políticos. Raramente estão em causa questões relacionadas com o exercício da soberania, com definição de fronteiras, com disputa de território. Predominam causas identitárias, interesses materiais de senhores da guerra, visando objectivos relacionados com o controlo ilícito de recursos e a liberdade para actividades criminosas como o narcotráfico, o contrabando, a emigração clandestina, o tráfico de armamento. São aliás formas diversas de economias criminosas provenientes destes recursos, para além de ajudas externas de Estados que os apoiam e de grupos da diáspora, que alimentam estas máquinas militares. É um profundo golpe nos últimos paradigmas, “porquê” e “para quê” se faz a guerra, que até certo ponto se confundem.

Em síntese, a lógica da globalização introduziu novos parâmetros de interpretação da polemologia, que reflectem a natureza unipolar do sistema internacional. Surgem assim novas teorizações sobre a guerra, configurando a RMA que se apresenta como uma reflexão que tem um sujeito e um objecto. Insere-se numa perspectiva do bloco beneficiário da globalização, ocidental, cristão, liberal, desenvolvido, liderado pelos EUA, e a sua preocupação com os conflitos violentos que poderá ter de enfrentar na periferia. No fundo a RMA é a busca de um quadro conceptual para uma nova realidade, a da existência, pela primeira vez na era moderna, de uma esmagadora superioridade geoestratégica de uma hiperpotência, em relação a todos os restantes actores da cena mundial.

Mas as novas guerras, no âmbito da RMA, com as diferentes terminologias, conduzidas por novas entidades, gerando novas doutrinas e modalidades de acção, enfrentando novas ameaças, motivadas por causas diferentes e visando novos objectivos, mais do que substituir-se às guerras clássicas vieram somar-se a estas. Persistem guerras de tipo clássico e por vezes estas convivem com guerras de novo tipo. A guerra, não deixando de ser um instrumento da política já não é, apenas, instrumento da política. Clausewitz não deixou de ter actualidade. O que perdeu foi a exclusividade como influência determinante no pensamento militar.

 

Informação complementar

Novas guerras

“(…) há qualquer coisa de claramente revolucionário em relação às recentes transformações nas ideias, instrumentos e instituições da guerra (…)” (Andrew Latham in “Re-imagining warfare: the revolution in military affairs - Contemporary Security and Strategy”).

“Uma revolução militar reveste-se (…) de uma dimensão quádrupla, evolução tecnológica (…), novos sistemas, inovação operacional e adaptação de estruturas” (Anne-Marie Le Gloannec in “Y a-t-il une pensée stratégique dans l’aprés-guerre froide? – Les Nouvelles Relations Internationales. Pratiques et Théories”).

“(…) a transformação dos conflitos é resultante do esgotamento do modelo westfaliano: (…) sob o ângulo prático com a crescente indistinção das fronteiras (…), sob o ângulo simbólico com o fim da pertinência da diferença entre o Estado e os outros actores” (Didier Bigo in “Nouveaux regards sur les conflits”, Idem).

“(…) um novo tipo de violência organizada se desenvolveu, especialmente em África e na Europa de Leste, que é uma característica da chamada era globalizada. Chamo a este tipo de violência nova guerra” (Mary Kaldor in “New & old wars – organized violence in a global era”).

“Cento e sessenta conflitos armados ensanguentaram o planeta desde 1945 (…), três quartos destes conflitos foram qualificados de ‘baixa intensidade’; (…) em primeiro lugar, eles tendem a proliferar nas regiões ‘menos desenvolvidas’ do planeta (…), em segundo lugar, muito raramente opõem tropas regulares (…), em terceiro lugar, os armamentos colectivos de alta tecnologia (…) não são aí privilegiados. (…) os conflitos de baixa intensidade têm-se também revelado mais mortíferos que qualquer outra forma de guerra declarada depois de 1945 (…). As vítimas encontram-se por todo o lado, na maioria, nas aldeias e não pertencendo a nenhuma organização reconhecida (…)” (Martin Creveld in “La transformation de la guerre”).

 

Inimigos e ameaças

“(…) as colectividades e os indivíduos que recorrem à violência para atingir objectivos iníquos e ilícitos (…) são Estados governados por bandos de criminosos, grupos étnicos, teocráticos, linguísticos ou ideológicos que pregam o ódio e a dominação, ou organizações criminosas que sabotaram as bases de numerosas nações, dando origem a uma praga poderosa, o meio da droga, do branqueamento do dinheiro, do tráfico de armas e da violência” (Voorhoeve, ministro da Defesa dos Países Baixos, em relatório à Assembleia da UEO de 1994).

“O termo ameaça desaparece das preocupações principais da OTAN (…) substituído pelo de “risco”, correspondente aos potenciais conflitos étnicos, às pressões económicas e sociais, às tensões no flanco sul da Aliança” (Catherine Kamisky et Simon Kruk in “Le nouvel ordre international”).

“Na região mediterrânica, as ameaças à paz são consequência da agitação étnica nos Balcãs, da expansão do extremismo islâmico (…), das disputas sobre a posse e o uso do petróleo e da água (…), da emergência de Estados celerados (rogue states), da propagação das ADM1, do impasse no processo de paz em Israel e da pobreza persistente no norte de África” (Todd Sandler in “Os desafios à NATO na região do Mediterrâneo e em outras áreas”).

“Quando os não ocidentais vêem o mundo como um todo, vêem-no como uma ameaça» (Samuel P. Huntington, “O choque das civilizações”).

“(…) foi-lhes muito difícil identificar um inimigo – ou um grupo de inimigos (...) Para ultrapassar esta dificuldade, os estrategas americanos inventaram então uma nova categoria de adversários potenciais: as potências ascendentes do terceiro mundo equipadas com forças militares importantes e com armas de destruição massiva, qualificadas de “Estados fora-da-lei” (...)” (Michael Klare in “Parler de paix en vendant des armes”).

“(…) o critério é muito claro: um rogue state não é apenas um Estado criminoso, mas um que desafia as ordens dos todo-poderosos – que estão, obviamente, isentos» Noam Chomsky in “Rogue states”.

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* Pedro Pezarat Correia

Oficial General Reformado. Professor Convidado do Curso de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

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Bibliografia

Bigo, DidierNouveaux regards sur les conflits, Les nouvelles relations internationales. Pratiques et théories, Presses de Sciences Pº, Paris, 1998.

Chomsky, Noam – “Rogue states”, “Z Magazine”, Abr 1998.

Clausevitz, Carl V. – “Da guerra”, Perspectivas e Realidades, Lisboa, 1976.

Creveld, Martin – “La transformation de la guerre”, Éditions du Rocher, 1998.

Engelhard, Philippe – “La Troisième Guerre Mondiale est commencée”, Arleá, Paris, 1999.

Freedman, Lawrence – “The changing forms of military conflict”, “Survival” vol. 40 n.º 4, International Institute for Strategic Studies, London, Winter 1998-99.

Gloannec, Anne-Marie le – “Y a-t-il une pensée stratégique dans l’après-guerre froide?”, “Les nouvelles relations internationales. Pratiques et théories”, Presses de Sciences Pº, Paris, 1998.

Huntington, Samuel P. –“O choque das civilizações e a mudança na Ordem Mundial”, Gradiva, 1999.

Kaldor, Mary – “New & old wars – organized violence in a global era”, Polity Press, Cambridge, 1999.

Kaminsky, Catherine et Kruk, Simon - “Le nouvel ordre international”, PUF, Paris, 1993.

Klare, Michael – “Parler de paix en vendant des armes – Le Golfe, frontière avancée de la sécurité américaine”, “Le Monde Diplomatique” Janvier 1995.

Latham, Andrew – “Re-imagining warfare: the ‘Revolution in Military Affairs”, “Contemporary security and strategy”, Macmillan Press, G.B., 1999

Mandelbaum, Michael – “Is major war obsolete?”, “Survival” vol. 40 n.º 4, International Institute for Strategic Studies, London, Winter 1998-1999.

Rapoport, Anatole – “Prefácio” a “Da guerra”, Perspectivas e Realidades, Lisboa, 1976.

Salamé, Ghassan – “Les guerres de l’après-guerre froide”, “Les nouvelles relations internationales. Pratiques et théories”, Presses de Sciences Pº, Paris, 1998.

Sandler, Todd – “Os desafios à NATO na região do Mediterrâneo e em outras áreas”, Nação e Defesa  n.º 90, IDN, Lisboa, Verão 99.

Snyder, Craig A. – “Contemporary security and strategy”, Macmillan Press, G.B., 1999.

Snyder, Craig A. and Malik, J. Mohan – “Developments in modern warfare”, “Contemporary security and strategy”, Macmillan Press, G.B., 1999.

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