Pesquisar

  Janus OnLine - Página inicial
  Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa 
 
 
Onde estou: Janus 2002 > Índice de artigos > Portugal e o mundo > Aspectos da conjuntura internacional > [A hegemonia americana e a ordem internacional de Clinton a G.W. Bush]  
- JANUS 2002 -

Janus 2002



Descarregar textoDescarregar (download) texto Imprimir versão amigável Imprimir versão amigável


A hegemonia americana e a ordem internacional de Clinton a G.W. Bush

João Marques de Almeida *

separador

Para se discutir de um modo adequado a natureza da ordem internacional pós-Guerra Fria, é fundamental responder às seguintes questões: que tipo de hegemonia exerceram os Estados Unidos durante a Administração Clinton? E o que vai a Administração G. W. Bush fazer com a hegemonia norte-americana? Este texto irá procurar responder a estas questões, fazendo a análise da política de hegemonia norte-americana durante a Administração Clinton e a sua evolução para a Presidência de Bush. Complementarmente, acrescenta-se uma nota prévia acerca do “momento unipolar”(1) que se seguiu ao fim da Guerra Fria, discutindo três concepções diferentes de hegemonia. O tema de discussão será exclusivamente a hegemonia americana no domínio da segurança e não na área da economia.

 

Clinton e a hegemonia norte-americana

O tratamento da hegemonia americana durante as Presidências de Clinton pode começar com uma breve referência às heranças multilaterais da Guerra Fria. Embora o conflito bipolar tenha dominado a política internacional durante a Guerra Fria, entre 1945 e 1949 criaram-se igualmente os mecanismos centrais de uma ordem internacional liberal, em que as principais instituições eram (e ainda são) as Nações Unidas e a Aliança Atlântica. Ou seja, entre 1945 e 1989, havia não uma mas duas ordens políticas: uma ordem competitiva bilateral e uma ordem institucionalizada e multilateral.(2) A ordem bipolar acabou com o fim da Guerra Fria, mas a ordem liberal e multilateral saiu reforçada do conflito entre americanos e soviéticos.

É óbvio que existe uma relação de complementaridade entre uma ordem de segurança altamente institucionalizada e a hegemonia multilateral. No caso dos Estados Unidos, logo a seguir ao fim da Guerra Fria, a sua ‘política do predomínio’ utilizou as estruturas multilaterais herdadas da Guerra Fria. Por outras palavras, o exercício do poder unipolar pelos Estados Unidos aceitou limites institucionais. Isto foi visível ainda durante a Presidência de George Bush (pai), como mostram as intervenções, feitas em cooperação com as Nações Unidas, no Iraque e na Somália, (3) e a política americana durante a reunificação alemã, em que a NATO ocupou um lugar central. (4)

Como é que Clinton então lidou com o legado institucional da Guerra Fria e da Presidência de Bush? (5) Uma análise do comportamento das Administrações Clinton na segurança internacional mostra claramente o peso da dimensão institucional e multilateral. A Aliança Atlântica ocupou um lugar central na política europeia dos Estados Unidos. Após algumas hesitações no início do seu primeiro mandato, Clinton renovou o compromisso institucional com os aliados europeus. Como resultado, Washington liderou o processo de alargamento da aliança, concretizado em 1999, com a inclusão da Hungria, Polónia e República Checa. Além disso, as intervenções militares na Bósnia, em 1994-95, e no Kosovo, em 1999, e as subsequentes operações de imposição da paz nas duas regiões, foram feitas através da Aliança Atlântica. Ainda em relação à natureza multilateral da política norte-americana, as Nações Unidas estiveram, e estão, igualmente envolvidas nas missões internacionais nos Balcãs. Apesar desta dimensão multilateral, convém referir que existiu igualmente uma dimensão bilateral na política de segurança dos Estados Unidos durante as Presidências de Clinton. O bilateralismo foi notório nas relações de segurança com a Rússia e com a Ucrânia; na aliança com o Japão, dando seguimento à política da Guerra Fria; e na política americana no Médio Oriente, especialmente em relação ao conflito entre Israel e a Palestina. 

 

G. W. Bush e o futuro da hegemonia  norte-americana

A vitória eleitoral de George W. Bush fez regressar os receios europeus em relação a uma possível viragem unilateral na política de segurança dos Estados Unidos. Rumores de que Washington preparava planos para retirar as suas tropas dos Balcãs, afirmações duras de membros destacados da nova Administração a criticarem a Política Europeia de Segurança e Defesa, e o anúncio da iniciativa para construir um Sistema de Defesa Nuclear sem consultar os aliados e a Rússia não ajudaram a tranquilizar os europeus. Todavia, juntamente com estes sinais unilateralistas, tem havido igualmente fortes indicações que apontam para uma continuidade multilateral. Neste sentido, deve-se discutir as duas seguintes opções.

 

A opção unilateral

Até ao momento, o grande partidário da opção unilateral na Administração republicana parece ser o Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, cujas posições contam por vezes com a simpatia do Vice-Presidente, Dick Cheney. A necessidade de distinguir uma política unilateral do isolacionismo deve ser o primeiro ponto a salientar.(6) Devido em grande parte à sua posição hegemónica, a opção isolacionista, semelhante ao período após a I Grande Guerra, não é viável. É muito difícil a maior potência mundial isolar-se da segurança internacional. Apesar de o isolacionismo não ser uma alternativa viável, o unilateralismo poderá ser uma opção. Como foi referido acima, o programa unilateral define-se por três pontos centrais. Em primeiro lugar, a recusa em assumir compromissos institucionais permanentes. Depois, como resultado do primeiro ponto, uma política de segurança unilateral, através do estabelecimento de alianças bilaterais. Finalmente, o recurso ao uso da força militar, e o consequente envolvimento em crises internacionais, apenas quando a segurança nacional norte-americana está directamente ameaçada. Na segurança europeia, o triunfo da opção unilateral significaria, desde logo, a retirada das tropas americanas da Bósnia e do Kosovo. O passo seguinte seria então a retirada dos Estados Unidos da Aliança Atlântica, e o início de uma política de alianças estratégicas com grandes potências europeias, possivelmente a Alemanha, à semelhança da aliança bilateral com o Japão na Ásia.(7) 

Topo Seta de topo

 

O multilateralismo realista

O Secretário de Estado, Colin Powell e a Conselheira para a Segurança Nacional, Condoleezza Rice, são os defensores do multilateralismo. Num artigo publicado na Foreign Affairs, Rice defendeu a renovação “das relações de segurança com os aliados”.(8) Vai mesmo mais longe e afirma que “os interesses dos Estados Unidos podem ser prosseguidos no interior da ONU e de outras organizações multilaterais”.(9) Rice reconhece igualmente que a intervenção no Kosovo correspondeu aos interesses estratégicos da NATO, dos Estados Unidos e dos aliados europeus.(10)  Neste sentido, Rice considera que os Estados Unidos devem manter o compromisso em relação a um futuro alargamento da NATO. Ainda no contexto da segurança europeia, Rice aceita a construção de uma identidade de defesa europeia, desde que não prejudique a Aliança Atlântica.(11) De acordo com estas posições, é natural que Rice conclua que a “política externa dos republicanos será internacionalista”.(12)  No mesmo sentido multilateral vão as posições de Powell nas suas visitas à Europa. O actual Secretário de Estado renovou o compromisso com a NATO, confirmou a participação dos soldados americanos nos Balcãs, e aceitou o desenvolvimento da Política Europeia de Segurança e Defesa.

 

Conclusões

Da análise feita, pode-se tirar três conclusões em relação ao futuro da hegemonia norte-americana. Em primeiro lugar, a hegemonia coerciva não é uma opção credível. É muito improvável que os Estados Unidos passem a adoptar estratégias militaristas de conquistas territoriais, desrespeitando as regras e normas fundamentais dos regimes de segurança internacional. Em segundo lugar, o actual momento de clarificação, que poderá prolongar-se durante o primeiro ano da Presidência de Bush, balança entre a hegemonia unilateral e a hegemonia multilateral. Na actual Administração encontram-se ambas as correntes. No entanto, e esta é a última conclusão, a renovação da hegemonia multilateral será a tendência mais provável. No caso das potências satisfeitas, como são os Estados Unidos, é sempre mais fácil adoptar uma política de continuidade do que assumir uma política de ruptura. Para se entender devidamente este ponto, é fundamental distinguir declarações que manifestam preferências políticas de decisões que indiquem uma mudança de estratégia política. Ou seja, é necessário saber identificar o que constitui uma passagem do nível retórico para o plano político. Para se concluir que os Estados Unidos estão a adoptar uma estratégia de hegemonia unilateral, declarações como as que Rumsfeld tem feito ou rumores sobre possíveis retiradas militares não são indicadores suficientes. É preciso que haja decisões concretas que provoquem alterações políticas imediatas. Por exemplo, no caso da segurança europeia, se Washington apresentar planos claros, com prazos devidamente estabelecidos, sobre a retirada das suas tropas da Bósnia e do Kosovo, então pode começar-se a falar de uma viragem para a hegemonia unilateral. Sem isso acontecer, a hegemonia multilateral continuará a dominar a política de segurança norte-americana.

 

Informação complementar

O momento unipolar

De um modo muito simples, um sistema unipolar define-se pelo grau de concentração de poder numa grande potência impossibilitar a emergência de um equilíbrio de poder. Para melhor se entender a noção de sistema unipolar, é necessário fazer duas distinções fundamentais. Em primeiro lugar, deve-se distinguir o domínio unipolar de outros tipos de domínio de poder. Assim, um sistema unipolar é diferente, por um lado, de sistemas multipolares ou bipolares em que existe uma potência dominante, como aconteceu, por exemplo, com a Grã-Bretanha no século XIX e os Estados Unidos durante a primeira metade da Guerra Fria. Por outro lado, os sistemas unipolares são igualmente distintos de sistemas políticos imperiais, nos quais existe uma hierarquia de natureza constitucional e jurídica entre o poder imperial e os restantes poderes, como aconteceu nomeadamente com os impérios coloniais. É evidente que o actual sistema internacional não é caracterizado por este tipo de hierarquia imperial. Por outro lado, após uma análise comparativa, em que se incluem factores como o Produto Interno Bruto, a capacidade económica e o poder militar, entre as hegemonias britânica em 1860-70, a americana em 1945-55, e a americana desde o fim da Guerra Fria, William Wohlforth concluiu que “em toda a história moderna, nunca a potência dominante gozou de uma hegemonia económica e militar como agora”. (13) Isto indica que o actual sistema internacional é, sem qualquer dúvida, unipolar, e que os Estados Unidos detêm uma hegemonia sem precedentes na história moderna das relações internacionais.

Não havendo dúvidas de que se vive num momento unipolar, existem contudo incertezas sobre o comportamento da potência hegemónica, particularmente após a mudança de Administrações. Este ponto leva-nos à segunda distinção. Convém distinguir unipolaridade, no sentido em que se refere a uma condição estrutural do sistema internacional, de hegemonia, entendida como a atitude política adoptada pela potência unipolar. Ou seja, existem diferentes formas de potência unipolar exercer o seu poder. Esta segunda distinção é fundamental porque nos permite entender que existem concepções diferentes de hegemonia. No estudo da segurança internacional, predominam três concepções distintas de hegemonia.

Comecemos por considerar as duas versões da perspectiva realista de hegemonia. A primeira versão, e a mais radical, é a hegemonia coerciva. A potência hegemónica usa o seu poder para obrigar os outros Estados a cooperar. Para esta concepção, o aumento de poder, as estratégias ofensivas e o desrespeito pelas instituições e regras internacionais caracterizam o comportamento das potências hegemónicas. (14) Em termos históricos, a hegemonia da Alemanha nazi na Europa entre 1939 e 1943 e a hegemonia soviética na Europa de Leste durante a Guerra Fria constituem exemplos de hegemonias coercivas. A hegemonia unilateral é a versão mais moderada do realismo político. Este tipo de hegemonia define-se, antes de mais, por uma recusa em assumir compromissos institucionais permanentes. Depois, por um exercício do poder hegemónico através de estratégias unilaterais, em que se salientam entendimentos bilaterais com as potências regionais para manter a ordem internacional. Finalmente, para os unilateralistas, os Estados Unidos só devem usar a força militar quando existem ameaças imediatas à segurança nacional. (15) Em relação à primeira concepção de hegemonia, a hegemonia unilateral é menos coerciva, recorre a estratégias defensivas e não ofensivas, e respeita as regras elementares da sociedade internacional. Ainda em relação a este modelo de hegemonia, os seus defensores procuram reconciliá-la com o equilíbrio de poder, afastando-se assim de uma concepção absoluta de unipolaridade.

A reconciliação entre duas tendências aparentemente opostas, unipolaridade e equilíbrio de poder, resulta no “palavrão” académico, criado por Samuel Huntington, de “uni-multipolaridade”. (16) Por fim, alguns unilateralistas mostram igualmente uma evidente relutância em relação a uma contribuição activa dos Estados Unidos para manter a ordem de segurança internacional, revelando mesmo uma certa tendência para defenderem uma gradual retirada estratégica norte-americana. Neste caso, o pensamento realista procura reconciliar a hegemonia com a tradição isolacionista dos norte-americanos. (17)

A hegemonia multilateral é a última concepção de hegemonia a ser considerada neste texto. Em primeiro lugar define-se pela observância das regras e normas fundamentais da sociedade internacional, como por exemplo a renúncia à ameaça e ao uso da força para fins expansionistas. Em segundo lugar, o exercício da hegemonia multilateral está associado à criação de instituições multilaterais. Deste modo, a potência hegemónica limita voluntariamente o exercício do seu poder. (18) Por outro lado, esta dimensão multilateral concede legitimidade à ordem internacional. Os outros Estados deram o seu acordo às instituições internacionais, participam na gestão da ordem internacional, e obedecem às regras e normas, considerando a ordem política desejável. Por fim, a hegemonia multilateral é discriminatória, no sentido em que existe uma diferença entre o relacionamento com os Estados aliados e com os Estados não-aliados. As relações são muito mais institucionalizadas no primeiro caso. Comparando com os outros dois tipos de hegemonia, ao contrário da hegemonia coerciva, a hegemonia multilateral goza de legitimidade política. Ao contrário da hegemonia unilateral, a potência hegemónica contribui activamente para manter a ordem internacional.

__________
1 A expressão “momento unipolar” foi introduzida por Charles Krauthammer, “The Unipolar Moment”, Foreign Affairs (70, 1, 1990/91).
2 G. John Ikenberry, “Liberal Hegemony and the Future of American Postwar Order”, em T. V. Paul & John A. Hall (eds.), International Order and the Future of World Politics (Cambridge: Cambridge University Press, 1999), pp. 125-9; John Gerard Ruggie, Winning the Peace: America and World Order in the New Era (New York: Columbia University Press, 1996), Capítulos 2, 3 e 4. 
3 David A. Lake, Entangling Relations: American Foreign Policy in Its Century (Princeton: Princeton University Press, 1999), Capítulo 6.
4 Robert O. Keohane, Joseph S. Nye, “The United States and International Institutions in Europe after the Cold War”, em Robert O. Keohane, Joseph S. Nye, Stanley Hoffmann (eds.), After the Cold War: International Institutions and State Strategies in Europe, 1989-1991 (London: Harvard University Press, 1993).
5 Sobre a política de segurança das Administrações Clinton, cf., Samuel R. Berger, “A Foreign Policy for the Global Age”, Foreign Affairs (79, 6, 2000); Josef Joffe, “Clinton’s World: Purpose, Policy and Weltanschauung”, The Washington Quarterly (24, 1, 2001); e Stephen Walt, “Two Cheers for Clinton’s Legacy”, Foreign Affairs (79, 2, 2000).
6 Para a discussão destas questões, cf., João Marques de Almeida, “Estados Unidos e Europa: Da Pax Americana a uma Relação Transatlântica?”, Nação e Defesa (84, 1998); e Vasco Rato, “O Transatlantismo em Mudança: a NATO, a América e a Europa”, Análise Social (133, 1995).
7 Para o desenvolvimento das estratégias associadas com a opção unilateral, cf., Gholz, Press, and Sapolsky, “Come Home America”; Josef Joffe, “Bismarck or Britain? Toward an American Grand Strategy after Bipolarity”, International Security (19, 4, 1995); e Christopher Layne, “From Preponderance to Offshore Balancing: America’s Future Grand Strategy”, International Security (22, 1, 1997).
8 “Promoting the National Interest”, Foreign Affairs (79, 1, 2000), p. 47.
9 “Promoting the National Interest”, p. 47.
10 “Promoting the National Interest”, p. 52.
11 “Promoting the National Interest”, p. 54.
12 “Promoting the National Interest”, p. 62.
13 William C. Wohlforth, “The Stability of a Unipolar World”, International Security (24, 1, 1999), p. 13.
14 Para uma análise crítica da hegemonia coerciva, cf., Hedley Bull, The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics (London: Macmillan, 1977), pp.213-25.
15 Eugene Gholz, Daryl G. Press, and Harvey M. Sapolsky, “Come Home America: The Strategy of Restraint in the Face of Temptation”, International Security (21, 4, 1997).
16 Samuel P. Huntington, “America’s Changing Strategic Interests”, Survival (33, 4, 1991).
17 Christopher Layne, “The Unipolar Illusion: Why New Great Powers Will Emerge”, International Security (17, 4, 1993).
18 G. John Ikenberry, “Institutions, Restraint, and the Persistence of American Postwar Order”, International Security (23, 3, 1998/99).

separador

* João Marques de Almeida

Doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics (Londres). Docente na Universidade Lusíada. Professor convidado na Universidade de Coimbra. Assessor do IDN.

Topo Seta de topo

 

- Arquivo -
Clique na edição que quer consultar
(anos 1997 a 2003)
_____________

2003

2002

2001

1999-2000

1998

1998 Supl. Forças Armadas

1997
 
  Programa Operacional Sociedade de Informação Público Universidade Autónoma de Lisboa União Europeia/FEDER Portugal Digital Patrocionadores