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Onde estou: | Janus 2005 > Índice de artigos > Dinâmicas culturais na Europa > [Portugal no seu encontro com outras culturas europeias] | |||
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Paralelismos peninsulares Toda a nossa cultura medieval, no campo que sobretudo pretendo iluminar, o do pensamento e da produção literária, está profundamente impregnada da influência provençal, que as peregrinações a Compostela ajudam a explicar, tão decisiva no manancial lírico das cantigas de amor. Outro fluxo provém do que poeticamente se fazia em Leão e Castela, apesar da originalidade galaico-portuguesa das cantigas de amigo, que por sua vez remetem para outros contactos, os da pesca e da navegação embrionária, os das expedições guerreiras, como o fossado e a razia, sem esquecer o que do Andaluz e das suas cortes nos chegava, filtrado já pelas línguas da Hispânia. Posteriormente acentua-se a presença castelhana na poesia portuguesa. O arcipreste de Hita, Boscán, Garcilaso de la Vega encontram entre nós discípulos, imitadores e leitores críticos, como se pode observar no Cancioneiro de Garcia de Resende, onde outros ecos irão introduzir-se com o início das nossas descobertas marítimas e a expansão por outras terras, o contacto com outros idiomas, hábitos e religiões.
Da Europa aos Novos Mundos Foi privilégio de Portugal relacionar-se com o vasto mundo, com terras e gentes desconhecidas; todos os nossos campos artísticos e culturais, da crónica ao vilancete, da música à pintura e à arquitectura, ao mobiliário, foram impregnados pelo orientalismo, pelo mistério do outro, por paisagens exóticas, pelos mitos e pelos medos da floresta virgem, e sobretudo pela visão do paraíso, pelo perfil utópico do bom selvagem; mesmo através da escravatura, aspectos da cultura africana nos penetraram, na música, na cozinha, em tantas práticas da vida quotidiana. Lembremo-nos da presença de motivos indianos e até do pagode chinês, quer em templos católicos, quer em palácios e casas comuns de gente rica. O Alentejo e o Algarve, cuja arquitectura reflecte toda ela, no estilo moçárabe, o enlace de duas culturas, quer no gótico local, de linhas mais horizontais do que verticais, quer nas caiadas habitações de barro e de adobe, não estão longe quantas vezes das linhas da mesquita nem do castelo agareno.
O Renascimento e o encontro de culturas Não há livro que melhor reproduza o encontro de culturas do que Os Lusíadas, que reverte ao berço europeu greco-romano, à sua mitologia e aos seus heróis para, exaltando a grei lusitana, nos mostrar do mundo novo maravilhadamente os tesouros, os usos e as crenças, as festas e as pinturas, outros deuses, outra moral, a mesma centelha de humanidade. Da Renascença italiana, que deslumbrou a Europa, veio até nós, através de Sá de Miranda e por outras vias, o conhecimento de Dante e de Petrarca, de Boccaccio, de Bembo, de Sannazzaro. Há muito já que nos conventos algumas dessas obras eram lidas e desfiguradas, adaptadas ao espírito piedoso, como já o fora bem antes a Arte de Amar, de Ovídio. O renascimento português foi mitigado, no sentido libertador e antropocêntrico que teve em Florença, em Paris, até em Roma. No entanto, houve excepções. Damião de Góis conviveu com Erasmo, sábios e letrados portugueses ensinaram na Sorbonne. Alguns reis deram aos seus herdeiros preceptores que eram humanistas de renome. Os judeus instruídos fizeram outra ponte entre nós e a Europa. Mas não há dúvida de que a Inquisição barrou o caminho a muitas atitudes e formas de vida, concepções do mundo que lá fora distinguiram as elites intelectuais e imprimiram o seu selo nas consciências.
Dos Filipes à Revolução Francesa O nosso século XVII, muito marcado pela dominação dos Filipes, foi freirático e barroco, nas acepções conceptista e cultista. Mesmo os nossos grandes talentos sofrem esse ascendente, como o visionário António Vieira, supremo senhor do português literário, ou D. Francisco Manuel de Melo, apesar dos Apólogos Dialogais e das Epanáforas, sendo que a sua Epanáfora Amorosa está séculos adiantada em relação ao espírito da época. Não temos nenhum autor de teatro desse período como Lope de Vega ou Calderón de la Barca, cujo magistério virá a sentir-se mais tarde, já no século XVIII, com António José da Silva, o trágico Judeu, que deu grande impulso ao teatro do Bairro Alto. É no número de salas de espectáculos, nas traduções dos grandes mestres espanhóis e até de Molière que se pode palpar a transfusão de modelos e práticas culturais. Depois, como é sabido, o nosso século XVIII foi francês. Quer em Bocage quer em José Anastácio da Cunha, quer no Cavaleiro de Oliveira, detectam-se as grandes linhas ideológicas do Iluminismo e afloram, vibrantes, sentimentos de revolta, de independência, de amor à liberdade. É já o espírito da Revolução Francesa, com grandes doses de Diderot, de Voltaire, dos Enciclopedistas, mensagens que vão perdurar e abrir espaços ao longo do nosso século XIX. Rousseau também deixou rastos, em Filinto, na marquesa de Alorna. Tolentino conjuga a sua sátira lusitana com o ardor jacobino, bem longe do academismo cediço de Correia Garção, de Cruz e Silva. Mas Tomás António de Gonzaga, mais até na sua vida do que na sua obra, aparece como uma figura interessante, ligado ao movimento independentista brasileiro, como que tacteando o terreno, numa ponte entre dois mundos.
O Romantismo e a abertura à Europa No alvorecer do Romantismo, até por condições de emigração intelectual forçada, ligada à insurreição dos liberais, Portugal abriu-se à Europa. A entrada do drama do destino entre nós com o Frei Luís deSousa, obra-prima de Garrett, só é possível porque o autor do Alfageme de Santarém leu Schiller e Zacarias Werner e até Goethe, em traduções francesas, e leu Victor Hugo e os romances históricos de Walter Scott, por onde Alexandre Herculano também forrageou. Assim nasceram romances tão lidimamente portugueses e ao mesmo tempo europeus como o Arco de Santana, de João Baptista da Silva Leitão, ou Eurico oPresbítero, de Herculano. E, já noutra vertente, o medievalismo então vigente para lá dos Pirineus deu por cá frutos como o Romanceiro de Garrett e toda uma série de poemas romanticistas epigonais, por fim já dessorados, como O Noivado do Sepulcro, de Soares de Passos, os primores vazios de Castilho ou A Lua de Londres, de João de Lemos, que aliás responde a uma sua estada em Inglaterra. Se Eça de Queirós, depois da sua experiência cubana, não tem vivido em Paris e na nuviosa Albion desses anos, não nos teria dado por certo ficções de tão fina, irónica ou mesmo caricatural análise de caracteres e tipos humanos como as de Os Maias, A Relíquia ou A Ilustre Casa de Ramires. É que, para ver bem Portugal, nas suas minudências peculiares e nos seus movimentos de opinião e sentimento, nos seus rasgos idiossincráticos, era precisa a perspectiva distanciada, europeia e universal que a deambulação diplomática lhe proporcionou. Eça de Queirós não foi um outro Flaubert, mas necessitou de ter lido Flaubert para alargar o horizonte e tornar com outros olhos ao fundo da pátria mesquinha, amá-la nas suas misérias e grandezas. Se não tivesse experimentado o deslumbramento, que o mudou, perante Baudelaire e os seus Tableaux Parisiens, Cesário Verde nunca teria escrito com a mesma modernidade, que resiste ao tempo, o seu Sentimentode um Ocidental. Nem António Nobre poderia oferecer-nos a plangente comédia irónica do Só, tão ternamente cáustica e oral, se não tivesse vivido no Boul’Mich quando Verlaine ainda frequentava La Source e os Simbolistas publicavam os seus manifestos. Mesmo o nosso Raul Brandão, tão profundamente atlântico e metafísico, precisou de mergulhar em Dostoievski para poder criar o Húmus, com a sua vertigem da dor, a piedade tão crua e intensa que o liga às misérias sociais. Porque a Rússia de Tolstoi e de Dostoievski não é menos Europa do que a Espanha de Unamuno e de Machado, que tocaram a fundo gerações de escritores portugueses, desde as da Renascença e da Águia às da Presença e do Novo Cancioneiro, estas já voltadas também para um alemão universal, que havia de deixar sulcos bem vivos no nosso século XX, Karl Marx.
O século XX português e o paralelismo europeu persistente Curiosamente, durante a ditadura fascista, que quis segregar-nos do mundo, a lição de Marx, como a de Freud e mais tarde a dos grandes linguistas estruturalistas, apanharam gerações inteiras de intelectuais no seu fascínio, dos neo-realistas aos experimentalistas dos anos 60. O próprio Aquilino Ribeiro, o gigante da literatura pícara enraizada no coração de Portugal, o mestre sem igual da nossa língua, estudou na Sorbonne, amou e peregrinou por Paris e pelo país basco francês e estabeleceu diálogos com Anatole France e com Jean Jaurès, tal como os que lhe sucederam na paixão pelo homem da terra e o seu trabalho afeiçoaram a visão socialista do mundo em Romain Rolland, em Aragon, em Malraux e também nos americanos do tempo da Grande Depressão, John dos Passos, Steinbeck, Hemingway, Caldwell. No domínio da pintura, há relações íntimas entre os nossos Columbano, Malhoa, Silva Porto e o impressionismo francês, tal como depois os fauves pesam no estilo de Amadeo de Souza Cardoso; e Picasso se encontra em quase todos os que se iniciam e se procuram, até na poesia, como Mário de Sá-Carneiro, que provém de Camilo Pessanha e de António Nobre, mas chegará aos excessos da sua Manucure entre o cubismo e o futurismo do italiano Marinetti. Ninguém é mais retintamente português do que Fernando Pessoa, o sebastianista da Mensagem, pesquisador de almas em tantos dos seus poemas ortónimos. Mas, lendo-o com atenção, deparamos com Walt Whitman na sua Ode Marítima, ou em Lisbon Revisited, e até com Mallarmé e com tanta poesia inglesa. Em todas as manifestações culturais a Europa está connosco: a cozinha francesa e a italiana, as cervejas checa e alemã ou a holandesa, até a vodka russa e a polaca, como a imagem da maison feita para a neve que os nossos emigrantes trouxeram da França, seu país de acolhimento, e desfiguraram, apondo-lhe por exemplo escadas exteriores... Foi na década de 60, a do engodo pelo nouveau roman e pela escrita textual, que o endeusamento da França entre nós subiu mais alto para depressa se esfarelar e ceder o passo, primeiro ao realismo mágico latino-americano e logo após ao culto do cinema de Hollywood, da música pop-rock e por arrastamento das artes visuais e da literatura dos Estados Unidos.
Americanização da Europa? Se é certo que toda a Europa, com a difusão do modelo económico neoliberal após a queda do muro de Berlim, de algum modo se americanizou, também é verdade que há reacções negativas, mormente em França, quer ao fast-food, forma de acelerada degradação das culinárias tradicionais, quer à chamada cultura de massas, também de importação yankee e que se traduz numa narcotizante mediocrização do gosto através da primazia da imagem, de devassa da vida privada e até mesmo, por vezes, do rebaixamento da inteligência e da dignidade humana. Talvez mesmo por isso um espírito de resistência a essa proliferação de uma infracultura, imbuída do culto da força, da eficácia e da competitividade elevada ao sumo grau, começa a manifestar-se na Europa com desassombro em crescentes minorias, no âmbito da cultura e no da cidadania, aí claramente contra o domínio absoluto do Estado e da política pelo poder económico. A nova Europa, mapa de muitas culturas diversas interligadas, será, para além das propostas e decisões dos areópagos oficiais, também aquilo que as diversas nações, isto é, os seus povos, democraticamente escolherem e tornarem realidade, talvez uma Europa bem diferente, mais livre, mais culta e igualitária. Hoje Portugal contribui para a Europa globalizada com uma arquitectura amplamente reconhecida, uma pintura poderosa e cruamente realista em que se afirmam Paula Rego e Graça Morais, depois da genial Vieira da Silva; músicos como Emanuel Nunes; e uma literatura muito imaginativa e identitária, por vezes com acentuado pendor poético, em que se destacam Saramago e Lobo Antunes; e a singularidade de Manuel de Oliveira no cinema.
Informação Complementar AS TRADUÇÕES E OS SEUS PROBLEMAS A tradução da literatura portuguesa no estrangeiro ganhou importante expressão a partir dos anos 80 do século passado, embora já antes tivesse conhecido alguns surtos esporádicos assinaláveis. Os Lusíadas foi sem dúvida a nossa obra clássica que maior irradiação mundial obteve, embora a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, sobretudo a partir do século XVIII e até à actualidade, tenha igualmente conseguido grande difusão, tal como os romances de Eça de Queiroz no século XX, muito especialmente Os Maias. De entre um pequeno grupo de escritores que, por motivos diversos transpuseram as fronteiras da tradução avultam Ferreira de Castro, particularmente com A Selva, vertida para um francês de grande qualidade por Blaise Cendrars; Fernando Namora, Redol e mais tarde Carlos de Oliveira, no período de maior interesse pelo neo-realismo e, de modo um pouco avulso, Vitorino Nemésio, Vergílio Ferreira, Agustina, Almeida Faria e eu próprio. No começo da década de 80, graças a um certo apoio da Fundação Gulbenkian e de José Augusto França, então director do Centro Cultural Português de Paris, deu-se o boom da tradução maciça de romances portugueses em França. De Saramago a Mário de Carvalho, a Maria Judite de Carvalho, de Lobo Antunes a Cardoso Pires e Maria Gabriela Llansol, de Lídia Jorge a João de Melo, os escritores portugueses brilharam em Paris nas Belles Portugueses (homenagem à nossa literatura mais recente) e em sucessivas feiras do livro. Apagou-se um tanto depois esse fogaréu, mas persiste o interesse pelos nomes grandes do nosso romance e até da poesia. Eugénio de Andrade era já há muito conhecido em França, tal como Ramos Rosa, mas chegou a vez de Herberto Helder, de Nuno Júdice, de alguns dos nossos melhores, sem falar já de Mário de Sá Carneiro, Sophia de Mello Breyner Andresen e Pessoa, este sempre reeditado. Há, no entanto, neste campo da tradução, lacunas graves e factos surpreendentes. São sobretudo os escritores próximos da mentalidade racionalista, da lucidez e da ironia que obtêm em França maior êxito. Já na China, por exemplo, é O Amor de Perdição, de Camilo, a novela que melhor acolhimento até hoje teve. Na Roménia, além de Lobo Antunes e de Saramago, de Mário de Carvalho, tendo eu também vários livros traduzidos, um dos maiores êxitos de crítica e de público foi Augusto Abelaira, que, no entanto, nunca penetrou em França, tal como Maria Velho da Costa, que é contudo um dos mais fascinantes escritores do nosso século XX. A explicação pode encontrar-se na sensibilidade, no gosto dos editores, por vezes até na recente americanização das novas colecções dessas editoras. Nos países anglo-saxónicos traduzem-se poucos autores estrangeiros. Para além de Saramago, Lobo Antunes e Mário de Castro, quase não tem havido traduções. É um campo que merece reflexão e onde surgem dificuldades por vezes insuperáveis.
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