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A Europa no século XX: bosquejo de “cartografia” intelectual (III)

Pedro Alves *

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Acabámos de ver a influência marxista no pensamento político da primeira metade do século XX. Simetricamente, com Carl Schmitt (1888-1985), uma outra argumentação contra a democracia e o mundo “burguês” estava sendo desenvolvida. Ela está directamente ligada ao afundamento da vida pública na Alemanha nazi. Em 1921, Schmitt publica o seu ensaio Die Diktatur. Trata-se de um libelo contra a república de Weimar em que se afirma que a vontade de um povo é mais bem corporizada na figura do ditador que no poder legislativo, sempre exposto à conciliação e ao compromisso. É o princípio do Führer (ou do Duce) que aqui desponta. A sua lógica é a subversão do espaço público e a redução dos cidadãos a uma massa indiferenciada. Esta visão havia de ganhar consistência na obra de 1932, Der Begriffdes Politischen. O stato totalitario, de Mussolini, é aí uma referência, bem como a ideia de que o fenómeno político é anterior ao Estado e que ele emerge autenticamente quando há um confronto com um “inimigo” – “os cumes da grande política são os momentos em que há percepção nítida do inimigo enquanto tal”.

Com o “outro”, com o “diferente”, está aberta a possibilidade da coexistência e do respeito recíproco. Locke havia falado da tolerância como princípio axial da vida política. Mas se o outro só surge na esfera política sob a figura do “inimigo” (Feind), se esse é o seu modo de se dar, não haverá, então, nem conciliação nem comunidade possível. Se a ordem política emerge deste confronto, é todo o pensamento clássico – de Hobbes a Kant, passando pelo abade de Saint-Pierre – sobre a Paz como desígnio último da política que se desmorona completamente.

 

Ainda acerca da política ou do ideal da Justiça

Na primeira metade do século XX, a caixa de Pandora está aberta por toda a Europa – duas guerras fratricidas, o terror vermelho e depois o estalinismo e o gulag, a Leste, o nazi-fascismo e o holocausto, a Oeste. O acordar desse pesadelo durou toda a segunda metade do século. Ele marca o ressurgimento de um pensamento que, em sentido lato, poderia ser designado como “liberal”. Da vigorosa reacção intelectual que aí desponta, três nomes precursores são de reter. Primeiro, Hayek. The Road to Serfdom, de 1944, desenvolve uma dupla tese polémica – que o “planismo” na esfera económica conduz à supressão da liberdade política e que, por isso, a ascensão do fascismo não foi uma reacção contra as tendências socialistas, mas um resultado inevitável dessas tendências mesmas. Segundo: Popper, com The Open Society and Its Enemies, de 1945, desenvolve-se uma defesa da organização liberal-democrática da vida pública e da sociedade. Terceiro vulto: Hannah Arendt. O seu ensaio de 1951, On Totalitarism, surpreende na erosão do espaço público, no esmagamento da liberdade civil pela propaganda e o terror a causa comum tanto do estalinismo como do fascismo. Não seria útil percorrer, aqui, o lento processo de retorno da Europa à sua matriz democrática.

Das forças em confronto, resultou um ponto de equilíbrio duradouro: a economia de mercado, a democracia representativa e o welfare state. Do ponto de vista teórico, o futuro passa também pelos caminhos alternativos que resultam das obras dos americanos John Rawls e Robert Nozick. Para a Europa, o ano de 1989 pode valer como data simbólica da queda definitiva da última ilusão que incendiou a cidade e a pôs a ferro e fogo. Interessará, porém, olhar os novos desafios da cidade democrática (depois de resolvida, no plano dos princípios, a questão dos direitos das mulheres) – falamos das questões dos “direitos dos animais”, da “nova ordem ecológica” (para utilizar o título algo irónico de um livro famoso), e da necessidade de os repensar mais além da pulsão antropofóbica da deep ecology ou das teses disruptivas da animal liberation, de Peter Singer.

 

O humano e a natureza extra-humana

A teoria política clássica havia pensado a comunidade política “por dentro”, ela concentrara-se nas relações internas entre os cidadãos, tendo em vista a questão da justiça e a legitimação da autoridade civil. O caminho promissor será, agora, repensar o Leviatã (para usar a metáfora hobbesiana para a comunidade política) nas relações que, no momento da sua emergência, ele estabelece com aquilo que idealmente o antecede e o possibilita – a simples natureza, tanto a natureza extra-humana, como a dimensão natural da própria existência do homem. É duvidoso que este alargamento possa fazer-se por uma projecção da noção de “direito” sobre realidades não-humanas.

O direito é uma relação intra-humana, que supõe a liberdade e se complementa na ideia de dever. Mas haverá, talvez, um caminho mais promissor. Para o Leviatã, o espaço natural onde se instala surge-lhe como o seu território – terreno aberto à sua jurisdição e espaço de livre apropriação. Mas, antes de ser território, esse espaço é um habitat. Assente nesta perspectiva mais fundamental, para lá dos direitos cívicos e sociais, haveria que desenvolver toda uma nova família de direitos relativos à Natureza: direito à fruição do ambiente, direito à preservação dos ciclos naturais, e tantos outros. Esta seria, contudo, ainda uma visão centrada no Leviatã e nos direitos dos cidadãos.

Uma segunda linha dever-nos-ia conduzir da noção de direito (intra-humano) à noção de responsabilidade (dos homens) em relação à Natureza, pois mais basilar que a cidadania, que fala sempre da pertença do homem a um espaço político, há um habitar em comum a Natureza que iguala o homem com todos os outros seres vivos. Se bem que o direito seja uma relação intersubjectiva, a responsabilidade da comunidade política como um todo estender-se-á, assim, à Natureza onde ela própria se instala. Neste horizonte de um habitar em comum a Terra, a comunidade política surgirá, a um tempo, como seu garante e curador. Eis como a ideia reitora da justiça, que é coisa de homens e para homens, se deverá prolongar na ideia de uma indeclinável responsabilidade dos homens perante o todo da Natureza. Este é, de facto, o novíssimo desafio que brota do aprofundamento da cidadania. Ele fala do homem como “cidadão do universo” e chama-o a uma nova e irrecusável responsabilidade.

 

Terceiro: da ética, ou do ideal da Felicidade

Uma ética não é uma moral. Ela não tem sequer de se situar relativamente a esta última. Não tendo necessariamente de se resolver numa moral, tão-pouco será ela, por isso, amoral ou imoral. A ética é, antes, uma reflexão sobre a essência do homem que está mais além de qualquer fixação de uma normatividade e de um conjunto de deveres. Códigos morais existem múltiplos. Há morais de fundamentação teológica, há morais assentes no conceito estrito de dever, há morais utilitárias, que subordinam a acção aos resultados e a valoram em função destes. Existe também uma discussão permanente sobre qual é o fundamento da própria obrigação moral, sobre o que faz com que um valor valha (Max Scheler falou disso) ou sobre o que faz com que algo obrigue. A reflexão sobre o fundamento da moral atravessou toda a cultura europeia.

A Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, de Kant, e Zur Genealogie der Moral, de

Nietzsche, aparecem como pontos de vista extremos e contrários sobre o significado, para o homem, da palavra “dever”. A psicanálise de Freud e a sociologia reencaminharam o discurso sobre o dever para novas dimensões: os constrangimentos socialmente construídos ou a eficácia do superego na formação do complexo de culpa. Não é aqui o lugar próprio para historiar o pensamento ético do século XX. Há, porém, várias ideias-padrão que balizam a reflexão ética e a polarizam em certos núcleos temáticos. Eles contêm, só por si, toda uma visão do humano. A primeira é a do homotechnicus. A técnica é um fenómeno de fundo da civilização europeia. É mesmo por sua via que o modo de vida do Ocidente se tem universalizado.

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No entanto, a reflexão comum sobre o fenómeno da técnica compreende-a simplesmente como instrumento de acção e louva-a pela eficácia e o poder de transformação que propicia. Tudo se passaria como se a técnica, reduzida a simples instrumento, em si mesmo neutro, fosse apenas uma forma de afeiçoamento da natureza aos fins e objectivos humanos. Uma natureza docilizada, uma natureza não estranha, inóspita ou hostil, mas uma natureza inteiramente submetida às finalidades da vida humana – tal seria o efeito e a essência do fenómeno da técnica. O homem comum deixou-se fascinar por esta promessa de uma Felicidade ao mesmo tempo fácil e volátil. A sociedade de consumo é a sua máxima expressão.

Esta interpretação não vai suficientemente longe, porém. A técnica afecta a próprio modo de auto-compreensão do homem. Ela é uma alteração na relação essencial do homem consigo próprio. Ela não é apenas instrumento, mas expressão de uma vontade de dominação; não é apenas um mediador na relação do homem com a natureza, mas um elemento em que o homem reconfigura a relação consigo e com os outros. A tecnicização, crescente e imparável, de todas as dimensões da vida, desde logo da própria relação com o corpo, faz da técnica não um fenómeno que o homem controla, mas um dispositivo que domina e reconfigura a própria essência do humano. Martin Heidegger terá sido, talvez, o pensador que foi mais longe na compreensão da essência da técnica. A “essência da técnica” não é nada de técnico – ela é um dispositivo (Gestell) que, exigindo a natureza como seu campo de efectivação, como conjunto de “recursos”, ao mesmo tempo a encobre (verbirgt) no seu sentido originário. Nesse encobrimento, é o próprio homem que perde o sentido essencial da sua própria existência. A técnica é, por isso, o “maior dos perigos”. Trata-se, neste diagnóstico sobre a essência da técnica, de uma crítica da modernidade – talvez a maior que o século XX produziu – que deixou uma larga escola de continuadores.

A obra de Hans Jonas, Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation, segue na mesma direcção e alarga-se até às questões hodiernas. Segunda figura – o homo liber. Ela emerge no discurso sobre a emancipação do homem, cujos antecedentes próximos estão em Marx, e retoma o programa da Filosofia das Luzes. Um dos seus rostos mais salientes é Habermas (um membro da chamada Escola de Frankfurt, juntamente com Horkheimer, Adorno, Marcuse e outros). O discurso ético funda-se numa pretensão conversacional de base, nomeadamente a de que o seu teor não seja apenas válido para o indivíduo que o estatui, mas que seja dotado de uma validade universal e intersubjectiva. Esta pretensão de universalidade é o dado essencial para o que Habermas designa como “acção comunicativa” – um processo de justificação e de crítica em que o discurso se contrapõe a outros discursos, sem quaisquer constrangimentos externos, fundados em relações de poder, e onde apenas prevalecerá o “melhor argumento”.

A ética, assim escorada na acção comunicativa, sem coerções de outra espécie, estará apontada ao consenso como momento ideal final. Uma “razão comunicativa”, liberta da limitação “monológica” da ética kantiana, aparece, assim, como o esteio da emancipação do homem e da constituição de uma autêntica comunidade. Mas uma filosofia da liberdade pode ser, mais radicalmente, a tese de que, mais fundo que um projecto de emancipação, a liberdade é a dimensão basilar da própria realidade humana. Sartre é, aqui, a referência incontornável. Falar do homem não é descrever uma “essência”, ou seja, uma natureza fixa, de uma vez por todas definida.

O homem define-se antes, a cada momento, na sua liberdade e configura por ela a sua própria existência. Esta liberdade de fundo da existência humana tem como reverso uma total e irrevogável responsabilidade. O homem está, portanto, “condenado” a ser livre e a inventar o sentido da sua própria existência. Mas é esta liberdade absoluta que se volve numa liberdade insuportável. As estratégias de denegação da liberdade são o processo pelo qual o homem se evade de si próprio e se compreende como um “ser”, aprisionado numa “natureza” fixa e estabilizada. Este movimento, de que Sartre é um analista excelente, é, a um tempo, fuga diante de si e mecanismo de automistificação. O seu comportamento de base é a mauvaise foi. Ele percorre a totalidade das relações humanas.

Terceira e derradeira figura – o homem diante da transcendência do outro. O seu expoente máximo é Emmanuel Levinas. O racionalismo e o subjectivismo da tradição ocidental, a própria proeminência da ontologia, são aí objecto de uma crítica que pretende regressar de Atenas a Jerusalém. A consciência do outro na sua irredutível alteridade é vista como a base de toda a ética. Assim, o cuidado com o outro é irredutível a qualquer outro princípio mais fundamental que o relativize ou condicione. Ele não emerge de uma auto-expansão dos interesses próprios, nem da descoberta de interesses comuns histórica ou socialmente determinados. O laço que une o eu e o outro é anterior a todo o conhecimento das coisas e a toda a visão egocêntrica da realidade. Por isso, a face de outrem é a significação verdadeiramente primordial, da qual todos os outros signos podem retirar o seu sentido. A verdadeira comunidade é este acolhimento do outro. Ela antecipa e transcende todas as formas contratuais de união, fundadas, todas elas, no circunstancialismo da identidade dos interesses.

O discurso ético do século XX, tanto quanto ele possa ser polarizado nestas três figuras, foi, todo ele, uma crítica da inautenticidade e um chamamento do homem às suas responsabilidades essenciais. Seja na “superação” da civilização técnica, seja na crítica da alienação, seja ainda na denúncia dos comportamentos de autodenegação da liberdade ou de redução egocêntrica da alteridade, a reflexão ética constituiu-se não tanto como o lugar de “retorno” do homem à sua putativa “natureza”, mas antes como o devir do homem em direcção a novas configurações de si próprio. O discurso ético é, por isso mesmo, o lugar permanente de um debate sobre a essência do humano. Ele está subordinado à exigência de uma vida boa. Nela se concretiza o ideal da Felicidade. Uma Felicidade que não é, bem entendido, e contra as representações mais comuns, a imagem confusa de uma vida de fruição ou deleite, nesciamente centrada sobre o seu próprio contentamento, mas a exigência de que o homem sempre de novo reconfigure os seus fins essenciais e compareça diante do outro no reconhecimento da sua humanidade comum.

 

Uma conclusão pouco conclusiva

O projecto de união dos povos da Europa é tudo menos acto de voluntarismo político. Antes da circulação de pessoas, de mercadorias ou dos fluxos financeiros, as ideias sempre circularam por toda a Europa. Elas criaram uma “pátria” espiritual. É sobre esse património espiritual que a unidade de fundo dos povos europeus pode aparecer em plena luz. A sua união actual é, sem dúvida, um acto de vontade, mas não um artificialismo político. É como se retornássemos por fim a uma casa que, porém, nunca antes tivéramos. A partir daí será possível dizer: In Europa sumus, id est in patria, in domopropria (palavras de Pio II, em 1463).

Que terá a Europa para dizer ao mundo? Apenas isto: não possuímos a Verdade; da Justiça, não tivemos nunca a exacta fórmula; tão-pouco nos foi concedido o segredo da Felicidade. Não fomos postos na História pelas mãos de um deus. Por isso, o nosso caminho jamais será o do regresso ao momento mirífico de uma origem fundadora e plena. Somos homens, nada mais que homens. Todo o sentido da nossa existência é para construir numa progressão sem fim. É por isso que procuramos a verdade, e que procuramos ser justos, e felizes. É por isso que vivemos nestas e por estas ideias infinitas. Como poderíamos desistir disto sem desistir de nós próprios? É esta a nossa humildade. E também o nosso orgulho.

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* Pedro Alves

Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Vice-Presidente da Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica.

 

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