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Xiitas, hachemitas e israelitas num novo Médio Oriente

José Manuel Félix Ribeiro *

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O futuro do Iraque pode ser analisado tendo em conta o comportamento das várias etnias presentes. Os curdos gozam da situação geopolítica mais favorável desde o fim do Império Otomano. Os xiitas, maioritários em termos demográficos, debatem-se com importantes clivagens internas centradas na forte influência do poder religioso sobre a política ou uma maior independência entre ambos. Os sunitas, a minoria que perdeu o poder, podem optar pela junção a uma facção xiita que defenda um Iraque islamizado, pela união à Jordânia, restaurando a dinastia hachemita ou pela luta armada.

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A análise do Iraque pós-Saddam pode ser objecto de uma reflexão prospectiva que terá como elementos-chave o comportamento dos “actores” internos ao país – curdos, xiitas, sunitas – pensando para cada um deles duas ou três configurações possíveis desse comportamento e explorando as interacções que se podem estabelecer entre essas configurações. Iremos partir do princípio de que os curdos dispõem hoje da situação geopolítica mais favorável desde o fim do império otomano para afirmarem direitos e conquistarem espaço de autonomia, se não de independência. E formulam-se três configurações possíveis para o seu comportamento futuro:

  • Um reacender violento dos conflitos entre facções curdas iraquianas em torno da opção “integração permanente no Iraque versus busca de uma independência de facto”, acompanhado por uma série de afrontamentos violentos com as minorias turquemenas e árabes a propósito das “fronteiras” da região sob controlo curdo, com destaque para o futuro de Kirkuk;
  • Uma pacificação interna em torno de um forte grau de autonomia no seio de um Iraque federal e do acesso a uma parte maioritária dos rendimentos do petróleo da bacia petrolífera de Kirkuk/Mossul, mas sem extensão da área actualmente controlada pelo PKI e UPI, que tenderiam a procurar apoios externos distintos;
  • Uma pacificação interna com uma extensão da área sob controlo curdo, por forma a incluir Kirkuk, sendo acompanhada pelo estabelecimento de bases militares americanas no Curdistão. Considera-se, no que respeita ao seu relacionamento com os outros “actores” que a elite curda opor-se- á sempre ao estabelecimento de um regime islâmico no Iraque. Iremos partir do princípio de que os xiitas, por serem maioritários em termos demográficos, terão sempre vantagem num Iraque democrático; e, por serem árabes, terão vantagem numa integridade territorial do Iraque, para não serem absorvidos pelos xiitas persas. Mas considera-se que será violenta a luta pela liderança política no seu seio, formulando-se duas configurações possíveis para o seu comportamento futuro:
  • Uma afirmação maioritária das correntes xiitas favoráveis a uma forte influência do poder religioso na condução dos assuntos do Estado, mesmo que numa forma diferente do regime islâmico clerical do Irão (tendo em conta as diferenças entre as escolas religiosas xiitas de Najaf e de Oum);
  • Uma fragmentação política xiita, com a emergência gradual de sectores defensores de uma maior independência do poder político face ao poder religioso, uma vez consagradas na constituição referências fundamentais do Islão, e garantida a autonomia e o poder de crítica das autoridades religiosas. Iremos partir do princípio de que os sunitas, ao constituírem a minoria que perdeu irremediavelmente o poder, serão muito significativos no seu seio os sectores que optem pela acção armada e pelo terrorismo, quer contra o poder dos EUA, quer contra o nascente poder xiita. Mas ir-se-á admitir que os outros sectores sunitas podem assumir dois comportamentos distintos:
  • Juntarem-se a uma facção dos xiitas na defesa política de um Iraque islâmico e anti-americano, numa coligação apadrinhada por uma crescente aproximação entre a Arábia Saudita e o Irão;
  • Apostarem na solução monárquica, na base de uma união entre o Iraque e a Jordânia – igualmente sunita – defendendo uma restauração da dinastia hachemita (1) sob a forma de uma monarquia constitucional, com poderes limitados para o soberano, entendido, no entanto, como garante da convivência entre as várias secções da sociedade iraquiana. Este conjunto de configurações podem combinar-se de inúmeras formas, umas mais plausíveis do que outras. As combinações que forem retidas são a matéria-prima para eventual elaboração de cenários, tarefa esta que excede as ambições deste texto. Tal não impede que se comecem a explorar combinações que nos permitam alargar o a nossa capacidade de antecipar evoluções no Médio Oriente. Tal é o que iremos realizar seguidamente, explorando uma combinação que hoje aparece como das menos plausíveis, mas que talvez seja das mais ricas para compreender o potencial revolucionário da transformação em curso no Iraque, para a evolução do Médio Oriente no seu conjunto.

 

O Iraque no Médio Oriente – pensando o impensável

Vamos sucessivamente descrever os “Aspectos Internos” do Iraque que caracterizariam a combinatória de configurações escolhidas, situando posteriormente a “Posição dos Actores Regionais” – Arábia Saudita e Irão – face à dinâmica interna que se descreveu, para finalmente explorar os “Impactos Possíveis no Médio Oriente” de uma evolução no Iraque como a que se aponta a seguir.

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Arranjos internos

Vejamos a seguinte combinação de comportamentos por parte dos três actores que referimos:

  • Os curdos – assumir-se-iam como aliados principais dos EUA no país e defenderiam um Iraque democrático, federal e não islâmico; a sua zona de influência estender-se-ia a Kirkuk e à bacia petrolífera do Norte iraquiano, aceitando o envolvimento de entidades turcas na exploração desta bacia; a presença militar americana seria garante do compromisso curdo com a integridade territorial do Iraque; uma presença militar dos EUA no Curdistão constituiria simultaneamente um factor de dissuasão de acções contra Israel por parte da Síria;
  • Os xiitas – não obstante serem maioritários, os xiitas não iriam aparecer unidos na cena política do Iraque; o actual regime do Irão faria tudo para liderar uma forte corrente islâmica no seio dos xiitas, defensora de um Estado islâmico de modelo iraniano, enquanto os restantes se dividiriam por várias forças políticas; mais ou menos influenciadas pelo alto clero da escola de Najaf, ela também dividida; no essencial, essas forças perceberiam a oportunidade histórica que representava a ocupação militar anglo-americana para se libertarem dos restos do regime baathista e dos extremistas sunitas. No seu conjunto, estas forças moderadas defenderiam um nacionalismo iraquiano, distinto do tradicional nacionalismo pró-árabe e anti-americano. Exigiriam sempre uma forte influência nas futuras forças armadas do país.
  • Os sunitas – na sua maioria não seguiriam a aliança entre sectores extremistas – dos restos do poder baathista à Al-Qaeda; após um período de hesitações e de divisões, ganharia crescente apoio um partido defensor de uma união com a Jordânia e da restauração hachemita sob a forma de uma monarquia constitucional, como a melhor forma de obterem protecção, sem hegemonia. O resultado da interacção destes comportamentos seria a formação de uma União Iraque/Jordânia; uma restauração da monarquia no Iraque com a dinastia hachemita, na figura do actual rei da Jordânia, na base de uma constituição que reforçasse os poderes do parlamento e consagrasse uma estrutura federal para a União. A estabilidade futura do Iraque, em termos parlamentares, dependeria das relações entre os partidos políticos curdos e xiitas. Uma restauração hachemita numa união Iraque/Jordânia teria que resolver, entre outros, um problema espinhoso: o das forças armadas. E a solução poderia ser encontrada na coexistência de duas forças militares: uma guarda nacional – constituída a partir do actual exército jordano e que assumisse uma dupla função – defesa da continuidade do regime monárquico e contribuição para a defesa do território face aos países vizinhos hostis. Um exército regular – numeroso, bem equipado e sob controlo xiita e curdo que assumisse uma dupla função – defesa da integridade do território e contribuição para a defesa do território face aos países vizinhos hostis.

 

Posição dos actores regionais  

Uma evolução desta natureza, que consagraria uma convergência entre curdos, sectores xiitas moderados e sunitas, em torno de uma restauração monárquica, seria a solução que mais desagradaria a dois actores regionais de peso. A família real da Arábia Saudita opor-se-ia por três razões: porque a Casa de Saud é a inimiga histórica dos hachemitas, aos quais conquistaram, nos anos 20, o Hedjaz e os lugares santos de Meca e Medina, base da sua actual autoridade no mundo islâmico. Porque em termos religiosos xiitas e whabitas – a corrente religiosa dominante na Arábia Saudita, e com a qual os Saud têm uma aliança desde o séc. XVIII – são os maiores adversários no seio do mundo islâmico; um crescimento da influência xiita no mundo árabe reforçaria as correntes mais radicais do whabismo, exactamente as que estão ideologicamente mais próximas da Al-Qaeda. Porque em termos políticos um reforço dos xiitas no Iraque não deixaria de ter consequências no comportamento dos xiitas da Arábia Saudita, que “por acaso” se concentram na Província Oriental, a província petrolífera do reino.

A liderança religiosa da República Islâmica do Irão opor-se-ia frontalmente àquela solução por três outras razões:

  • Porque um Iraque democrático, em que os xiitas se tornariam a peça central do poder político, seria acompanhado, em termos religiosos, pela recuperação da influência, no seio do mundo xiita, da escola religiosa de Najaf, no Iraque, tradicionalmente oposta à detenção do poder político pelas autoridades religiosas (em contraste com as posições impostas no Irão pelo aiatola Khomeiny);
  • Porque um Iraque democrático, funcionando com uma Constituição inspirada no Islão, mas deixando um largo espaço de manobra à actuação do poder político, atrairia irresistivelmente a maioria da população jovem do Irão e agravaria em extremo as tensões políticas já existentes no país;
  • Porque uma restauração monárquica no Iraque, aceite pelas correntes moderadas dos xiitas, reforçaria aqueles que no Irão pretendem o derrube do regime islâmico e a restauração dos Pahlevi. Arábia Saudita e Irão estão do mesmo lado na oposição a uma estabilização do Iraque que, dando poder aos xiitas, inaugurasse uma época de democracia e tolerância. Mas essa convergência tem limites. O Irão decidiu obter a arma nuclear, na ilusão de com ela invulnerabilizar o regime face ao exterior, mas, ao fazê-lo, desequilibrou as relações de força na região em desfavor da Arábia Saudita.

 

Impactos possíveis no Médio Oriente

Por sua vez, uma restauração hachemita, numa união Iraque/Jordânia, poderia ser estabilizadora do Médio Oriente se permitisse colocar a questão israelo-palestiniana em termos radicalmente distintos, fora do quadro do actual “Roteiro para a Paz”. E podê-lo-ia? Consideremos os seguintes elementos adicionais à visão que se tem vindo a apresentar:

  • O novo rei hachemita do Iraque/Jordânia proporia uma partição da Jordânia, integrando na união com o Iraque a faixa oriental, central e meridional da actual Jordânia, até ao porto de Acaba, oferecendo aos palestinianos a zona mais densamente povoada, incluindo a capital actual, Amã, onde se concentra o maior número de palestinianos no Médio Oriente.
  • Com base nesta proposta os EUA, avançariam com a proposta da constituição de um Estado que permitisse reunir a maioria dos palestinianos, com capital em Amã, constituído pela parte urbana da actual Jordânia, por parte da Cisjordânia, a norte de Jerusalém, e pela faixa de Gaza; Jerusalém seria reconhecida como capital de Israel, e os lugares santos do Islão em Jerusalém seriam território da coroa hachemita. Seria criado um fundo internacional para financiar a instalação nesse novo Estado dos palestinianos refugiados noutros territórios.
  • Os montes Golã permaneceriam anexados por Israel, porque a sua importância militar cresceria com esta nova configuração de Estados na região. O mapa intitulado “E se o Estado Palestiniano tivesse outra configuração?” ilustra o que poderia ser o novo Estado palestiniano e a outra figura, a configuração de Estados no Médio Oriente daí decorrente.

    __________
    1 A dinastia hachemita governa actualmente a Jordânia e outro ramo já governou o Iraque, desde a sua fundação até 1958; os hachemitas foram durante séculos (de 1201 a 1925) os protectores dos lugares santos de Meca e Medina, situados no Hedjaz, de que foram expulsos pelo fundador da actual Arábia Saudita. Os hachemitas descendem da tribo árabe dos Quarysh, onde nasceu Maomé. Os hachemitas são descendentes directos de Maomé através de sua filha Fátima e do marido desta – Ali-bin Abi Talib – o quarto califa do Islão e o ponto de referência dos xiitas. Ali e Fátima tiveram dois filhos – Al-Hassan e Al-Hussein; os descendentes directos do filho mais velho Hassan são conhecidos como “Sharifs”, enquanto os descendentes de Hussein são designados por “Sayyids”; os hachemitas descendem de Ali e Fátima pela linhagem “sharifiana”.

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    * José Manuel Félix Ribeiro

    Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Subdirector Geral do Departamento de Planeamento e Prospectiva.

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