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As reformas e o desenvolvimento dos sistemas de acesso ao direito e à justiça estão em estreita relação com a consolidação do Welfare State. Assistiu-se nas últimas décadas a um desenvolvimento dos direitos, com a afirmação, para além dos direitos cívicos e políticos, dos direitos sociais, económicos e culturais (1) e, ainda, dos novos direitos, como a defesa do ambiente ou dos consumidores. Os obstáculos ao acesso efectivo à justiça por parte das classes populares são de três tipos: económicos, sociais e culturais. Garantir o acesso ao direito é assegurar que os cidadãos conhecem os seus direitos, que não se resignam quando estes são lesados e que têm condições de vencer os custos de oportunidade e as barreiras económicas para aceder livremente à entidade que consideram mais adequada para a resolução do litígio – seja uma terceira parte da comunidade, uma instância formal não judicial ou os tribunais judiciais. Partindo da hipótese geral de que o acesso ao direito depende da acção positiva da sociedade e do Estado, é nosso propósito analisar os meios de facilitação do acesso dos cidadãos ao direito e à justiça.
A UE e o acesso ao direito e à justiça O acesso ao direito e à justiça é um direito humano consagrado nas principais cartas internacionais dos direitos humanos. Na Europa, o debate actual e as transformações dos sistemas de acesso ao direito e à justiça desenvolvem-se por impulso das instituições europeias, das reformas legais institucionais e dos movimentos sociais. A partir do Conselho Europeu de Tampere, em 1999, o acesso ao direito e à justiça autonomizou-se e foi considerado prioritário. O Livro Verde da Comissão Europeia sobre a assistência judiciária civil (2000) propôs a prestação de conselhos jurídicos gratuitos ou a baixo custo, a representação em tribunal por um advogado e a isenção parcial ou total de outras despesas. O Conselho da Europa debateu o acesso ao direito e à justiça na 23ª Conferência de Ministros da Justiça Europeus (Londres, 2000), na qual a qualidade da justiça e a relação custo-eficácia foram os temas dominantes. Entre as medidas preconizadas, destacam-se:
A UE publicou em 2002, o Livro Verde sobre os modos alternativos de resolução de litígios em matéria civil e comercial. A UE está, assim, a desenvolver esforços para facilitar o acesso à justiça, através da criação de um sistema de informação de fácil acesso, assegurado por uma rede de autoridades nacionais competentes. Em 2003 publicou uma Directiva, destinada a assegurar um nível adequado de apoio judiciário nos litígios transfronteiriços em matéria cível e comercial, fixando normas mínimas comuns de apoio judiciário para esses litígios.
O regime de acesso ao direito e à justiça em Portugal A evolução do acesso ao direito e aos tribunais nas últimas décadas passou por três rupturas: em 1970, com a consagração de um regime de assistência judiciária aos mais pobres; em 1987, com a entrada em vigor de um regime mais alargado de apoio judiciário (informação, consulta e patrocínio jurídico) e a atribuição à Ordem dos Advogados da nomeação de patronos; em 2000, com a desjudicialização do processo e da decisão de atribuição de apoio judiciário e a tentativa de dignificação do patrocínio oficioso. O instituto do acesso ao direito e aos tribunais compreende, a partir de 1998, a informação jurídica, a protecção jurídica e, dentro desta, a consulta jurídica e o apoio judiciário. O Estado, a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores são co-responsáveis pela implementação e funcionamento deste sistema. O regime foi alterado em 2000, passando a ser da competência dos serviços da Segurança Social a apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário. Pretendeu-se a qualificação do apoio judiciário, reforçando a igualdade de oportunidades e a libertação dos tribunais da excessiva carga administrativa, colocando a tramitação do processo a cargo de um serviço que dispõe de mais completas informações sobre o requerente.
Entre o Estado e a sociedade: a pluralidade de formas de acesso Na investigação que efectuámos (Pedroso, Trincão e Dias, 2002) encontrámos uma pluralidade de formas de acesso dos cidadãos ao direito e à justiça através de entidades, públicas e privadas, que actuam dentro e fora do sistema judicial.
O Ministério Público e os Gabinetes de Consulta Jurídica A actividade do Ministério Público é fundamental como facilitadora do acesso ao direito e à justiça, visto que tem como competências, para além da área penal – a sua principal área de intervenção – a defesa dos incapazes, incertos e ausentes, o exercício do patrocínio oficioso dos trabalhadores, dos menores e a defesa dos interesses colectivos e difusos. Os Gabinetes de Consulta Jurídica apareceram, na maioria dos casos, devido à iniciativa das delegações da Ordem dos Advogados. A maioria dos gabinetes funciona apenas alguns dias, em horários pouco adaptados aos ritmos dos cidadãos. Constata-se, a par de um aumento constante do seu número, um decréscimo das consultas jurídicas prestadas, pelo que podemos afirmar que a existência de alguns GCJ é meramente legal e aparente.
Outras entidades facilitadoras do acesso ao direito e à justiça Ao nível do Estado Local, analisámos a acção das juntas de freguesia dos concelhos de Lisboa e de Coimbra. As juntas de freguesia do concelho de Coimbra não disponibilizam serviços de consulta jurídica; porém, a maioria das juntas de freguesia do concelho de Lisboa afirmaram dispor desse serviço. O Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho efectuou na última década, em média, 215.000 atendimentos gratuitos por ano. As consultas mais frequentes dizem respeito ao direito às férias, ao subsídio de férias, às remunerações, aos despedimentos e aos horários de trabalho. As organizações da sociedade apresentam diferentes desempenhos, em termos de prestação de serviços jurídicos, de acordo com a sua natureza e objectivos. Referimos, a título de exemplo, as associações empresariais, os sindicatos e a Associação de Apoio à Vítima. As associações empresariais e os sindicatos inquiridos prestam, na esmagadora maioria, serviços jurídicos aos seus associados, respectivamente 96,2% e 97,6%. Quanto à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), o número de solicitações registou um crescimento constante ao longo da última década, de 151 processos em 1991 para 9.476 em 2001. A defesa dos consumidores, para além do Estado (Instituto do Consumidor), apresenta diferentes respostas em termos de acesso ao direito e à justiça dos consumidores. A DECO é a maior associação a prestar apoio aos cidadãos. Os Centros de Arbitragem de Conflitos de Consumo resultam de parcerias entre as associações de consumidores, de comerciantes e das autarquias. Estes serviços jurídicos (da informação à resolução do litígio) são de grande utilidade, embora o seu número, diversidade temática e distribuição regional sejam ainda limitados. Os Centros de Informação Autárquica ao Consumidor funcionam nos Municípios. Estas estruturas encontram-se numa fase embrionária e pouco consolidada, apresentando, contudo, potencialidades de afirmação.
Conclusão Da análise efectuada resultaram as seguintes conclusões:
O desenvolvimento de um sistema integrado de acesso ao direito e à justiça não pode ignorar a acção destas entidades públicas e privadas, que funcionam como um facilitador da informação jurídica, da consulta jurídica e até da prevenção e resolução de litígios.
Informação Complementar As três vagas de reformas do sistema de acesso ao direito e à justiça Após o fim da Segunda Grande Guerra, assistimos a diversas transformações no sistema de acesso ao direito e à justiça (Pedroso, Trincão e Dias, 2002). A primeira grande mudança ocorreu na evolução das soluções caritativas para esquemas financiados pelo Estado. A inadequada caridade das profissões legais foi substituída por regimes de âmbito nacional, de espectro largo, financiados publicamente ou através de esquemas mistos. Enquanto os esquemas caritativos ajudavam só os cidadãos mais pobres para um pequeno número de casos matrimoniais e criminais, os novos esquemas de financiamento público e/ou mistos ofereciam um largo leque de serviços para os mais variados problemas legais dos cidadãos mais vulneráveis socialmente e, em algumas sociedades, também para os “não-pobres”. Estes regimes de acesso ao direito e à justiça recorriam, com frequência, aos serviços de advogados assalariados, em paralelo aos serviços jurídicos dos profissionais liberais (Cappelletti et al., 1978). Entre os anos cinquenta e oitenta do século XX, foram efectuadas reformas similares do regime jurídico e dos meios de acesso ao direito e à justiça no Reino Unido, Holanda, EUA, Canadá, Suécia e Austrália, enquanto, em outras sociedades, incluindo a França, se introduziram também reformas, ainda que mais limitadas. Reinava o optimismo, o que foi reforçado pelo grande estudo de Cappelletti et al. (1978), em que se identificam as três referidas vagas globais da reforma do acesso ao direito e à justiça, envolvendo, não só o apoio judiciário, mas também uma completa panóplia de instituições e de dispositivos pessoais e processuais usados nos processos e também para prevenir litígios nas sociedades modernas. Este sentido começou a inverter-se nos anos oitenta e noventa, quando os governos “perderam a fé” nos programas do Estado Providência e começaram a cortar nos orçamentos do acesso ao direito e à justiça (Regan et al., 1999). O declínio dos regimes do acesso ao direito e à justiça, neste período, está bem documentado na literatura sociojurídica (Goriely e Paterson, 1996). Apesar do crescimento da procura do direito e da justiça na maior parte das sociedades, os requisitos de elegibilidade e de acesso ao sistema de apoio legal tornaram-se mais restritivos e foi introduzida ou desenvolvida a obrigatoriedade das contribuições dos utentes para o pagamento parcial (ou total) do custo dos seus casos. As orientações políticas dos diversos governos foram no sentido de restringir o espectro de casos para os quais o apoio judiciário estava disponível, limitando-o progressivamente, nos países onde foi mais desenvolvido, aos casos criminais. Os critérios de elegibilidade, para se ter direito aos meios de acesso ao direito e à justiça, retomaram os esquemas caritativos anteriores à Segunda Guerra Mundial. A este pessimismo e declínio dos regimes e meios de acesso ao direito e à justiça, sucedeu, no final do século XX e início do século XXI, um discurso político e legislativo de desenvolvimento e de consolidação de todos os meios que permitam aos cidadãos aceder ao direito e à resolução de litígios, designadamente na Europa. Conselho da Europa. 2000. Medidas para uma boa relação custo-eficácia tomadas pelos Estados-membros para permitir uma melhor eficácia da justiça. 23ª Conferência de Ministros Europeus da Justiça (8 e 9 de Junho de 2000). Comité Europeu de Cooperação Jurídica/Comité Europeu para os Problemas Criminais. PATERSON A. A. e GORIELY T. (eds.). 1996. A Reader onResourcing Civil Justice. Oxford: Oxford University Press. PEDROSO, João. 2001. “A construção de uma justiça de proximidade: o caso dos Centros de Arbitragem de Conflitos de Consumo”. Revista Crítica de CiênciasSociais. 60. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 33-60. PEDROSO, João. 2002. Entre a União Europeia e a sociedade portuguesa: a protecção e a resolução dos litígios dos consumidores – o caso da arbitragem de conflitos de consumo em Portugal. Dissertação de Mestrado em Sociologia do Direito. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. 2002. O Acesso ao Direito e à Justiça: um direito fundamentalem questão. Coimbra: Centro de Estudos Sociais/ Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. REGAN, Francis et al.. 1999. The transformation of legal aid: comparative and historical studies. Oxford: University Press. SANTOS, Boaventura de Sousa; PEDROSO, João; MARQUES, Maria Manuel Leitão;FERREIRA, Pedro. 1996. Os tribunaisnas sociedades contemporâneas: o caso português. Porto: Afrontamento/CES/CEJ.
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