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Migração de mitos na política externa portuguesa

Observatório de Relações Exteriores

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Prosseguindo a reflexão em torno dos contributos da mesa-redonda referida notexto anterior, pode afirmar-se o seguinte: quando se avalia a evolução dos “mitosda política externa portuguesa”, constata-se que vivemos, desde há quinze anos,um momento de forte migração desses mesmos mitos. A ideia das “relações especiais”com os EUA, com África e com o Brasil – esta última transformada em políticaexterna económica pela governação socialista das duas últimas legislaturas –cede lugar, a partir da adesão à Comunidade Europeia, à conceptualização cadavez mais europeizante da política externa de Portugal. O movimento é complexoe inclui desfasamentos e contradições, mas resulta da “descoberta” tardia daEuropa por um país da sua periferia que, historicamente, nunca se identificouessencialmente como parte dela.

Esta discussão prende-se com o peso relativo do realismo e da utopia no imaginário da política externa portuguesa. Realismo e utopia configuram dois cânones distintos, embora com recobrimentos parciais.

O realismo político é indispensável a um médio-pequeno país como Portugal, e gerou uma escola de política externa severa e rigorosa. Mas, diante das incertezas das próximas fases da construção europeia e das que decorrem da globalização competitiva, a dimensão utópica – as causas e valores que Portugal está disposto a defender no mundo – falha como um suplemento de alma mobilizador, progressivamente mais ausente da acção externa do Estado.

No cânone realista, a intervenção militar portuguesa na Bósnia e no Kosovo, por exemplo, tem mais importância do que a presença militar portuguesa em Timor-Leste, porque corresponde à assunção de que a acção externa do Estado português passou a ser parte integrante da acção externa da UE e exprime envolvimento na construção europeia. Mas o envolvimento português em Timor-Leste não se mede apenas em termos utopistas: mede-se também em termos realistas, porque se tratou de uma operação decidida em órgãos próprios da ONU. Quer dizer: independentemente da diversa mobilização emocional, forças portuguesas foram para a Bósnia e para o Kosovo em defesa da construção da Europa e para Timor-Leste num quadro determinado pela ONU.

 

EUA e atlantismo

A política externa portuguesa tem sido marcada por uma sucessão de discursos muito afirmativos sobre a existência de “relações especiais” entre Portugal e determinados países. Por exemplo, foi longamente cultivada a ideia de que o País tem uma “relação especial” com os Estados Unidos, como se Portugal fosse a Grã-Bretanha ou a Alemanha do plano Marshall. Ora o que justifica, fundamenta ou demonstra hoje a existência dessa relação especial, a não ser as negociações periódicas sobre a utilização da base das Lajes, cuja importância vem declinando? Portugal é, até, o país europeu da área mediterrânica onde o investimento dos EUA tem mais fraca expressão.

A europeização da política externa portuguesa veio menorizar profundamente a antiga ideia da “importância especial” dos EUA e o concomitante atlantismo. Esta ideia é uma sobrevivência da conceptualização de política externa feita na última fase do anterior regime, e especialmente por Franco Nogueira. Tratava-se, então, de enfatizar uma área de interesses que permitisse a Portugal a “fuga” à Espanha e à Europa. Mas essa ideia sobreviveu ao 25 de Abril por razões de política interna: ainda na década de 80, Portugal afirmou-se pró-EUA e atlantista quando necessário, para compensar, junto e através do aliado poderoso e credível, a sua imagem de país debilitado pelas crises políticas e económicas internas.

Esta tradição alimentou outro mito – animado ainda pela governação socialista dos últimos anos – segundo o qual Portugal poderia ser a “plataforma atlântica da Europa”. A globalização competitiva contemporânea, e, muito antes dela, a dispersão competitiva das frentes atlânticas europeias – que a história económica põe em evidência – põem em causa este sonho de um novo porto-charneira para a Europa atlântica, e de que esse porto seria Portugal. A proposta de relançamento do terminal de Sines pela Singapore Port Authority, destinada a recondicionar as políticas portuária e ferroviária nacionais, foi mais um sinal de vida dessa conceptualização, e poderá não ser o último.

Os EUA e a sua acção externa são uma condicionante forte da acção externa de qualquer país europeu, na sua dupla posição de aliado e de rival. Mas o relacionamento com os EUA é cada vez menos um problema de cada Estado europeu, e cada vez mais um problema da UE como entidade global. Um dos fantasmas da integração europeia é até, precisamente, o dos “Estados Unidos da Europa”, que fez caminho entre parte dos federalistas europeus. Para a Europa, os EUA são, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, esse “Grande Outro” que assume, precisamente, o valor de condicionante exógena, simultaneamente como aliado e rival.

 

África e lusofonia

O caso africano seria outro caso de mitificação das “relações especiais”. Para além do quadro historicamente definido pelas longas relações coloniais e sua herança, quadro a que Portugal não poderá furtar-se e que gera um clima emocional próprio (associado à memória viva de quase 15 anos de guerra em três frentes ultramarinas), para além da necessária política de projecção e defesa da língua, em que é que Portugal deve manter, em termos realistas, “relações especiais” com Estados que foram seus antigos territórios africanos?

As questões africanas são hoje parcialmente vividas pelo Estado português como uma fatalidade histórica penosa, de que Portugal não pode desembaraçar-se, como não pode desembaraçar-se dos problemas que a África lusófona lhe coloca. Nesta medida, a lusofonia, património inalienável e que pede políticas para o futuro, torna-se, em parte, um “peso”. O primeiro semestre de 2001 foi marcado pela questão dos reféns no enclave de Cabinda e pela tensão relativa à segurança da comunidade de 600 mil portugueses e luso-descendentes na África do Sul. No primeiro caso, foi notória a necessidade em que Portugal se encontrou de recorrer à intermediação da UE – em especial a certos “grandes” da UE, como a França – para poder libertar os trabalhadores portugueses raptados. No segundo, foi visível a inexistência de uma política de antevisão de crise envolvendo países vizinhos (Moçambique sobretudo, mas também Angola) que pudessem oferecer áreas seguras de refúgio temporário em caso de emergência.

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Deste ponto de vista, a acção de Portugal no contexto da CPLP ou no espaço ibero-americano não é, hoje, por si só, elemento estruturante da sua política externa. Os elementos estruturantes dessa política são a integração europeia e a pertença à NATO com todas as suas consequências – e é nesta perspectiva que as questões relativas ao Leste, aos Balcãs, ao Mediterrâneo, passam, contra a tradição e a história, a interpelar Portugal. A seguir, perfila-se a presença portuguesa na ONU e a maior ou menor participação nos seus programas.

 

Europa, corte com o passado

Nesta perspectiva, a integração europeia é o principal corte que Portugal está a operar com o seu passado e com os mitos desse passado, tornando-os progressivamente mais supletivos e complementares. Quase toda a classe política portuguesa é hoje europeísta, mas a opinião pública nacional teme que a mudança possa vir a ser desfavorável ao País – que a Europa, novo eixo estruturante da afirmação portuguesa no mundo, venha a ser desfavorável ao País. Portugal tem, assim, uma atitude prudentemente conservadora em relação à Europa, atitude enraizada na periferização, na postura defensiva e no isolacionismo vindos do seu passado histórico. Mas o inverso também é verdadeiro: existe ao mesmo tempo a ideia de que uma Europa mais integrada, mais próspera, com mais política externa unificada, mais política de defesa e segurança e mais impacte no mundo contemporâneo, dará a Portugal um peso internacional claramente maior, inclusive nas áreas de interesse específico português, quer dizer: no que resta da antiga expressão imperial portuguesa. Estas duas ideias disputam balanceadamente a hegemonia da opinião, em Portugal como, por outros motivos, noutros países da UE.

Claro que a intervenção portuguesa na Bósnia ou no Kosovo dividiu a opinião pública portuguesa, a classe política portuguesa e os partidos políticos portugueses: a “europeização” da acção externa do Estado não correspondia à assunção de uma política de valores, e toda a classe política percebeu que é difícil usar o braço armado da acção externa do Estado de modo voluntarista e vanguardista, sem sintonia com a tradição da política externa nacional. Isto significa que faltam valores explícitos, e assumidos como tal, em que a acção externa do Estado se fundamente.

Os exemplos do dossier Oceanus, de 1998, da campanha canadiana contra as minas antipessoais e da Itália relativamente ao Tribunal Penal Internacional mostram que há valores que podem sustentar a visibilidade internacional de políticas externas, muitas vezes em articulação com ONG ou com coligações internacionais de ONG — um modelo que poderia interessar Portugal.

No que respeita às áreas de interesse específico português, três casos tiveram para Portugal valor e importância bem distintos: Timor foi um capital positivo; Angola, por prudência excessiva e falta de política, empobreceu a nossa imagem. Macau ocupa uma posição híbrida entre os dois. Timor foi importante para Portugal pelo que será o futuro país, quando independente? Não: foi-o porque Portugal surgiu na cena internacional como defensor de valores, relativos, no caso, aos direitos humanos. Em relação a Angola não foi capaz do mesmo movimento. Quanto a Macau, onde se conseguiu uma transição pacífica e “exemplar”, a negociação diplomática com a China terá corrido bem, mas a imagem do território que Portugal legou ao futuro é desfavorável e responsabiliza a antiga potência administrante – a portuguesa.

 

Informação complementar

“Performance” externa, “performance” interna

É hoje comum reconhecer-se que a capacidade de afirmação internacional de um país depende directamente da sua performance interna a nível económico, social, político, cultural. Se a qualidade da prestação interna é fraca, a imagem exterior não pode ser forte. E há áreas chave da política interna sem as quais não há afirmação externa possível. Um país em ruptura económica e com finanças desequilibradas não é credível no universo da cooperação económica internacional. Um país culturalmente disperso, prolixo, não se afirma culturalmente. Um país politicamente frágil, de liderança pouco afirmativa, não pode pretender ser uma voz influente no exterior. Sabe-se que na Europa actual existem poderes políticos frágeis, e é provavelmente da soma dessas fragilidades que resulta a fragilidade da sua afirmação externa como um todo integrado.

Vale a pena salientar a fragilidade dos governos e o carácter cada vez mais fortuito, ocasional, da sua gestão da agenda política: em tempo de mediatização “stressada” da política, é difícil gerir objectivos de agenda política com coerência e determinação. Quando avaliamos os factores – endógenos e exógenos – que mais afectarão a acção externa do Estado português nos próximos anos, a resposta aponta claramente para os primeiros, em torno da questão de fundo que é a de saber se Portugal conseguirá, ou não, aproximar-se dos padrões de vida médios europeus.

Até 2006 está assegurada a entrada diária, no País, de dois milhões de contos dos fundos comunitários. Quando esse fluxo diminuir sensivelmente, qualquer tournant da relação Portugal-UE, qualquer negociação crucial mal conduzida, poderá pôr termo à relativa paz nacional em torno das questões europeias, que é artificial e que tem dependido, sobretudo, de na agenda europeia nada existir que os portugueses sintam como verdadeiramente decisivo para o seu futuro.

Quanto ao aparelho diplomático, ele é, antes de mais, o fruto da definição, pelos governos, da acção externa. O aparelho diplomático português é uma elite bem treinada, com espírito de corpo e espírito de missão nacional, mas formada para a época das questões bilaterais.

É conservador e está mal preparado para a nova multilateralidade e para a ideia de acção externa do Estado onde têm de convergir as dimensões política, económica e cultural. Reconhece-se um grande défice em matéria de política económica externa e na racionalização dos instrumentos que favorecem aquela convergência. O que está em causa é, em primeiro lugar, a articulação entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros, o da Economia e o ICEP. As empresas queixam-se de ausência de acção política de enquadramento para as suas iniciativas externas. O MNE responde que as empresas têm muitas vezes opções estratégicas confidenciais, que ignoram o Estado se são bem sucedidas no exterior e que só recorrem ao MNE quando ali se lhes deparam problemas que não sabem, nem podem, resolver. As articulações do MNE com a Defesa e com a Cultura são, pelo menos, tão problemáticas como a primeira.

Da formação recebida, que tornou a diplomacia portuguesa num exemplar aparelho burocrático, advém uma tendência para a morosidade e o secretismo, compensada por um fascínio pela política declaratória e pela photo opportunity, como forma de explorar raros momentos de visibilidade. É certo que a acção externa do Estado, à semelhança do que se passa com a ideia de nação, não pode depender do plebiscito quotidiano. Mas há mudanças de comportamento que correspondem a mudanças estruturais da acção externa do Estado e que, por isso, têm de ser concretizadas.

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