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- JANUS 2004 -

Janus 2004



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O efeito “Mãos Limpas” na justiça portuguesa

Eduardo Dâmaso *

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A “Operação Mãos Limpas” teve início nos anos 90 em Itália, quando um colectivo de juízes colocou processos aos mais altos dirigentes dos principais partidos políticos. Esta Operação colocou no centro da discussão o poder das magistraturas aliado ao activismo político. Em Portugal a luta política extravasou por vezes o mero campo partidário, adquirindo uma componente institucional, por vezes com contornos jurídicos. Primeiro em Itália, depois em Portugal teve lugar um progressivo afastamento, traduzido na independência institucional, das magistraturas face ao poder político.

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O paradigma daquilo que hoje se convenciona chamar “judicialização da política” nasceu nos anos noventa em Itália, com a “Operação Mãos Limpas”. Esta acção judicial de grande espectacularidade traduziu-se num conjunto de processos por corrupção, abuso de poder, gestão danosa e tráfico de influências que uma pool de juízes da Procuradoria de Milão colocou aos mais altos dirigentes políticos dos dois partidos que representavam as traves mestras da arquitectura político-constitucional da Itália do pós-guerra, Partido Socialista Italiano e Partido da Democracia-Cristã, liderados por Bettino Craxi e Giullio Andreotti.

A “Operação Mãos Limpas” teve o efeito de uma revolução em Itália, conduzindo ao fim da I República, mas também por toda a Europa, onde não mais deixou de se discutir o poder das magistraturas, em alguns casos o seu activismo político e o peso das decisões dos tribunais no condicionamento de políticas desencadeadas a partir de órgãos legitimados pelo voto popular.

Os magistrados, os seus sindicatos e associações, passaram a ser encarados pelo poder político com desconfiança ou mesmo hostilidade aberta, como é o caso do primeiro-ministro italiano Sílvio Berlusconi, que se tem afirmado vítima de uma perseguição política por parte de “juízes vermelhos”. Berlusconi, aliás, desencadeou objectivamente um processo legislativo contra o poder dos juízes que é também uma ofensiva processual contra inquéritos que visam a legalidade de alguns dos seus negócios e o conflito de interesses que o persegue.

O conflito radicalizou-se a um ponto muito próximo da ruptura quando um dos mais influentes amigos e colaboradores de Berlusconi, o advogado e ex-ministro Cesare Previti, foi condenado a onze anos de cadeia por envolvimento num negócio do primeiro-ministro italiano que implicou a corrupção de magistrados. Logo a seguir, o próprio Berlusconi foi intimado a comparecer perante o tribunal e voltou a lançar uma ofensiva política contra os juízes dizendo: “Numa democracia liberal, os magistrados politizados não podem escolher o governo que preferem seguindo a lógica do golpe de Estado”.

Em ciclos continuados ou circunstâncias conjunturais, como é mais o caso português, a luta política saiu do puro campo partidário para se tornar mais abrangente, adquirindo uma componente institucional no combate com estruturas representativas do poder judicial ou órgãos de classe das magistraturas, que estava arredada da visão clássica dos conflitos políticos nos países de direito continental.

 

A influência do modelo italiano

A verdade é que o modelo italiano de organização da judicatura foi abrindo caminho, sobretudo nas democracias latinas. Em Espanha e Portugal foram construídos sistemas de conteúdo e recorte muito parecidos com os de Itália. Consolidou-se o autogoverno das magistraturas e a sua independência, entregou-se ao Ministério Público o controlo da acção penal, quer no plano da iniciativa quer da gestão do inquérito. O poder judicial foi-se progressivamente distanciando do poder político. Houve, a esse nível, pelo menos, uma espécie de “efeito Mãos Limpas”.

Mas vejamos antes como evoluiu o sistema italiano. Até finais dos anos cinquenta, a estrutura organizativa da judicatura italiana seguia os modelos burocráticos clássicos que dominavam na Europa continental. Os juízes eram seleccionados, por exame, entre os jovens licenciados em Direito, sem que tivessem alguma experiência prévia de formação ou profissional. A ascensão na carreira era feita de acordo com os critérios de antiguidade e mérito, através de avaliações realizadas pelos juízes de tribunais superiores em cujas nomeações o Governo tinha um papel decisivo.

Os juízes eram, afinal, encarados como meros técnicos legais pelo poder político, que apenas lhes pedia que aplicassem as normas arquitectadas pelos legisladores e que não pusessem em causa a vontade das maiorias políticas. Estávamos perante uma magistratura que não dispunha de uma verdadeira independência, já que, através dos juízes dos tribunais superiores que basicamente representavam a vontade e as orientações do ministro da Justiça, os juízes de primeira instância encontravam-se limitados hierarquicamente.

Só o fim da II Guerra Mundial trouxe mudanças: a pesada estrutura burocrática de uma justiça submetida ao poder político manteve-se mas foram introduzidas modificações legislativas de reforço das garantias de independência dos juízes. É, então, criado o Conselho Superior de Magistratura, formado por uma maioria de dois terços de juízes eleitos directamente pelos seus colegas, e nasce o conceito de “autogoverno” das magistraturas. Ao mesmo tempo, é consagrada constitucionalmente a obrigatoriedade da investigação criminal, ou seja, uma adesão plena ao princípio da legalidade.

Este novo recorte da administração da justiça, no entanto, não foi levado à prática de imediato. O Conselho Superior de Magistratura só a partir dos anos sessenta avançou. Apesar disso, emerge em Itália, nos finais dos anos setenta, uma geração de magistrados que está na primeira linha do combate contra o terrorismo e contra a Mafia – pagando alguns deles com a vida –, que vai conquistando um forte apoio popular. O poder que a independência e o apoio popular lhes deu acabou por ser um forte condicionamento de um poder político que se afundava na corrupção, no tráfico de influências, nas ligações mafiosas.

A partir daí, cria-se um caldo de cultura exportável para outros países. A partir da década de noventa, o caso italiano não se pode separar da tendência geral de “judicialização da política”, que foi emergindo com o processo “Mãos Limpas” em diversas democracias europeias. França, Espanha, Portugal, sem excluir, porém, países como a Alemanha, foram atingidos por escândalos políticos que conduziram a um reforço do poder judicial. De um momento para o outro, são postos em causa chefes de Estado como Felipe Gonzalez, Helmut Kohl ou Jacques Chirac, entre outros.

Em Portugal, com uma justiça fortemente influenciada pela ditadura salazarista, só nos anos oitenta se começam a construir os alicerces da independência das magistraturas. O mesmo acontece em Espanha, que iniciou a sua transição democrática em 1975.

 

O caso português

Tudo tem sido mais lento no caso português, mas os casos que marcaram o ano de 2002 — corrupção na administração fiscal, nas forças de segurança, nas autarquias — são um mero reflexo de um mal-estar que há muito se detecta na vida política e judicial face à incapacidade de travar os muitos sinais que se foram acumulando em matéria de criminalidade económica. 

Em três décadas, o sistema judicial foi totalmente incapaz de concluir investigações manifestamente letais para alguns políticos, de incomodar as lideranças partidárias com inquéritos que soubessem enquadrar os factos na sua manifesta relação com o financiamento ilegal dos partidos e o mais grave dos crimes que lhe é adjacente, a corrupção.

As empresas, já nos anos 90, quando rebenta o escândalo das facturas falsas, envolvendo alguns dos maiores grupos nacionais do sector da construção civil e obras públicas, justificam a compra de papel falso para fazer face a pagamentos por baixo da mesa em alguns países do Terceiro Mundo onde se torna difícil trabalhar dentro das regras legais. Mas percebe-se, logo aí, que essa prática de adulteração contabilística das contas das empresas reflectia realidades domésticas um pouco mais profundas, como a corrupção e a sua associação ao financiamento ilícito dos partidos políticos.

Face à manifesta ineficácia do sistema judicial em atacar este problema, começaram a rufar na praça pública os tambores da denúncia. Pedro Ferraz da Costa, então líder da Confederação da Indústria Portuguesa, disse taxativamente: “As empresas estão colocadas perante o dilema de pagar [luvas] ou de não poderem concorrer à adjudicação de obras e serviços. Não é aceitável que uma lei do financiamento dos partidos, manifestamente irrealista, coloque as empresas em geral na situação de terem que contribuir com parte tão importante para o financiamento de instituições políticas”. Ferraz da Costa disse alto o que na vida política e empresarial se sussurrava muito baixinho.

Estes avisos à navegação por parte de importantes figuras do meio empresarial e do sistema financeiro, aliás, tornaram-se cíclicos daí para cá. 

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Mas também o Presidente da República Jorge Sampaio agarrou na bandeira do combate à corrupção nos instantes iniciais do seu primeiro mandato, fazendo avisos sistemáticos aos partidos sobre o seu próprio financiamento e sobre as necessidades de reforma do sistema político. Sampaio foi um dos principais aceleradores da percepção pública actualmente existente sobre os malefícios da corrupção e exerceu essa forte magistratura de influência no sentido de mobilizar vontades partidárias para travar este combate.

A mudança qualitativa que ocorreu na última década, porém, não introduziu factores de resistência significativamente fortes contra a corrupção. Basta olhar para os resultados estatísticos do Ministério da Justiça sobre o crime de corrupção. Só um quarto dos casos de corrupção investigados pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público chegou aos tribunais.

De acordo com dados oficiais do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça, entre 1986 e 2000 o número de processos finalizados em tribunais de 1ª instância passou de nove em 1986 para 46 em 2000. A quantidade de arguidos julgados por corrupção aumentou também, já que em 1984 foram apenas cinco e em 2000 ascendiam a 62 os acusados. A taxa de condenações efectivas neste período foi em média de 65 por cento.

Os dados oficiais indicam, no entanto, que durante a última década, apenas um quarto dos crimes de corrupção registados pelas autoridades policiais chegou às barras dos tribunais. Em 1999 foram registados 353 crimes de corrupção, mas só 9% foram julgados e destes apenas cinco dos inquéritos resultaram na aplicação de penas de prisão efectiva.

O ano de 1999 representou um pico importante nos casos registados como inquéritos, mas já no plano dos julgamentos concluídos os resultados são muito modestos. Em 2001 e 2002, os números de inquéritos abertos voltam a baixar relativamente a 1999. Em 2001 foram iniciados 261 casos e em 2002 a fasquia sobe para os 291.

 

O Bloco Central dos Interesses

Os números não têm, desde logo, a menor correspondência com a percepção difusa que a própria opinião pública tem do problema e que está sistematicamente expressa em estudos de opinião. 

A verdade é que as investigações judiciais sempre dependeram dessa estranha mistura de incompetência, omissão e um discreto jogo de influências que conduziu ao bloqueio de milhares de processos que morreram em montanhas de papelada sem destino certo, depositada ou extraviada dos arquivos dos tribunais, deixando-os nos braços de uma prescrição quase certa. Ou então de um arquivamento eterno, à espera da produção de melhor prova, esse bicho raro nas três décadas que se seguiram à revolução de 25 de Abril de 1974 na esmagadora maioria dos processos de criminalidade económico-financeira que envolveram personalidades do mundo político e empresarial. Nunca apareceu a “melhor prova”. Os poucos processos que chegaram a algum fim foram reduzidos a pequeníssimas infracções fiscais cuja reparação pecuniária consome, extingue, acaba, pulveriza, aniquila, o procedimento criminal. Tudo resultados que foram consolidando a tese de algumas vozes autorizadas no país que, quando discutem o efeito nefasto de um chamado “Bloco Central dos Interesses” na vida política nacional, concluem sobretudo que o campo em que ele mais expressão tem é na justiça.

Essa união para a vida entre alguns sectores e personalidades do PSD e do PS, interessados numa fusão de conveniências que se sobrepõem à mera lógica da luta política, nunca descurou nem o poder punitivo dos tribunais, por um lado, nem a moeda decisiva que para eles representou a subtracção a uma lógica de soberania nacional de importantíssimos sectores da administração pública, como o fisco, os organismos de distribuição dos fundos comunitários, algumas áreas de tutela da economia, entre outros. Ou seja, são áreas onde prevalece um poder de decisão ditado pelos interesses do tráfico de influências e não qualquer forma legítima de decidir.

Não foram poucas as vezes, desde 1974 em diante, que vários governos se viram ultrapassados ou foram cúmplices dessa conformação e subalternização subterrâneas dos interesses colectivos aos desígnios particulares e de grupo de meia dúzia de personalidades. Para lá dos factos, que ficaram sempre atrás de uma enorme barreira de impossibilidades — ou por falta de leis, ou de meios, ou de vontade ou de outro tipo de bloqueios ostensivos —, foi crescendo, sobretudo, uma espécie de insatisfação democrática que correspondia à percepção por parte dos eleitores, de sectores da magistratura, da política e do jornalismo, de que algo apodrecia lentamente no subsolo da vida política. Insatisfação que se acentuou a partir de 1986, com o malbaratar dos primeiros fundos comunitários, em particular os que eram destinados à formação profissional, e que, em vez de ajudarem o país a melhorar a qualificação dos seus trabalhadores e os níveis de produtividade, foram distribuídos por grupos de influência económica e política ou, de outro modo, simplesmente roubados.

É, aliás, nesse momento que se situa entre 1986 e 1989 que, na prática, se estilhaça o enorme consenso que existia no campo partidário em relação à justiça e aos titulares da pasta ministerial, criando novos factores de tensão entre o poder político e o poder judicial.

 

Informação Complementar

O forte simbolismo do caso JAE

Um dos expoentes máximos da incapacidade de o sistema judicial português responder a uma situação que poderia provocar uma total “judicialização da política” foi o chamado “caso JAE”. Uma sindicância administrativa destapou centenas de procedimentos administrativos irregulares e dezenas de situações susceptíveis de integrarem o crime de corrupção. Foi aberta mais de uma dezena de inquéritos pela Procuradoria-Geral da República, mas os resultados ficaram aquém do que seria compatível com a gravidade da situação enunciada pela sindicância e pelas declarações de alguns responsáveis políticos.

A prescrição de processos, a ausência de testemunhos mais concretos e de uma investigação apetrechada com os meios adequados foram os principais obstáculos ao aprofundamento de um caso que poderia ter revelado também um mundo de total promiscuidade entre empresas de construção civil e obras públicas e dirigentes políticos e governantes. Como em Itália, com a “Operação Mãos Limpas”…

Mesmo assim, o Tribunal de Contas realizaria uma auditoria que chegava a conclusões bem reveladoras do estado em que o país se encontrava: Portugal desemboca na transição do século com os seus próprios instrumentos de realização de obras públicas, a maquilhada Junta Autónoma das Estradas e os Institutos que se lhe seguiram, a registar uma ultrapassagem sistemática dos custos na ordem dos 77%. A JAE esbanjou dinheiro na construção de quilómetros e quilómetros de asfalto, sem qualquer visão de planeamento e de integração do plano rodoviário nacional no conjunto de acessibilidades e infra-estruturas. Em cinco anos apenas gastou 108 milhões de contos a mais, mas não foi capaz de dar resposta, ao longo de quase vinte anos e em tempo útil, à substituição da velha ponte Hintze Ribeiro em Entre-os-Rios, causando uma tragédia que poderia ter sido evitada.

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* Eduardo Dâmaso

Sub-director do jornal PÚBLICO.

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