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Janus 2004



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A evolução da defesa da concorrência no mercado interno

Ana Roque *

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A política de concorrência tem sido uma das principais frentes de batalha da UE, quer através da produção de legislação comunitária, quer através da acção da Comissão. Desde a fase final de introdução do euro, a 1 de Janeiro de 2002, e tendo em conta o alargamento a leste, a aplicação das regras em matéria de concorrência tornou-se essencial para o efectivo funcionamento do mercado único. Os pontos sobre os quais se focaram as atenções das instituições comunitárias foram a modernização das regras relativas a acordos, decisões de associação, concentrações e auxílios estatais.

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A política de concorrência tem sido um dos principais campos de actuação da União Europeia (UE), quer através da produção legislativa comunitária, quer mediante a actuação da Comissão. Esta intervenção é verificável em qualquer dos domínios estruturais da defesa da concorrência (práticas concertadas lesivas do bom funcionamento do mercado, controlo das operações de concentração e filtragem dos auxílios do Estado).

Após a fase final de introdução do euro, iniciada em 1 de Janeiro de 2002, e tendo em conta o alargamento em grande escala da UE, que toma corpo efectivo a partir de 2004, a aplicação das regras em matéria de concorrência tornou-se a linha essencial de intervenção da Comissão face à necessidade incontornável de garantir o bom funcionamento do mercado único.

A modernização das regras em matéria de acordos, decisões de associação e práticas concertadas entre empresas, concentrações e auxílios estatais tornou-se indispensável, dada a rápida evolução de uma economia aberta e sujeita a um registo global. Nos dois últimos anos avaliados pela Comissão (2001 e 2002 – ver tabela intitulada “Matérias tratadas em sede de defesa da concorrência”), o domínio da concentração veio a tornar-se o mais saliente, apresentando um grau crescente de complexidade, ditado em grande parte pela internacionalização; o teor plurijurisdicional trazido pelas concentrações de dimensão mundial obriga a novas formas de cooperação internacional, de que é exemplo a recente Rede Internacional de Concorrência (International CompetitionNetwork – ICN) (1). A nível intracomunitário, a Comissão tem procurado ter em conta as novas realidades, revendo o Regulamento das Concentrações da Comunidade Europeia (2).

 

O novo regulamento CE

Contudo, no contexto da política de concorrência comunitária, a grande novidade consiste na modernização das regras de aplicação dos artigos 81º e 82º do Tratado CE (3), sobre práticas concertadas, decisões de associação e acordos entre empresas, e abusos de posição dominante, respectivamente, iniciada em 27 de Setembro de 2000, quando a Comissão adoptou uma proposta de regulamento que introduz um novo sistema de aplicação daqueles preceitos, substituindo o Regulamento n.º 17 de 1962, bem como as regras processuais contidas nos

Regulamentos (CEE) nºs 1017/68, 4056/86 e 3975/87, relativos aos transportes (4).

A modificação em causa consiste na transição de um regime de monopólio da Comissão face à aplicação do n.º 3 do artigo 81.º para um sistema de excepção legal; em bom rigor, pode dizer-se que, de um monopólio de isenção, se passa para um sistema de aplicação directa da excepção, nos termos da qual todos os acordos que não violem o n.º 1 do artigo 81.º ou que preencham as condições do n.º 3 do mesmo preceito legal são automaticamente considerados lícitos, enquanto os acordos que infrinjam o n.º1 do artigo 81.º e que não preencham as condições do citado n.º3 são automaticamente considerados ilícitos. A proposta do novo regulamento foi elaborada na sequência do livro branco da Comissão sobre a modernização das regras de aplicação dos artigos 81.º e 82.º (ex-artigos 85.º e 86.º) do Tratado CE, que permitiu lançar uma discussão ampla e aprofundada, na qual revestiram particular relevo as opiniões manifestadas pelo Parlamento Europeu e pelo Comité Económico e Social (5).

Em virtude deste novo regime, as autoridades nacionais encontram-se face a um reforço significativo das suas competências (6). O essencial trazido pelo novo regulamento é, no fundo, a aplicabilidade directa do artigo 81.º no seu conjunto, tendo por adquirido que o sistema de notificação e autorização previsto no Regulamento n.º 17 não revestia a eficácia desejável para a protecção da concorrência na UE. O modo de efectuar a transição resulta dos artigos 1.º e 6.º do novo regulamento: o artigo 1.º estabelece o princípio da aplicabilidade directa do artigo 81º no seu conjunto e o artigo 6.º confere poderes aos tribunais nacionais para aplicarem a norma contida no n.º3 do artigo 81.º sempre que for invocado o n.º1 do mesmo preceito.

As vantagens da mudança de regime são sobretudo as decorrentes de um número maior de entidades se encontrar envolvido na aplicação dos artigos 81.º e 82.º do Tratado CE, uma vez que, além da Comissão, as autoridades nacionais de concorrência e os tribunais nacionais também o podem fazer na íntegra.

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A evolução interna

No caso português, esta mudança surge em plena conformidade com o perfil funcional de que é dotada a nova Autoridade da Concorrência (AC) (7), pessoa colectiva de direito público de carácter institucional criada pelo Decreto-Lei n.º10/2003, de 18 de Janeiro; nascida para garantir a credibilidade plena e desgovernamentalizada da regulação neste domínio estruturante do próprio mercado, a forma jurídica escolhida pelo legislador, que sublinha a independência da entidade, permite-lhe estar à altura da mutação em curso na legislação comunitária, a qual exige “uma autoridade da concorrência que seja efectivamente capaz de promover a aplicação das normas comunitárias em vigor e de se inserir com eficácia na rede de reguladores da concorrência que, sob a égide da Comissão Europeia, se estenderá a todos os Estados membros da Comunidade” (8).

 

Informação Complementar

Novo regime interno de defesa da concorrência (Lei Nº 18/2003, de 11 de Junho)

  • O âmbito de aplicação (artigos 1.º e 3.º): todas as actividades económicas exercidas em qualquer dos três sectores de propriedade dos meios de produção (público, privado e cooperativo), com carácter permanente ou ocasional, incluindo as empresas de serviços de interesse económico geral;
  • a noção de empresa (artigo 2.º): qualquer entidade que exerça uma actividade económica que consista na oferta de bens ou serviços num determinado mercado, independentemente do seu estatuto jurídico e forma de funcionamento;
  • as práticas proibidas (artigos 4.º, 6.º e 7.º): são proibidos os acordos e as práticas concertadas que tenham por objecto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional, o abuso de posição dominante e o abuso de dependência económica;
  • a justificação das práticas proibidas (artigo 5.º): a Autoridade da Concorrência pode considerar justificadas as práticas proibidas no artigo 4.º, desde que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição de bens e serviços ou para promover o desenvolvimento técnico ou económico, desde que, cumulativamente: a) reservem aos utilizadores uma parte equitativa do benefício; b) não imponham restrições além das estritamente indispensáveis; c) não impliquem a eliminação da concorrência numa parte substancial do mercado dos bens ou serviços em causa;
  • a definição de operação de concentração de empresas (artigo 8.º): a) fusão de duas ou mais empresas anteriormente independentes; b) no caso de uma ou mais pessoas singulares que já detenham o controlo de pelo menos uma empresa ou de uma ou mais empresas adquirirem, directa ou indirectamente, o controlo da totalidade ou de partes de uma ou de várias outras empresas;
  • não é tida como concentração (artigo 8.º, n.º 4): a) a aquisição de participações ou de activos em caso de falência ou recuperação de empresas; b) a aquisição de participações com funções de garantia; c) a aquisição por instituições de crédito de participações em empresas não financeiras, quando não abrangida pela proibição contida no artigo 101.º do RGICSF;
  • a notificação prévia (artigo 9.º): dirigida à Autoridade da Concorrência, sempre que se verifique uma das seguintes situações: a) criação de uma quota de mercado igual ou superior a 30% no mercado nacional de um bem ou serviço, ou numa parte substancial deste; b) realização pelos participantes de um volume de negócios superior a 150 milhões de euros (em Portugal, no último exercício);
  • o procedimento em matéria de concentrações (artigos 30.º e seguintes): rege-se subsidiariamente pelo CPA
  • os auxílios do Estado (artigo 13.º): não devem restringir ou afectar a concorrência, não se considerando auxílios as indemnizações compensatórias da prestação de serviço público;
  • a Autoridade da Concorrência (artigo 17.º): tem poderes sancionatórios que a colocam no mesmo plano dos órgãos de polícia criminal;
  • recurso de decisões da Autoridade (artigo 50.º): das decisões que apliquem coimas ou outras sanções cabe recurso para o Tribunal de Comércio de Lisboa, com efeito suspensivo;
  • recurso das decisões do TCL (artigo 52.º): das decisões do TCL cabe recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que decide em última instância;
  • revogação (artigo 60.º): é revogado o DL n.º 371/93, de 29 de Outubro.

 

Três linhas de força do novo regulamento de aplicação dos artigos 81º e 82º do Tratado CE.

Aumento da eficiência na aplicação em causa

  • adaptação dos poderes atribuídos aos funcionários da Comissão no âmbito da realização de inspecções
  • codificação das regras que regulam as decisões judiciais a nível nacional, clarificando o âmbito de intervenção dos tribunais nacionais
  • adaptação das coimas aplicáveis em caso de infracção através de um sistema baseado nos dados relativos ao volume de negócios

 

Aumento da igualdade das condições de concorrência no mercado interno

  • novo artigo 3.º, com base no n.º2, alínea e), do artigo 83.º do Tratado CE, com vista a regulamentar a relação entre os artigos 81.º e 82.º e o direito da concorrência a nível nacional
  • sempre que um acordo ou prática for susceptível de afectar o comércio entre os Estados membros, é exclusivamente aplicável o direito comunitário da concorrência

 

Grau adequado de segurança jurídica para as empresas

  • eliminação de obstáculos burocráticos
  • os acordos e decisões que preencham as condições previstas no n.º3 do artigo 81.º são válidos e aplicáveis ab initio, sem que seja necessária qualquer decisão administrativa
  • as empresas dispõem de uma presunção positiva quanto à aplicabilidade de tais acordos ou decisões, no quadro do direito civil

 

A competência das autoridades dos Estados-membros responsáveis em matéria de concorrência para aplicar, em processos individuais, os artigos 81º e 82º do Tratado, pode gerar como decisão

  • exigir que seja posto termo à infracção
  • ordenar medidas provisórias
  • aceitar compromissos
  • aplicar coimas, sanções pecuniárias compulsórias ou qualquer outra sanção prevista pelo respectivo direito nacional
  • caso não estejam preenchidas as condições de proibição, não intervir.

 

Traços caracterizadores da nova autoridade da concorrência nacional

  • independência, traduzida em especial nos dois vectores seguintes:
  • estatuto dos membros (inamovibilidade, salvo falta grave; mandato de 5 anos; desinserção da hierarquia administrativa)
  • autonomia administrativa, financeira e patrimonial
  • jurisdição alargada a todos os sectores da actividade económica
  • poderes de investigação, instrutórios e sancionatórios de práticas anticoncorrenciais
  • poderes de aprovação das operações de concentração (articulados, em áreas dotadas de regulação específica, com as respectivas autoridades reguladoras sectoriais (ver tabela respectiva)


__________
1 Ver http://www.internationalcompetitionnetwork.org; ver também http://www.ftc.gov/opa/2001/10/icn.htm.
2 Regulamento (CEE) n.º 4064/89 e artigo 66.º Tratado CECA; em Dezembro de 2001 foi publicado um livro verde que abrange questões jurisdicionais, processuais e materiais. Existe uma proposta de Regulamento relativo ao controlo das concentrações de empresas, apresentada pela Comissão (COM (2002) 711 final, 2002/0296 (CNS), Bruxelas, 11.12.2002).
3 Regulamento (CE) n.º1/2003 do Conselho de 16 de Dezembro de 2002 relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.º e 82.º do Tratado.
4 A aplicação das regras de concorrência no sector agrícola deverá continuar a basear-se no Regulamento n.º 26 de 1962. Quanto às isenções por categoria, o considerando (10) do novo Regulamento esclarece que “a Comissão aprovou e pode continuar a aprovar os chamados regulamentos de isenção por categoria, segundo os quais declara que o n.º1 do artigo 81.º do Tratado não é aplicável a categorias de acordos, decisões ou práticas concertadas”; contudo, quando tais comportamentos tiverem efeitos incompatíveis com o n.º3 do artigo 81.º do Tratado, a Comissão e as autoridades responsáveis em matéria de concorrência dos Estados membros poderão retirar o benefício de isenção por categoria.
5 Resoluções de 18 de Janeiro de 2000 e de 8 de Dezembro de 1999, respectivamente. Ambas as instituições insistiram na importância de assegurar uma aplicação coerente do direito comunitário da concorrência face a um sistema de poderes paralelos, bem como na necessidade de manter um grau adequado de segurança jurídica.
6 Já em matéria de controlo sobre as operações de concentração, o disposto no Regulamento das concentrações confere à Comissão competência exclusiva para tratar as operações de concentração de dimensão comunitária.
7 Sobre os aspectos mais relevantes desta autoridade independente, ver caixa intitulada “Traços caracterizadores da nova autoridade da concorrência nacional”.
8 V. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de Janeiro.

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* Ana Roque

Doutorada em Direito. Docente na UAL.

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

Link em nova janela Entidades reguladoras sectoriais mencionadas no DL nº10/2003

Link em nova janela Matérias tratadas em sede de defesa da concorrência

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