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Janus 2004



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Os Estados Unidos no futuro da Europa (I)

Álvaro Vasconcelos *

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Os EUA devem esclarecer a sua posição sobre a integração europeia: esta necessidade tornou-se óbvia no momento da intervenção militar no Iraque, coincidente com os trabalhos da Convenção Constituinte Europeia. Esta intervenção tornou também óbvia a necessidade da concertação europeia em questões de peso a nível mundial, sublinhando por outro lado a necessidade de criar convergências de interesses entre a UE e os EUA, como alternativa à actual situação de “desordem mundial”.

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O lugar dos Estados Unidos no futuro da Europa foi deixado vago durante grande parte dos trabalhos da Convenção Europeia. A presença dos Estados Unidos no presente e no futuro da Europa acabou, porém, por irromper com irreprimível fragor quando os trabalhos da Convenção coincidiram com a intervenção militar no Iraque.

As divisões que provocou entre os europeus confirmam que é vital que os Estados Unidos esclareçam a sua posição sobre a integração europeia.

A guerra contra o Iraque também mostrou à sociedade quão imperiosa é a unidade europeia, se a União e os países que a compõem quiserem influenciar e moldar as relações transatlânticas e a cena mundial. Seja qual for a opção que se tome – o “envolvimento crítico” ou a oposição, quando este não seja possível –, estará condenada ao fracasso se não assentar numa convergência europeia suficientemente sólida para que a União possa funcionar como um bloco nas relações euro-americanas.

Só uma Europa unida pode pesar em Washington e contribuir para “multilateralizar” os Estados Unidos. Mas não basta que a Europa se una: é necessário que o faça com base numa política coerente com os seus valores e princípios, para que a sua influência se radique no apoio firme dos seus cidadãos.

 

Democracia e paz, de Portugal à Rússia

Tal é o extraordinário desígnio europeu, a ponto de concretizar-se. No centro deste feito maior, está a União Europeia e a sua política de democracia e paz pela inclusão. A coesão da União Europeia e o carácter supranacional de muitas das suas instituições são essenciais ao sucesso de tal projecto. Os passos que a União Europeia deu desde Maastricht até à actual elaboração de uma Constituição no sentido de se afirmar como um actor político mundial visam permitir não só o sucesso da integração no continente, mas também alargar o método de inclusão aos seus vizinhos do sul e do leste e pesar na resolução dos grandes problemas mundiais com um modelo de governação específico assente na multilateralidade.

O compromisso em que pode apoiar-se uma relação sólida e sã com os Estados Unidos não pode ser o de um atlantismo ideológico. O mundo do século XXI é muito mais complexo, e a convergência de interesses entre europeus e americanos já não é automática: tem de ser construída em função das grandes questões da ordem internacional. Questões cruciais a que há que dar resposta são, por exemplo: Qual o papel que os Estados Unidos desempenham, directa ou indirectamente, na integração europeia, e como podem europeus e americanos contribuir para a paz e a democracia a nível mundial? Que novo consenso transatlântico é possível criar? Como desenhar uma alternativa à actual situação de desordem mundial?

É perturbante constatar que sobre a maioria destas questões essenciais não parece haver uma resposta comum. E no entanto, sem uma clarificação das relações euro-americanas, não só a desordem mundial continuará a reinar, como a própria ordem europeia ficará sujeita a variações intoleráveis. Mas será que a divergência é estrutural, como escrevem alguns, de ambos os lados do oceano, correspondendo à diferença de poder, ou é conjuntural e corresponde a opções políticas determinadas, que a experiência das consequências nefastas, inclusive da fractura transatlântica, ou a própria alternância democrática poderão alterar?

 

Os Estados Unidos e a integração europeia

Os Estados Unidos não são alheios, bem pelo contrário, aos sucessos da integração europeia, que impulsionaram desde o pós-guerra. O plano Marshall, nunca é de mais relembrá-lo, condicionou a ajuda pós-conflito à cooperação intereuropeia. Os incidentes de percurso não puseram em causa o interesse compartilhado na consolidação da democracia e das estruturas supranacionais na Europa. As motivações estratégicas americanas eram convergentes com as europeias: impedir o regresso às guerras mundiais com epicentro na conflitualidade franco-alemã, conter a União Soviética e, com esse objectivo em mente, impedir a vitória dos partidos comunistas nos países da Europa Ocidental.

Com o fim da bipolaridade, não se alterou o objectivo da União de contribuir, através da inclusão, para a consolidação da democracia em todo o continente. O alargamento aos países da Europa Central e de Leste foi por isso apoiado com entusiasmo pela administração de Bush pai. Naquilo que era essencial para que a reunificação alemã, que foi o primeiro alargamento a leste, não pusesse em causa a continuação do processo europeu, o governo americano, com Bush e depois com Clinton, optou por apoiar os passos decididos, designadamente, por impulso de François Mitterrand e Helmut Kohl, como foi o caso da moeda única, apesar de esta não só solidificar as relações intereuropeias, como consolidar uma potência económica.

Mais hesitante foi, nesse mesmo período, o apoio americano aos passos essenciais dados desde Maastricht para a criação da união política. E a verdade é que, já durante a administração Clinton, os americanos manifestaram alguma oposição ao projecto de uma defesa europeia autónoma, ou seja, à afirmação da União como uma potência político-militar, o que, como tem sido justamente argumentado, é fundamental para o futuro da coesão europeia.

É grande, hoje, a perplexidade europeia sobre qual é, de facto, a atitude da actual administração, sobretudo dos seus sectores neoconsevadores, por ora dominantes, em relação à integração europeia: é ela ainda considerada essencial para a paz mundial e para os interesses americanos ou vista, pelo contrário, como a emergência de uma potência rival que é preciso conter e que dividir a União Europeia pode ser considerado estrategicamente útil para impor uma determinada política? Durante a crise do Iraque, ficou célebre a afirmação do secretário da Defesa americano, Donald Rumsfeld, que, dirigindo-se aos jornalistas declarou:”Vocês estão a pensar na Europa como sendo a Alemanha e a França. Eu não... Eu penso que são a velha Europa” (1). Esta posição pode ser contrastada com a do Presidente Kennedy há quarenta anos, para quem o verdadeiro milagre alemão tinha sido a “ rejeição do passado e aceitar o futuro” – a reconciliação com a França, a construção europeia e a participação na NATO (2).

 

Qual o impacto do alargamento nas relações transatlânticas?

O alargamento da União continua a ser a forma essencial pela qual a Europa contribui para a segurança mundial, mas o seu sucesso não reside apenas no simples facto de aceitar como membros os candidatos do continente; é preciso que o alargamento não contribua para enfraquecer a coesão da União. As Guerras Balcânicas, nos anos 90, o recrudescimento do nacionalismo e as formas extremas e bárbaras que tomou nalguns países do continente mostram como a democracia e a integração continental não são o “fim da História” e que o retrocesso é possível a cada passo.

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O segredo do método europeu reside em criar fortes laços de interdependência e solidariedade entre os Estados membros. Numa União a 25 e no prazo de alguns anos a mais de trinta, o perigo é o da dissolução e mesmo da ruptura europeia. O projecto de Constituição europeia visa exactamente permitir os alargamentos, fazendo o aprofundamento necessário, ou pelo menos o possível, para que a expansão progressiva não implique a dissolução da União. Se a Constituição não der as respostas certas, políticas e institucionais, a esta questão, a tendência será para o fraccionamento da construção europeia em círculos diversos de geometria variável e, eventualmente, para a criação de uma vanguarda europeia, o que não deixaria de pesar nas relações transatlânticas.

A suspeita europeia é que os Estados Unidos vêem com simpatia os alargamentos porque, além de contribuírem para a estabilidade do continente, os consideram inofensivos do ponto de vista da afirmação do poder americano. Escreve Zbigniew Brzezinski – que não se coíbe de criticar a política da actual administração – que “uma Europa alargada aumentará a esfera de influência americana sem criar simultaneamente uma Europa tão integrada politicamente que possa contestar os Estados Unidos em questões de importância geopolítica, particularmente no Médio Oriente” (3).

Os futuros membros de Centro e Leste têm reafirmado a importância que atribuem à NATO e às relações transatlânticas como forma de garantir a sua segurança. Esta posição foi de novo reafirmada durante a crise europeia e transatlântica, a propósito da guerra do Iraque, com a carta de apoio às posições inglesas assinada por todos os países do alargamento, com excepção de Chipre, Malta e da Turquia. Esta sensibilidade dos antigos membros do Pacto de Varsóvia é explicável pela importância que ainda atribuem às questões de segurança, resultante da experiência radicalmente diferente que viveram no pós-guerra. Mais que a conflitualidade intereuropeia e os perigos do nacionalismo, preocupa-os a garantia da sua independência há pouco reconquistada. Estas preocupações aproximam-nos do Reino Unido nas questões da segurança internacional. Mas será que estes países irão ter necessariamente um impacto negativo sobre o desenvolvimento de uma política europeia de defesa? Nada de menos seguro. É que o seu pró-atlantismo é acompanhado por um desejo de participação na segurança que pode e deve ser canalizado para a construção das estruturas da defesa europeia e para a elaboração de uma política comum neste domínio.

Pretender criar clivagens simplistas entre uma pretensa “nova Europa” onde se incluem os países do alargamento e a “velha Europa” em nada contribui para garantir aos novos membros um lugar central dentro da União, onde os seus pontos de vista podem ser ouvidos e contar igualmente para a formulação de pontos de vista comuns nomeadamente sobre as relações transatlânticas.

 

Informação Complemementar

Os EUA e o processo de integração europeia

Mar 1947 – O Presidente Harry S. Truman apela ao Congresso para que aprove a concessão de ajuda militar e económica à Grécia e Turquia. “Os Estados Unidos da América devem defender todos os povos livres que resistem contra ataques vindos de minorias armadas ou de nações agressivas” (Doutrina Truman).

1947-48 – Introdução do Plano Marshall. Cerca de 12 mil milhões de dólares investidos em 16 países da Europa Ocidental, divididos entre intervenção social (construção de escolas, reconstrução do parque habitacional) e industrial (reconstrução de grande parte do tecido produtivo europeu). O envio de ajuda financeira norte-americana estava então condicionado a um maior esforço de integração por parte das várias nações europeias envolvidas no programa. Criação da OECE (Organização Europeia de Cooperação Económica) em Abril de 1948, como forma de ajudar a gerir o Programa de Recuperação Europeu financiado pelos EUA.

Abr 1949 Criação da NATO.

Ago 1954 – A Assembleia Nacional Francesa rejeita o projecto da CED (Comunidade Europeia de Defesa). Apesar de ter sido, na sua génese, uma iniciativa eminentemente francesa, Paris passou a recear não só as posições de carácter supranacional que tomavam então conta da CED, mas também o crescente apoio dado pela Administração Eisenhower à ideia da recuperação e plena integração das forças militares alemãs no contexto de uma Europa unida.  

Jul 1962 – Declaração do Presidente John F. Kennedy em Filadélfia, onde defende o aprofundamento da relação transatlântica e vinca a importância da existência de uma Europa verdadeiramente unida. “ (...) Estaremos disponíveis para discutir com uma Europa unida a criação de uma verdadeira parceria atlântica, mutuamente benéfica, entre a nova união que agora emerge na Europa e a velha união americana, aqui fundada há 175 anos. Tudo isto não será alcançado apenas num ano, mas quero que o mundo saiba que é esse o nosso objectivo.”

Jun 1963 – Na Igreja de São Paulo, em Frankfurt, novo discurso do Presidente Kennedy relativo à importância das relações transatlânticas e também à reconciliação franco-alemã e consequente fortalecimento económico-militar da Europa Ocidental. “O verdadeiro milagre alemão foi a vossa rejeição do passado e o aceitar do futuro – a vossa reconciliação com a França, a vossa participação na construção europeia, o vosso importante papel na NATO e o vosso crescente apoio para a construção de um mundo melhor”.

1977-1983 – Crise dos Euromísseis. Durante a década de 70, a União Soviética começa a instalar mísseis nucleares de médio alcance nos seus países-satélites do Leste Europeu. A resposta norte-americana salda-se na colocação de mísseis Pershing e Cruise em território da Europa Ocidental.

Mai 1989 – O Presidente norte-americano George Bush declara num discurso na Alemanha Ocidental o seu “desejo de ajudar a Europa a tornar-se num todo livre e unificado”, dando claramente a entender que apoiaria incondicionalmente uma futura reunificação alemã. A importância de uma Alemanha unida e economicamente saudável era fundamental para a ambição americana de estender a sua influência sobre a Europa Central e de Leste, historicamente conhecida como o “quintal” alemão na Europa. O apoio norte-americano à reunificação alemã matou também, à partida, as hesitações europeias sobre essa mesma questão.

1992-1993 – Assinatura do Tratado da UE em Maastricht (Fevereiro de 1992); entrada em vigor do Tratado de Maastricht (1 de Novembro de 1993); criação da política externa e de segurança comum (PESC). A questão da criação de uma identidade de defesa europeia própria foi aparentemente bem acolhida pela administração do Presidente norte-americano Bill Clinton, que via em tal medida a possibilidade de libertar as forças militares americanas para acções fora do continente europeu, e procurava que a UE assumisse uma maior responsabilidade na gestão da guerra nos territórios da ex-Jugoslávia.

Out 1997 – Assinatura do Tratado de Amesterdão (em vigor a partir de 1999). Nomeação de um alto representante para a PESC (cargo assumido por Javier Solana).

Jan 2002 – Entrada em circulação do euro nos países aderentes (de fora ficaram Reino Unido, Dinamarca e Suécia). A comunidade política e económica norte-americana reage ao acontecimento com algum desinteresse, e em certos sectores, mesmo alguma hostilidade. Martin Feldstein, antigo presidente do Council of Economic Advisors, chega mesmo a afirmar que “o sucesso do lançamento do euro é algo a notar, mas não a celebrar”.

Fev 2003 – Entrada em vigor do Tratado de Nice. Aprofundamento legislativo da PESC. A UE dota-se também de uma política europeia de segurança e defesa (PESD). Adopção progressiva de uma política de defesa comum, o que vem a suscitar algumas reservas por parte de certos sectores políticos norte-americanos. (Tiago Marques)

__________
1 Secretary Rumsfeld, Briefs at the Foreign Press Center, 22 de Janeiro de 2003.
2 Kennedy, John F., Discurso na Paulskirche em Frankfurt, 24 de Agosto de 1963.
3 Brzezinski, Zbigniew, “A Geostrategy for Asia”, Foreign Affairs, September/October 1997.

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* Álvaro Vasconcelos

Director do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais.

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