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Políticas culturais públicas na Europa

João Teixeira Lopes *

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Uma política cultural começa quando se estabelece um reconhecimento da autonomia relativa do campo cultural por parte do poder político. O epíteto de pública surge quando é orientada por uma intervenção de salvaguarda do célebre “carácter de excepção” das obras culturais, encaradas mais do que meras mercadorias, sujeitas às alterações da oferta e da procura. O mercado da cultura é assim um mercado assistido, regulado e tutelado pelo poder público: um mercado desregulado neste campo seria a garantia de que só se produziriam bens para as maiorias, deixando os restantes votados ao silêncio.

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Este artigo deve ser considerado à laia de actualização e complemento de um outro, publicado na revista do Observatório das Actividades Culturais (1). Em ambos os casos pretende-se uma visão comparativa de conjunto sobre as orientações políticas em matéria cultural, abrangendo um número vasto de países que foram alvo de um relatório de avaliação por parte do Conselho da Europa.

 

Do que falamos quando falamos de política cultural?

Uma política, qualquer que seja, requer uma intencionalidade, o accionar de recursos tendo em vista alcançar determinados objectivos. E os recursos variam de acordo com o grau de poder disponível. O campo cultural cruza-se, por isso, com o campo da distribuição de poder.

Mesmo a mais conservadora das políticas tem de efectuar opções, escolher de entre um campo limitado de possíveis e, desta forma, transformar a realidade. Inversamente, a mais revolucionária das orientações encontra sempre obstáculos à mudança radical.

Do mesmo modo, importa não banalizar o conceito. Medidas avulsas, euforias súbitas, investimentos efémeros, sem sistematicidade (isto é, sem esquemas prévios, sem um corpus de objectivos explícito, um certo grau de institucionalização, coerência e duração) podem ser tudo menos uma política.

No campo cultural, aliás, correm-se riscos acrescidos devido a um conjunto de múltiplos factores: fraca estruturação, intermitência de certas actividades, forte conflitualidade interna. A própria relação com o campo político afigura-se potencialmente conflitual. Ainda é frequente a cultura ser encarada não como um domínio merecedor de uma política relativamente autónoma, mas um acréscimo de legitimação do poder político que se apresenta e representa através das mediações simbólicas: panis et circenses, “pão e circo” – visibilidade, espectáculo, festa, arena, entretenimento das massas, alienação das mesmas... Neste sentido, jamais se poderá falar de uma autêntica política cultural – antes de um uso instrumental de certas actividades, práticas e actores inseridos de forma diversa no campo cultural, subalternizado e definido heteronomamente – sem uma lógica interna que lhe seja imputável.

Uma política cultural começa quando se estabelece um reconhecimento da autonomia relativa do campo cultural (dos actores, suas posições e relacionamento, das regras de jogo que lhe são próprias) por parte do poder político.

Um dos indicadores desse reconhecimento liga-se, indissociavelmente, a uma determinada concepção do relacionamento entre o Estado, o mercado e a “sociedade civil”. Uma política cultural merecerá o epíteto de pública quando for orientada por uma intervenção de salvaguarda do já célebre “carácter de excepção” das obras culturais, obras encaradas como algo mais do que uma mercadoria, sujeita às flutuações da oferta e da procura.

Esta questão é tanto mais importante quanto irrompe por todo o lado a tendência para a mercantilização “pura e dura” dos bens culturais, por vezes associada às expressões de “economia da cultura” ou “indústrias culturais” ou, ainda, com um acréscimo de ambiguidade, “indústrias de conteúdos”. Que fique bem claro: a cultura tem o seu mercado, a sua economia e a sua reprodutibilidade, mas o seu significado joga-se numa esfera apenas parcialmente conversível ao económico.

O seu mercado é um mercado assistido – protegido, regulado e tutelado pelos poderes públicos.

Uma política cultural pública é um garante essencial da pluralidade normativa, identitária e expressiva das complexas sociedades contemporâneas, bem como condição de cidadania activa. Um mercado desregulado para os bens culturais, ao contrário do que os liberais defendem, seria um atentado contra a liberdade criativa e de expressão: apenas teriam possibilidade de ser “criadores” os que se submetessem aos cânones das imensas e indeterminadas maiorias que lhes garantissem o imprescindível retorno financeiro. Aos demais, restaria o “privilégio” da incomunicabilidade e do silêncio.

 

O mosaico europeu

O primeiro quadro demonstra como a discussão que tentamos esboçar nos seus eixos principais encontra níveis diferentes de consolidação nos vários países em análise. Trata-se da importância incontornável de duas variáveis contextualizadoras e de sobredeterminação dos regimes e opções políticas: história e território. Não deixa de ser curioso verificar que a participação e a democratização cultural constituem, em termos relativos, a principal referência dos países pertencentes à UE. Trata-se, na verdade, do reconhecimento de uma persistente ineficácia das políticas culturais em promoverem o alargamento e diversificação da composição social dos públicos.

Já antes tentei identificar as três gerações de políticas culturais dominantes, desde a fundação do conceito e da prática até aos nossos dias. Escrevi, então: “Chamaria política cultural de primeira geração (2) a toda a afectação de meios e recursos, públicos e privados, em contextos de aproximação a modelos de desenvolvimento cultural assentes em pressupostos de rápida exequibilidade. Trata-se, enfim, de actuar em força do lado da oferta cultural: promover a construção e distribuição territorialmente equilibrada de um conjunto de equipamentos e infra-estruturas (salas de espectáculo, centros culturais...); eliminar barreiras burocráticas e simbólicas de acesso às “grandes” obras; fazer baixar, através de uma gestão político-social de subsídios, os preços dos espectáculos, etc. As políticas culturais de segunda geração, por seu lado, acreditavam nos efeitos quase automáticos da maior exposição aos agentes de socialização: mass media e escola.

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Finalmente, uma política cultural de terceira geração (...) não acredita em automatismos, nem tão-pouco em fatalismos. Insiste, pelo contrário, num trabalho subterrâneo e por vezes doloroso, junto das escolas e associações, direccionado para o envolvimento directo dos agentes enquanto praticantes culturais de pleno direito e não apenas confinados ao papel de consumidor e/ou receptor, apostando, entre outras estratégias, na captação dos grandes temas do seu quotidiano, cruzando-os com preocupações estéticas nas diferentes formas de expressão artística e a vários níveis de cultura (popular, erudito, de massas)”.

Assim, em vez de uma mera procura de audiências, pugna-se, doravante, pelo envolvimento dos públicos em processos expressivos, ao mesmo tempo que se defende o seu alargamento em termos de capital escolar e social.

Se atentarmos, agora, ao relevo dado neste conjunto de países à questão da descentralização e das parcerias entre sector público e privado constatamos, sem surpresa, que o campo cultural não permanece imune ou estanque face às grandes discussões e reformulações que, nestes e noutros países, questionam formas clássicas de organização do Estado. Por um lado, a focagem nas dimensões locais e endógenas dos processos de desenvolvimento, a par de uma crítica feroz à dimensão titânica das administrações centrais e à ampla difusão do princípio da subsidariedade, leva, pelo menos ao nível das intenções proclamadas, a uma forte defesa dos processos de desconcentração e descentralização, acarretando (ou não) uma efectiva delegação de poderes.

Se analisarmos os dados disponíveis verificamos que, para este grupo de países (exceptuando a Bélgica, que não apresenta qualquer indicação), as declarações coincidem aparentemente com as práticas: apenas a Áustria e a França apresentam um maior investimento central no domínio da cultura. No entanto, impõe-se alguma prudência. O caso português é, a esse respeito, extremamente elucidativo: apesar de as autarquias gastarem mais em cultura do que o Estado Central, estamos longe de poder falar de um modelo avançado de descentralização...Trata-se, outrossim, de um maior voluntarismo dos municípios ao descobrirem na cultura um sector estratégico de desenvolvimento e de projecção de uma imagem positiva do território.

No que se refere à procura de parcerias entre público e privado, ela é indissociável da crise do Estado-providência e, por conseguinte, da escassez relativa de investimento público no sector da cultura e na sustentação de um mercado assistido. Assim, a procura de parceiros no sector privado, designadamente através das políticas de mecenato, está desde há algum tempo no epicentro do debate sobre uma eventual “mercantilização” da cultura através da sua sujeição ao capital económico, cujos “interesses” seriam em boa parte descoincidentes das aspirações, práticas e representações dos criadores, embora cultura e economia se encontrem, desde há várias décadas, em crescente interligação.

Observando, agora, as principais prioridades dos chamados “países de Leste”, realça a ênfase concedida à preservação do património e da herança cultural. Também neste caso parece existir uma intrínseca relação com os processos de rápida desagregação do papel do Estado, com a vertiginosa mudança de regime a que se assistiu nestes países, a par da abrupta passagem de uma economia burocratizada e planificada para uma sociedade de mercado ainda errática e sem alicerces. Neste contexto de potencial instabilidade, o reverso do caos reside na raiz. E a raiz remete, inexoravelmente, para visões mais ou menos estáticas do património e da memória, pretensos suportes, tantas vezes em versão essencialista, para Estados-nação enfraquecidos, muitos deles marcados por redefinições de fronteiras e violentos conflitos étnicos, questionadores, eles mesmos, de qualquer conceito puro e imóvel de identidade nacional.

Atente-se que esta prioridade com o património surge igualmente nos países da UE. Seria interessante perceber a matriz ideológica dominante nos contextos políticos em que os relatórios agora em análise foram elaborados. No entanto, não me parece exagerado afirmar que a concepção de património encontra aqui um campo potencialmente alargado, podendo, eventualmente, incluir o património “vivo” e o património “imaterial”.

Voltando aos “países de Leste” não surpreende, igualmente, a sua preocupação com a internacionalização, uma vez que o seu passado recente se fez, em boa medida, no espírito do isolacionismo, contra a globalização (das economias, das informações, dos conteúdos) e a mobilidade.

Finalmente, observemos os quadros relativos às áreas prioritárias em termos de investimento público em cultura e, em seguida, aos domínios menos contemplados. De facto, a divergência é acentuada. Enquanto as publicações e o conjunto cinema e fotografia constituem as áreas menos apoiadas nos “países de Leste”, na União Europeia o menor financiamento prejudica, antes de mais, as Artes Visuais (3), embora os domínios anteriormente referidos também sejam afectados. No entanto, no caso do cinema, existe uma política europeia de contornos sólidos, não só por o campo de criadores se encontrar bem estruturado e em crescimento, como, ainda, pela necessidade, também política, de fazer face ao “império Hollywood” e de apoiar a “excepção europeia”.

As artes visuais são, então, na UE, o parente pobre. Não podemos esquecer que, tirando as grandes colecções dos museus nacionais e de algumas galerias ou colecções privadas, o sector, em particular, das artes plásticas, continua a ser fracamente estruturado.

Predominam, com efeito, criadores que, em muitos casos, não estão “profissionalizados” (categoria, aliás, hostilizada pela aura artística...), dedicando-se à sua actividade em tempo parcial e em regime de acumulação pluriactiva. Atomizados, fragmentam-se perante o poder instituído, mais propenso a apoiar grupos profissionais organizados e institucionalmente enquadrados.

No caso dos “países de Leste” e do menor suporte concedido às publicações, tal deve-se, eventualmente, numa hierarquia de prioridades, a uma representação por parte do Estado de que se trata de um domínio tradicionalmente consagrado e apoiado pelos anteriores regimes.

__________
1 Cf. M. L. Lima dos Santos, “Políticas culturais europeias (I) e (II)” in OBS, nºs 8 e 9, 2000 e 2001, respectivamente.
2 A tipologia que aqui se desenvolve parte, em boa medida, das considerações de O. Donnat em Les Français Face à la Culture, Paris, Éditions la Découverte, 1994.
3 Categoria certamente vasta, onde cabem as artes plásticas, o design e outras áreas “emergentes” e de cruzamento.

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* João Teixeira Lopes

Professor Associado. Investigador do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

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