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O Mercado Ibérico de Electricidade (MIBEL)

Vítor Santos *

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O Acordo Internacional para a criação do Mercado Ibérico da Electricidade, assinado no dia 20 de Janeiro de 2004 pelos Governos de Portugal e Espanha, constituiu um acto de grande relevância para o sector energético dos dois países e um passo decisivo na consolidação do Mercado Interno de Electricidade da União Europeia. Na perspectiva dos consumidores, o processo de liberalização do sector eléctrico, ao nível europeu, não poderia ter corrido melhor: 2/3 do mercado eléctrico estão liberalizados, os preços ao consumidor final caíram em média 15%, manteve-se ou, nalguns casos, melhorou mesmo a qualidade do serviço público e, para além disso, a reestruturação do sector conduziu a um incremento na sua eficiência, com reflexos positivos na competitividade das economias europeias.

Mas não há bela sem senão! As deficientes infra-estruturas de interligação e a insuficiente harmonização ao nível das regras técnicas e financeiras dificultam as “trocas” internacionais de electricidade, suscitando a questão de como fazer a passagem de 15 mercados parcialmente liberalizados para um mercado eléctrico europeu liberalizado e eficiente. Para além disso, argumentam alguns economistas, existem segmentos da cadeia de valor do sector eléctrico, como acontece com a produção, que exibem uma concentração excessiva que não é susceptível de ser explicada, inequivocamente, por razões tecnológicas e, para além disso, pode afectar os consumidores que poderão ser onerados com tarifas mais elevadas.

 

Mercados regionais: um passo intermédio entre os mercados nacionais e o mercado único da electricidade

Na linha da experiência precursora desenvolvida pela Nordpool (processo de integração dos mercados eléctricos da Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarca), a criação de mercados regionais, como o MIBEL, para além de contribuir para minimizar os problemas acima referidos, constitui um passo intermédio para a consolidação de um mercado único da electricidade. Durante muitos anos, a Península Ibérica permaneceu como sendo quase uma ilha, já que o trânsito de energia eléctrica com os restantes países europeus, através dos Pirinéus, era incipiente face ao défice na capacidade de interligação instalada. Na mesma linha, os dois países ibéricos viveram de costas voltadas também em matéria de energia eléctrica. O reforço da capacidade de interligação entre os dois Estados Ibéricos e, posteriormente, com os restantes países europeus, vai conduzir a uma integração progressiva dos dois mercados, com reflexos positivos no desempenho do sector eléctrico, na qualidade do serviço e nos preços da energia.

 

Estrutura de mercado e reestruturação empresarial

Os diferentes segmentos da cadeia de valor do sector eléctrico exibem estruturas de mercado distintas. Enquanto na produção tendem a existir estruturas oligopolísticas e na comercialização podem mesmo ocorrer estruturas competitivas, no transporte e distribuição, devido à sua natureza de indústrias de rede, apenas fazem sentido monopólios naturais. O sector eléctrico na Península Ibérica está concentrado num número reduzido de grandes empresas. Nas actividades de produção, distribuição e comercialização são dominantes cinco grandes grupos industriais: quatro em Espanha (Endesa, Iberdrola, Unión Fenosa – UF e Hidroeléctrica del Cantábrico – HC) e um em Portugal (EDP). As actividades de transporte de energia eléctrica são desenvolvidas pela REE (1) e pela REN. Para além da Produção em Regime Especial (PRE) (2) não integrada nos cinco grandes grupos, existem ainda a Elcogás, em Espanha, e a Tejo Energia e a Turbogás, em Portugal. Deve salientar-se que, à escala ibérica, a EDP detém o terceiro lugar, seguida, de muito perto, pela Unión Fenosa e mantendo uma distância considerável face aos dois líderes ibéricos; de facto, a EDP tem um peso correspondente a menos de um quarto do valor consolidado das duas empresas dominantes espanholas (a Endesa e a Iberdrola).

No ano 2000, os dois grandes grupos industriais espanhóis (a Endesa e a Iberdrola) representavam 65% da produção (sendo a Endesa claramente dominante com 40%) em Espanha e cerca de 80% da distribuição, nesse mesmo mercado. Em Portugal, a EDP controla 65% da produção e era quase monopolista na distribuição. Admitindo que os grandes grupos mantêm as suas actuais posições no mercado, a integração dos dois mercados ibéricos conduz a uma substancial redução na concentração empresarial, contribuindo desta forma para um aumento da concorrência no sector eléctrico.

Contudo, deve realçar-se que esta análise pode ser substancialmente enganadora já que, a um prazo mais ou menos longo, a integração regional de mercados e, posteriormente, a criação do mercado único da electricidade conduzirão a uma profunda reestruturação sectorial. Por exemplo, alguns analistas prevêem que, num futuro mercado único da electricidade, ocorram profundas reestruturações empresariais que conduzam à sobrevivência de apenas meia dúzia de empresas à escala europeia no segmento relativo à produção da electricidade. Ou seja, a desconcentração resultante directamente, no curto prazo, do processo de integração de mercados pode conduzir, a médio ou a longo prazo, a um processo de reestruturação empresarial que pode suscitar níveis de concentração, à escala europeia, muito acentuados.

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Apesar de se estar a proceder ao reforço da capacidade de interligação entre os dois países, visando o incremento do trânsito de energia eléctrica, os mercados dos dois países continuarão a funcionar num contexto “parcialmente protegido”. Neste âmbito, as empresas do sector eléctrico tenderão a fazer aquilo que é suposto que qualquer empresa faça: se existem restrições à “exportação” para um determinado mercado, as empresas tenderão a fazer investimentos nesse mercado (sobretudo, se for contíguo!). Na linha da iniciativa tomada pela EDP, que controla 40% da HidroCantábrica, é bem provável que os grandes grupos espanhóis assumam uma presença cada vez mais relevante no mercado português. A Iberdrola já deu sinais muito claros de que iria seguir essa estratégia, revelando o seu interesse em investir na produção em Portugal.

Como a EDP Distribuição é detentora de um contrato de concessão que apenas cessará em 2020, a disputa da distribuição em Portugal apenas poderá acontecer, até 2020, através da aquisição total ou parcial da empresa portuguesa. Sem desvalorizar estas ameaças credíveis, deve salientar-se que a mais recente reestruturação do sector energético português criou melhores condições para consolidar a posição da EDP como player na arena competitiva ibérica. Apesar de ser muito plausível que a dimensão das empresas evolua por patamares – ou seja, a dimensão média e a concentração empresarial tenderão a aumentar à medida que se passar dos mercados nacionais para os mercados regionais e, posteriormente, para o mercado único – a configuração final dos mercados será muito condicionada por uma série de incertezas que marcam presentemente o sector eléctrico: o ritmo de crescimento do consumo de electricidade, os reflexos do mercado de emissões e dos mecanismos flexíveis de Quioto sobre o funcionamento do sector eléctrico, a evolução do preço relativo dos diferentes combustíveis, o grau de prossecução dos compromissos dos diferentes países europeus no que concerne ao peso das energias renováveis na produção de electricidade, entre outros.

 

O quadro institucional do MIBEL

O reforço faseado da capacidade de interligação que viabilize o incremento do trânsito de energia eléctrica entre os dois países e o reconhecimento recíproco de agentes que operem no sector eléctrico – isto é, a atribuição do estatuto de produtor, comercializador, ou outro, por parte de um dos países, tem assegurado o reconhecimento automático desse estatuto pelo outro país – passou a viabilizar uma maior intensidade na interacção entre operadores dos dois países e, em consequência, uma maior integração dos dois mercados eléctricos e um contexto concorrencial mais agressivo.

Mas, para além destas alterações, a criação do MIBEL conduzirá, a partir de 2006, e na linha do modelo existente em Espanha desde 1998, à criação do Operador de Mercado Único (3). Tal significa que o relacionamento comercial entre os agentes do sector eléctrico se processará através de um mercado diário de energia, embora continuando a admitir-se, tal como acontecia até aqui, a existência de contratos bilaterais físicos (4). Transitoriamente, e com uma motivação exclusivamente política, o mercado ibérico terá dois “pólos”, criando-se, desta forma, uma “pool” bipolar ibérica: o OMEL, o pólo espanhol, que gere o mercado à vista e funcionará em Espanha, e o mercado a prazo que funcionará em Portugal e será desenvolvido pelo Operador de Mercado Ibérico Português (OMIP).

A criação de um mercado grossista para a electricidade, com a liquidez e a profundidade adequada, poderá constituir um instrumento essencial para a organização e a consolidação do mercado ibérico. Mas atenção: há que proceder a uma regulação adequada da “pool” de forma a evitar que haja manipulações decorrentes de situações de dominância do lado da oferta e da procura ou, até, de fenómenos de concertação estratégica entre produtores e comercializadores. Para além disso, é preciso ter presente que a liberalização conduziu à passagem dos monopólios públicos verticalmente integrados para empresas privadas com uma posição monopolista em alguns segmentos da cadeia de valor do sector eléctrico.

Esta situação tornou inoperante a auto-regulação preexistente quando se iniciou o processo de liberalização e tornou imprescindível a regulação sectorial. De facto, é quase consensual que, pior do que um monopolista público, só mesmo um monopolista privado que não esteja sujeito a um processo de regulação económica. A criação do Conselho de Reguladores Ibérico (que integra os reguladores sectoriais dos dois países) visa consolidar uma plataforma institucional que torne possível a cooperação bilateral ao nível da regulação dos operadores a funcionarem em cada um dos mercados nacionais dos dois países. A coordenação de acções visando um funcionamento eficiente e eficaz do MIBEL torna ainda imprescindível a criação do Comité de Agentes de Mercado (que integra representantes de todas as entidades que podem intervir no mercado) e do Comité de Gestão Técnica (que integra os Operadores de Mercado e de Sistema dos dois países).

No entanto, estamos em crer que um dos factores decisivos do sucesso do MIBEL passará pela capacidade de cooperação entre os governos dos dois vizinhos ibéricos. Naturalmente, existem as acções de curto e médio prazo visando a monitorização dos compromissos assumidos e a consolidação institucional do MIBEL: desenvolver a legislação necessária que torne possível a integração progressiva dos dois mercados nacionais, proceder à criação de um Operador de Mercado Único que substitua o sistema bipolar actualmente existente, afinar progressivamente as competências das entidades vocacionadas para a cooperação bilateral (entidades reguladores, operadores de sistema e de mercado).

O (im)previsível processo de reestruturação empresarial, que vai acompanhar a consolidação progressiva do MIBEL, vai gerar fortes tensões entre os dois governos que vão ter que saber fazer o compromisso possível entre os interesses nacionais – muitas vezes míopes, egoístas e desprovidos de visão estratégica – e o grande potencial que pode resultar de um mercado ibérico mais competitivo e, por isso mesmo, indutor de uma Península Ibérica mais competitiva e protagonista de um processo de crescimento económico mais sustentável. Para além disso, os dois governos ibéricos vão ter que ser capazes de perspectivar o MIBEL como um trampolim que lhes permita ganhar músculo e agilidade para o passo de gigante que se avizinha: a criação de um mercadoúnico da energia!

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1 Ao contrário do que acontece em Portugal, em que a concessão da Rede Nacional de Transporte foi atribuída em regime de exclusividade à REN, a REE apenas controla 25% das redes de transporte, sendo as restantes detidas pelos restantes quatro grupos industriais.
2 As instalações de produção de energia eléctrica a partir de fontes renováveis de energia, de resíduos ou associadas a unidades de co-geração, beneficiam de um estatuto especial no tocante à remuneração da energia produzida.
3 Deve salientar-se que, até à criação do MIBEL, os produtores de electricidade em Portugal, para além dos contratos bilaterais físicos, eram detentores de contratos a longo prazo, assinados com a REN, que lhes garantiam a remuneração para a sua produção.
4 Ou seja, não se trata de uma pool obrigatória.

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* Vítor Santos

Professor Catedrático do ISEG

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Dados adicionais
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