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- JANUS 2002 -

Janus 2002



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Bin Laden, a “Al-Qaida” e o trilho saudita na nova “jihad” global

João Maria Mendes *

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A Arábia Saudita está (...) entre os regimes árabes, por vezes ditadurascorruptas, que fizeram um pacto com os fundamentalismos: permitem aos seus extremistasdomésticos que continuem a recolher ostensivamente fundos destinados à jihad armadae a todos os Osamas bin Ladens, e estes comprometem-se, em troca, anão atacar os respectivos regimes.” (Thomas L. Friedman, The New York Times,22.09.2001).

Os media ocidentais rivalizaram no retrato de Osama bin Laden, mentor, financiador e responsável dos atentados de 11 de Setembro — o homem que, à cabeça da al-Qaida, “declarara guerra” aos EUA quatro anos atrás. Ele terá gerido os ataques contra soldados americanos na Somália, os atentados contra o complexo militar dos EUA na Arábia Saudita, as embaixadas dos EUA no Quénia e na Tanzânia, e o USS Cole, em Aden. A pedido de países árabes “moderados” (Arábia Saudita, Egipto, Qatar, Oman) e da Ásia Central (sobretudo o Paquistão), os EUA apresentaram, à porta-fechada, “provas credíveis” que o ligavam, também, aos ataques de Setembro. Tony Blair apresentou a 4 de Outubro, na Câmara dos Comuns, um Livro Branco com a síntese dessas provas.

Perfis mediáticos ocidentais do personagem: milionário diabolizado que gasta infindáveis recursos a inventar novos atentados contra “a aliança de cruzados, sionistas e seus colaboradores”, apostador bem sucedido na guerra low tech contra a guerra high tech, ou “saudita fascinante”, como o Courrier International o apresentou. Para o extremismo pan-islâmico, ele é o Velho da Montanha, terror dos cruzados no séc. XI, que mandava os seus hashishim (assassinos) liquidar os inimigos da fé onde quer que estivessem: um herói lendário tornado real, um “sonho eficaz”. Aqui, interessa-nos sobretudo o modelo organizacional e de empresariado que ele montou para o novo patamar da jihad — a al-Qaida (a Base), que Bin Laden criou em 1989, é a única organização terrorista apta a montar atentados como os de 11 de Setembro. Patamar que requer a geração e circulação eficaz de financiamentos, a formação de fanáticos suicidas disciplinados, mas que depende do abrigo territorial oferecido, em nome do Islão, pelos despotismos teocráticos mais retrógrados do mundo contemporâneo.

O Livro Branco britânico descreve a cúpula da al-Qaida: abaixo do “emir” Bin Laden há a “Shura”, órgão composto por membros de outros grupos terroristas como o antigo líder da Jihad Islâmica egípcia Aiman al-Zawahri e lugares-tenentes como Abu Hafs Al-Masri. Depois seguem-se o núcleo das questões militares (dirigido por Mohamed Atef) e os dos media (que faz o possível para que a imagem do líder corresponda ponto por ponto à de Maomé), das finanças e das questões religiosas. Todos os membros da al-Qaida juram obediência a Bin Laden.

David Long, ex-Departamento de Estado, tem outra versão sobre o homem e a sua organização: “Ele é sobretudo um intermediário, como existem no Médio Oriente desde tempos imemoriais. Não dispõe de uma estrutura sofisticada como era a de Abu Nidal. Se amanhã o matarem, a sua organização desaparecerá, mas todas as redes se manterão a funcionar (...). Estamos diante de uma fraternidade informal, cujas partes dependem umas das outras (...). A al-Qaida é uma espécie de central a quem grupos terroristas pedem fundos, apoio logístico e/ou formação”. Os seus militantes movem-se da Argélia, Síria, Egipto, Arábia Saudita, Jordânia, Iémen e Emiratos Árabes Unidos até à Birmânia e Tailândia, Indonésia e Filipinas, passando pelo Sudão, Somália, Paquistão, Afeganistão, Índia, repúblicas islâmicas da antiga URSS e territórios como a Tchetchénia. Serão mais de 60, segundo a administração G. W. Bush, os Estados, incluindo os balcânicos, onde a al-Qaida mantém bases estáveis, sem contar com apoios nos países da UE de maior implantação muçulmana — Grã-Bretanha à cabeça — e nos EUA.

“Estado dentro do Estado”, os serviços secretos paquistaneses (Inter-Services Intelligence Agency, ISI) são os que mais sabem sobre a al-Qaida e os seus suportes afegãos: formaram e acompanharam os taliban na sua luta pelo poder. 

Ávidos de poder nos países árabes e na Ásia Central (a Arábia Saudita dispõe de 25% das reservas mundiais de petróleo e o Paquistão dispõe de armamento nuclear), os dirigentes da al-Qaida passaram a visar a restauração, em toda a zona, de um califado pré-medieval que poderia estender-se a um Paquistão e a um Iraque islamistas, e cujo programa “político” estaria próximo dos taliban e da sua versão da charia. É em consonância com tal programa que Bin Laden tem reclamado o título de emir.

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1979-1991: primeira jihad

Bin Laden (n. 1957) é um dos herdeiros do Saudi Binladin Group (SBG), empório familiar criado por seu pai (m. 1968). Os Bin Laden, wahabitas puritanos, são, na Arábia Saudita, um dos clãs financeiros mais importantes, próximos dos Saud e membros da elite. Em 1990, o SBG (http://www.saudi-binladin-group.com) valeria 36 mil milhões de dólares. Formou-se em engenharia em Jeddah (perto de Meca e Medina, cidades santas do Islão), no ano crucial de 1979 — ano da assinatura da paz entre o Egipto e Israel, do derrube do xá do Irão pela revolução islâmica e da invasão soviética do Afeganistão. Para os EUA., que mantinham, no Golfo, a “política dos dois pilares”, a queda de Teerão (pilar político) reforçou a importância de Riad (pilar financeiro): um novo fôlego do apoio americano ao reino dos Saud transformou o país em principal aliado estratégico dos EUA na região.

Entre 25.000 sauditas, Bin Laden é um dos poucos “príncipes” que, movido pelo pan-islamismo militante, parte, em 1979, para a jihad afegã. Turki bin Faiçal, irmão do rei e chefe dos serviços secretos sauditas (posto que só perdeu em Agosto de 2001), tê-lo-á apresentado, em Istambul, à CIA, que dali geria o apoio à resistência anti-soviética. Bin Laden passou os primeiros anos da guerra a recolher, nos países do Golfo, fundos para a jihad, a partir de Peshawar, no Paquistão. No seu país, o dinheiro vinha do governo, das mesquitas e da elite financeira e comercial. Diz Milt Bearden, chefe da CIA no Afeganistão durante a guerra anti-soviética: “Bin Ladens vindos para a jihad eram vários e foram importantes: conseguiam 20 ou 25 milhões de dólares/mês, o que fazia 300 milhões/ano”. Também comprou armas financiadas em partes iguais pelos EUA e os sauditas (1,2 mil milhões de dólares/ano), e distribuiu fundos às facções rivais da resistência afegã. Esteve, durante anos, próximo das redes, ligações e rotinas da CIA, enquanto privava com o ditador paquistanês Zia ul-Haq e seus serviços secretos (ISI), e se encontrava com al-Turabi, futuro líder espiritual do Sudão islamista. Mas nunca foi soldado: manejava armas como um aprendiz.

Com a retirada soviética em 1989, regressa por curtos períodos ao império familiar (mais de 60 empresas, muitas das quais sediadas no Ocidente). Mas, no seu país, crescem as oposições à família real e acentua-se o pendor repressivo do regime. Dois ulemas integristas, Sfar al-Hawli e Salman al-Awdah, acabam de criar o Movimento do Ressurgimento Islâmico; Bin Laden, próximo deles, envolve-se na luta contra o regime, mantendo a sua base no Afeganistão e residindo também em Peshawar. A invasão do Kuwait pelo Iraque (1990) extrema as contradições no reino saudita: as oposições defendem a criação de um exército muçulmano, para o qual Bin Laden oferece os seus afghanis; o rei Fahd prefere o auxílio americano. A instalação de tropas dos EUA em território saudita, durante a Guerra do Golfo, é vivida por ele, e por muitos sauditas e muçulmanos em geral, como traição, profanação dos lugares sagrados do Islão, interditos a não-crentes. Jura a perda do regime, que o expulsa do país; em 1991 exila-se no Sudão, onde ficará até 1996.

Desde que criou a al-Qaida em 1989, Bin Laden montou uma série de empresas destinadas a financiá-la: a holding Wadi al-Aqiq, a construtora Al-Hijra, a empresa agrícola Al Themar Al Mubaraka e sociedades de investimento — Laden International e Taba Investments. Já geria, no Afeganistão, uma rede de tráfico de droga que dirigirá a partir de Khartum, através dos seus afghanis e dos taliban nascentes. Dali gere também, via banco Ach-Shamal, a Wadi al-Aqiq (interesses na finança, na indústria automóvel, de máquinas-ferramentas, química, obras públicas), e uma nebulosa de empresas e ONG que injectam capitais no integrismo argelino, egípcio, sírio, asiático. Torna-se no “banqueiro da jihad”, apoiando desde a Al-Jihad e a Al Gama’at Islamiya egípcias até ao Movimento Islâmico do Uzbequistão. A partir de 1991, tenta adquirir armas químicas e nucleares destinadas a acções terroristas.

 

Sermão da Morte, Última Noite

Derrotado o Iraque, 10.000 soldados americanos permanecem na Arábia Saudita (onde hoje são 6.000) e no Kuwait, o que agrava o anti-americanismo, ao longo da década de 90, na região. Hoje, até o filho do ministro saudita do Petróleo, Hani Yamani, que escreveu “Se és muçulmano…”, faz campanha pela partida das forças dos EUA.

Os ulemas al-Hawli e al-Awdah são presos em 1994, mas um “Batalhão dos crentes” passa a ameaçar directamente o regime e os interesses ocidentais em todo o mundo. Na prisão, al-Awdah grava em cassete um “Sermão da Morte”, pedindo à elite intelectual saudita que assuma a jihad e o martírio contra os ocidentais e os Saud. A cassete circula nos meios islâmicos dos EUA (onde há 25 mil estudantes sauditas) e da Europa. Diz al-Awdah: “A oposição tem de ser conduzida por um grupo saído da elite e que esteja disposto a tudo sacrificar (...). A sua determinação tem de ser total: os seus golpes têm de ser estudados de modo a que os suportes dos seus alvos desabem. Um tal grupo não precisa de ser grande...”. O “Sermão da Morte”, a sua ideia de jihad e o manual “A última noite”, encontrado  pelo FBI na bagagem de vários dos 19 terroristas suicidas de 11 de Setembro, têm muito em comum. Sete destes foram identificados como sauditas, e outros cinco talvez o fossem também, por detrás dos seus papéis falsos. Parte deles viveram ou transitaram na Grã-Bretanha e Alemanha, na órbita do Comité de Defesa dos Direitos Legítimos (oposição saudita), que inclui  adeptos de al-Awdah. Em 1994, a Arábia Saudita retira a Bin Laden a nacionalidade e a família repudia-o. Para os Saud, ele tornou-se um desestabilizador excessivo, um renegado.

 

Os grandes párias árabes

A partir de 1995, a al-Qaida integra sobretudo militantes fugidos à repressão árabe: egípcios, sírios, sauditas, iemenitas, por vezes ligados aos serviços secretos iraquianos. Diz Karim-el-Gawhary (Público de 23/09/2001)”: (A al-Qaida) é uma rede complexa, não tanto de grupos (...), mas de indivíduos que desistiram de lutar contra os regimes dos seus países e que agora (...) se dedicam à luta contra os EUA. No círculo mais próximo de Bin Laden há egípcios como Ahmad Taha, ex-dirigente militar da Al-Gama’at, e Muhammad al-Istanbuli, irmão do assassino do antigo presidente Sadate (morto em 1981). O mais conhecido é Aiman al-Zawahri, ex-chefe da Al-Jihad (...), braço direito de Bin Laden e, se ele morrer, seu provável sucessor”. E kuwaitianos como Sulaiman abu Gaith, o pregador da segunda cassete vídeo, passada pela Al-Jazira a 9 de Outubro.

1996: o Sudão, pressionado pelos EUA, pede a Bin Laden que abandone o país. Com algumas centenas de homens, ele regressa ao Afeganistão. Dois a três mil dos seus fiéis dispersam-se pela Europa e outras áreas. Nesse ano, os taliban conquistam o poder. Bin Laden instala a família em Kandahar, sede principal do regime, e liga-se fortemente ao seu chefe espiritual, o “comandante dos crentes” Mohammad Omar, seu amigo desde a jihad anti-soviética. Taliban e Bin Laden passam a depender uns dos outros como duas faces da mesma moeda: “Osama não pode subsistir no Afeganistão sem os taliban, nem estes sem ele”, diz um antigo governante de Cabul. Ele fornece-lhes formação militar, armas, tropas e dinheiro contra a Aliança do Norte, e mantém representantes da al-Qaida no comando militar do regime. O regime hospeda a al-Qaida, que organiza e treina os seus mujaedines no país, e garante a segurança dos stocks de droga.

Até 1996, o alvo de Bin Laden eram os poderes árabes pró-americanos, os “governos não-islâmicos dos países muçulmanos”. Em Outubro desse ano faz uma primeira declaração de jihad apelando ao assassínio de americanos “para expulsar as tropas de Satã dos lugares santos do Islão”, reorientando o tiro directamente contra os EUA. Robert Fisk, jornalista do The Independent, visitou-o em 1997: Bin Laden confirmou-lhe essa reorientação: “A guerra contra a América é mais simples que a guerra contra a URSS: alguns dos nossos lutaram contra americanos na Somália e espantaram-se com a sua fraqueza moral. Com a ajuda de Deus tornaremos a América numa sombra do que é…”. Desde 11 de Setembro, discute-se que tipo de guerra é possível fazer a este “novo” inimigo. No plano simbólico, não pode haver alvos no Islão equivalentes às Twin Towers e ao Pentágono: o seu ataque provocaria o “confronto de civilizações” que a al-Qaida procura. Parte do devir da guerra contra a nova jihad depende da implausível possibilidade de o Islão maioritário a desautorizar, no terreno religioso, minando o seu apoio popular. Outra parte dessa guerra será a das sombras: secreta, suja e prolongada, porque depende de duplicidades, denúncias, traições e do que o dinheiro possa comprar. Bin Laden tem beneficiado da rede financeira global e de apoio popular crescente (e respectivas colheitas de donativos) na Indonésia, Malásia e Filipinas, embalado pela crise asiática de 1997: decomposição do poder político em Jacarta, tensão crescente na Malásia, legiões de desempregados em toda a região, tornam populares grupos como os Abu Sayyaf, os Laskar Jihad, a Frente Moro Islâmica de Libertação (FMIL), o KMM e muitos outros, girando na órbita da al-Qaida.

 

Informação complementar

Memorandum

Aiman al-Zawahri (n. 1951), médico e poeta oriundo da alta burguesia erudita egípcia, filho de uma das mais respeitáveis famílias e dos beaux quartiers do Cairo, foi o provável cérebro dos atentados de 1998 e de 11 de Setembro de 2001. A estação de televisão Al-Jazira mostrou-o duas vezes, nos primeiros dias de Outubro, ao lado de Bin Laden: a primeira, durante uma cerimónia de fusão da al-Qaida com outro grupo da jihad armada; a segunda, logo após o início dos raids aéreos americano-britânicos no Afeganistão, na cassete pré-gravada da noite de 7: ele falou antes de Bin Laden, apelando à jihad global. Os dois homens — ambos nascidos em berços de ouro e formados nas melhores escolas privadas muçulmanas, mas tornados párias nos seus países — conheceram-se na jihad anti-soviética, em 1985: al-Zawahri integrara, como médico, o Crescente Vermelho, e tratava os mujaedines (apoiados pelos EUA) em hospitais de campanha, no Afeganistão e Paquistão. Terá ganho progressivamente maior influência sobre Bin Laden, convencendo-o de que a jihad não podia limitar-se à região e devia ser exportada.

Os 56 países da OCI (Organização da Conferência Islâmica), reunidos a 10 de Outubro no Qatar, “recusaram que qualquer país islâmico ou árabe seja atacado a pretexto da luta contra o terrorismo”, mas, no seu comunicado final, “tomaram nota” da intenção americana de destruir por todos os meios a rede terrorista montada por Osama bin Laden a partir do Afeganistão, acrescentando que “a retaliação [dos EUA] não deveria atingir civis inocentes, nem ir para além dos autores reais dos ataques (de 11 de Setembro)”. A OCI reúne países islâmicos tão distantes como Marrocos e a Indonésia, e cujas relações com os EUA são tão diferentes como o Egipto e o Iraque.

Os 22 países da Liga Árabe, reunidos a 9 de Outubro no Qatar, não chegaram a qualquer comunicado comum sobre os raids americano-britânicos no Afeganistão. No entanto, uma série de consultas informais entre os membros produziu uma plataforma em que os participantes reafirmam serem todos “contra o terrorismo internacional” mas não tolerarem que “tal fenómeno seja imputado ao Islão”. O secretário-geral, Amr Mussa (egípcio) declarou que “deve ser a ONU a organizar a luta contra o terrorismo”. A Liga exprimiu “consideração” pelas declarações do presidente G. W. Bush a favor da criação de um Estado palestino.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Professor na ESCT. Subdirector do curso de Ciências da Comunicação na UAL. Sudirector do Observatório de Relações Exteriores.

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