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Janus 2005



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Áreas e fronteiras culturais da Europa

Fernando Amorim *

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Não constituindo uma verdadeira expressão geográfica, o espaço europeu é, sobretudo, um facto histórico-cultural feito de percursos idiossincráticos e diversidade cultural constitutiva (Seton-Watson, 1989). Nele tudo predestina ao localismo e à formação de micro-sociedades em que os recursos locais, poucos mas variados, dão a necessária base económica, sustentadas numa proximidade marítima ou fluvial que, estimulando a vida de relação, estabeleceu correntes de civilização e cultura, lugares de permuta e eixos de domínio (Ribeiro, 1998:29). Não possuindo uma identidade-raiz (Moita, 2004) de matriz uniforme, é um continente verbal multifacetado, com uma geografia diversificada das afinidades culturais europeias, caracterizada por línguas nacionais, línguas de contacto e línguas de cultura; por culturas periféricas e diferentes “lugares da memória” (Morin, 1988: 241), não obstante uma convergência em torno de um património comum como o legado filosófico, cultural e jurídico greco-romano ou a tradição monoteísta judaico-cristã e mesmo islâmica.

Um continente de geometria variável

Definir as fronteiras dessas afinidades culturais no espaço e no tempo torna-se, porém, muito difícil. No espaço, o problema reside em que a Europa não é um continente no sentido geográfico. A Leste não possui uma fronteira natural e as que procuraram dar-lhe, os Urais ou o Bósforo, não são muito úteis politicamente, na medida em que não são, nem nunca foram, fronteiras de Estados. Acresce que existe a tendência para se identificar a ela própria, e por vezes aos olhos de outros, com a própria noção de cultura e de civilização, porque, sobretudo a partir dos Descobrimentos (sob a égide dos Portugueses e Espanhóis), a Europa se projectou tanto para fora de si que hoje a sua matriz cultural e civilizacional tende a mundializar-se. O que quer dizer que não é possível adoptar critérios puramente culturais ignorando completamente a geografia porque tal acabaria por diluir a identidade europeia numa realidade muito mais vasta (Mortimer, 1988: 248-250). No tempo, porque tanto pode datar-se do Paleolítico como do aparecimento das cidades no continente (Atenas, Esparta, Roma, etc.) nos primeiros séculos do último milénio a.C.; ou da civilização minóica, com base em Creta e no Egeu, como da civilização micénica, que lhe sucede; tanto da “raiz grega” como do “tronco romano”; tanto da Idade Média ocidental, como do séc. XVI. Dos Gregos derivam a literatura, a arte, a filosofia, a ciência e mesmo a teologia europeias. Dos Romanos a assimilação e organização do legado helénico e a determinação das linhas geográficas e históricas da cultura europeia, primeiro, ao longo de um eixo horizontal sobre o Mediterrâneo, depois, em torno de dois eixos verticais. Roma-Reno; Bizâncio (2.ª Roma)-Moscovo (3.ª Roma).

Desses três eixos, o eixo Roma-Reno é o que melhor organiza a cultura europeia definindo-lhe as áreas, articulando-lhe as estruturas, procurando a simbiose ente o Sul e o Norte, a antiga romanidade e a antiga barbárie, polarizando os movimentos gerados à periferia pelos descobrimentos portugueses e espanhóis e por outras grandes culturas fronteiriças, como a árabe, responsável pela revelação à Europa do séc. XII dos mundos da ciência e da cultura antiga. Remontando à conquista da Gália por Júlio César (57-49 a.C.), é esse eixo centrípeto o que melhor traduz, no espaço, a unidade na diversidade, essa característica maior do espírito europeu e, aquando da transferência por Constantino da capital do império para Bizâncio (330), geradora do 3.º eixo cultural, Bizâncio-Roma, o que aguentará e sobreviverá às vagas sucessivas de invasões bárbaras, num processo que podemos designar de evasãovertical.

Para além da dificuldade em traçar as grandes coordenadas espácio-temporais, igualmente complexo se afigura caracterizar os seus conteúdos, as suas correntes maiores ou identificar um padrão de inteligibilidade. Organizar as manifestações culturais (religião, teologia, filosofia, arte, ciência) de quase três milénios, estendidos por uma área tão vasta que engloba povos tão variados na proveniência e nos caldeamentos é tarefa complexa e difícil, como o é fixá-las na sua sincronia ou na diacronia ou destrinçar o que é comum ao continente do que é particular a determinada área ou região cultural. Estamos diante de um fenómeno extremamente vasto e único, porquanto em nenhuma parte do mundo outro corpo histórico terá produzido expressões culturais tão plurifacetadas e tão idiossincráticas na sua fisionomia (Weber, 1967: 321), pelo que só é possível tentar uma abordagem sumária estrutural e genética.

 

Cartografia das afinidades culturais europeias

Uma aproximação ao tema a partir da teoria das nações-piloto e dos grandes centros de gravidade sucessivos – a Irlanda (séc. VIII), a França (sécs. XII-XIII), a Itália (sécs. XIV-XV), Portugal e Espanha (sécs. XV-XVI), de novo a França (séc. XVII), a Inglaterra (séc. XVIII), a Alemanha (séc. XIX), revela-se excessivamente redutora por esquecer factores estruturais e minimizar a convivência e a simbiose de três premissas maiores da Europa geocultural. Com efeito, estruturalmente, a cultura europeia revela-se-nos como uma série de camadas cuja espessura e densidade nos são dadas, pelo seu grau de helenização, romanização e cristianização, enquanto diferentes níveis de aprofundamento do legado grego. Por sua vez, identificamos geneticamente na cultura europeia uma série de períodos (da Antiguidade Clássica, passando pelas idades Média e Moderna até à Contemporaneidade) em que se podem distinguir três momentos – de formação, de consolidação centrípeta e de decadência centrífuga.

O primeiro caracteriza-se pela busca de uma ordem e um espaço de organização a todos os níveis (sociais e culturais), pela gestação de ideias e de formas, de estilos e de instituições; o segundo define-se pela grandeza, equilíbrio, harmonia e proporção dos elementos anteriormente gerados; o terceiro assiste a uma dispersão, desnaturalização, contaminação, simbiose, metamorfose e transplantação desses elementos que se perdem ou se refinam ou agregam a si novos elementos. Graças ao individualismo, ao cosmopolitismo, ao cientificismo ou ao misticismo e sincretismo religiosos observados neste vasto espaço, sob a premissa maior (mas não única) do cristianismo, como religião matricial (Koenig, 1988: 187), realizou-se a união de velhos elementos romano-mediterrânicos com elementos nórdicos (célticos, germânicos, normandos) e com elementos fronteiriços, árabes sobretudo, construindo-se um património comum – sustentado nolatim como língua da liturgia, da teologia,da filosofia, da ciência e ainda, da literatura– transversal a áreas linguísticas e religiosasdistintas, que se revelará, particularmente aolongo dos eixos mediterrânico e ocidentalda cultura europeia, na emergência deconsciências nacionais e individualistas (donós e do outro civilizacional), no despertarda atitude laica, na descoberta de novosmundos ao Mundo, na ampliação dos continentesda inteligência pelo “Humanismo”,mas, também, nas “crises da consciênciaeuropeia”.

 

Mito e mística da identidade cultural europeia

A ideia de uma Europa cultural, de uma identidade cultural europeia, constitui um velho sonho, mas um mito que se confronta com a complexidade de uma noção de identidade, com a polissemia da noção de cultura e com a multiplicidade, fluidez e diversidade da própria noção de Europa (Morin, 1988: 241), e que não impediu a eclosão de profundas crises europeias. Durante o século XIX a unidade cultural da Europa progrediu, mas também a sua negação. A rica diversidade de grupos nacionais conduziu à emergência de ódios nacionalistas. A sua mística estilhaçou-se em dois grandes conflitos mundiais com epicentro europeu, nos campos de concentração e da Shoah.

As ideologias separaram o que as ideias haviam unido e as fronteiras da imaginação e do conhecimento foram suplantadas por outras bem reais, políticas, militares e económicas. Só então, lentamente, se tentou a sua reconstrução, começando pelo que parecia mais fácil, numa época (anos 50 do séc. XX) em que a ideia do progresso material era a preocupação dominante, com uma Comunidade Económica Europeia de que resultou uma União Europeia de construção política (a 25 Estados) que repousa, como no passado, numa forte base continental olhada com cepticismo ou suspeita por Estados-Nação de tradição talassocrática (dos Gregos aos Ingleses, passando por Portugueses e Holandeses), e que persiste como realidade aquém de um espaço cultural europeu constituído, desde sempre, por uma multitude de relações bilaterais sustentadas em políticas nacionais. Isto é, a identidade-raiz europeia confunde-se com uma identidade cultural que permanece inseparável das identidades políticas que se foram consolidando nos últimos dois séculos da história deste espaço europeu (Picht, 1988: 339-340).

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Das identidades políticas à identidade – projecto

Neste contexto, podemos falar hoje de quatro grandes regiões europeias (Mezei, 2000: 24): uma “Euro-Atlântica” (EA); outra “Euro-Continental” (ECON); outra ainda “Euro-Católica” (ECAT) e finalmente outra “Euro-Ortodoxa” (EO). A primeira (EA) engloba países da Europa Ocidental, fronteiros entre si pelo estreito relacionamento histórico-cultural, a saber, França, Espanha, Portugal, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Reino Unido e países escandinavos. De notar que Portugal e Espanha, sendo países maioritariamente católicos, estão hoje longe dos estados católicos tradicionais e mais próximos, culturalmente, da França e do eixo anglo-americano. A segunda (ECON) cobre a área Norte da Europa continental, da Alemanha (apesar de vir reforçando a sua integração na primeira região e a Baviera ser, religiosa e culturalmente, católica) à Polónia e Estados Bálticos, nela se integrando, também, a Bielorrússia e a Suíça. A terceira (ECAT) inclui a Áustria, a República Checa, a Itália, a Hungria, Croácia, Eslovénia e Eslováquia. Histórica e culturalmente unida, assenta numa cultura latina de tradição católica romana. É inquestionável o estreito laço cultural entre Checos, Bávaros, Húngaros ou Croatas. A última (EO) inclui a Rússia, Bielorrússia, Ucrânia, Roménia, Bulgária, Sérvia e Grécia, e é delimitada pela presença de tradições culturais com origem na igreja ortodoxa grega. Contudo, este esquema de divisão, reconhecendo a inquestionável unidade dos países ortodoxos, escamoteia a importância de minorias muçulmanas na Bulgária, Sérvia e Bósnia-Herzegovina, e a função de ponte euro-asiática de uma Turquia, cultural e religiosamente muçulmana, mas politicamente euro-atlântica, como contraponto a uma Grécia euro-ortodoxa.

Não obstante a diversidade das identidades políticas, federadas contudo numa identidade-raiz enquanto património histórico-cultural comum, a Europa parece estar em condições históricas de ambicionar uma identidade-projecto que visa o futuro (Moita, 2004 ), desta feita construída em torno, não de antagonismos ou hegemonias nacionais ou de fantasmas recuperados (ver texto de Informação Complementar), mas da afirmação de objectivos e valores comuns partilhados, coincidentes com a aceitação e os interesses reais das comunidades humanas deste espaço, como sejam, direitos, liberdades e garantias democráticas e de cidadania; coesão social, segurança comum, cooperação e solidariedade internacional; inovação científica e tecnológica e equilíbrio ambiental, de que o Tratado constitucional da União poderá ser a expressão mais elevada.

 

Informação Complementar

A EUROPA DAS REGIÕES E O FANTASMA DO PANGERMANISMO

Sobre os escombros de duas guerras mundiais, quinta essência de uma loucura suicidária e fratricida que varreu o velho continente, a reconstrução europeia iniciada por políticos como Schuman, Gasperi ou Adenauer, empenhados na criação de uma entidade política europeia, conduziu à fundação do Conselho da Europa (1949), ao lançamento do Tratado de Roma (1957) e à criação de numerosos institutos europeus como o CPLRE (Congresso dos Poderes Locais e Regionais da Europa, 1994) ou a ARFE (Associação das Regiões Fronteiriças Europeias, 1971), dotando o continente de uma armadura político-institucional, verdadeira antecâmara de uma Europa política dotada de constituição.

Se considerarmos cinco documentos-chave, de inspiração alemã, que orientam a Construção europeia – a Carta das Línguas Regionais ou Minoritárias (1988), que fomenta o emprego de línguas regionais em todos os domínios, a Convenção-quadro para a Protecção das Minorias Nacionais (1995), favorecendo a promoção de todas as suas características próprias, as cartas da Autonomia Local (1981) e da Autonomia Regional (1997) e a Convenção-quadro sobre a Cooperação Transfronteiriça (1980 e 1995), propondo a transformação das fronteiras dos Estados em fronteiras administrativas, a Europa em preparação tenderá a ser um Estado federal de regiões culturais, que, buscando a implosão dos Estados-Nação numa entidade política supra-nacional, aparenta favorecer um parcelamento étnico da Europa. O que, aos olhos de uma França tradicionalmente hegemónica, segundo Hillard (2002), acorda velhos fantasmas de pangermanismo (v.g. a “Carta da Europa das regiões” das Waffen SS) de um poderoso bloco cultural de 90 milhões de germanófonos (Alemanha, Áustria e cantões alemães da Suíça), reforçado pelo reconhecimento pela ONU (1997) do direito dos refugiados alemães (Sudetas, Silesianos, Pomeranos) a retornar à Heimat (terra-mãe), face a uma apreensiva Europa Ocidental e Oriental, verdadeiro mosaico linguístico e étnico.

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* Fernando Amorim

Mestre em História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Docente e Investigador do Observatório de Relações Exteriores da UAL. Editor do Janus.

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Bibliografia

SETON-WATSON, Hugh
(1989) – “What is Europe? Where is Europe? From Mystique to Politique”. In SCHOPFLIN, George; WOOD, Nancy Eds. – In Search of Central Europe. Totowa, New Jersey: Barnes and Noble Books.

RIBEIRO, Orlando (1998) – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico: esboço de relações geográficas. 7.ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa.

MOITA, Luís (2004) – A identidade europeia e a Constituição”. In Espaço Europeu de Informação eComunicação. Lisboa: Universidade Autónoma. 23 de Março de 2004.

MORTIMER, Edward (1988) – “Sur quels critères peut-on décider qu’un pays est européen?”. In Europe Sans Rivage;De l’identité culturelle européenne. Paris: Éditions Albin Michel S.A. ISBN 2-226-03402-1.

WEBER, Alfred (1967) – História sociológica da cultura. Trad. Maria Eduarda Costa da Fonseca e Maria Manuela Duarte Sequeira. Lisboa: Arcádia. 1967. Tít. orig.: Kulturgeschichteals Kultursoziologie.

KOENIG, Cardeal (1988) – “L’héritage chrétien, ferment d’unité dans l’Europe divisée”. In Europe Sans Rivage;De l’identité culturelle européenne. Paris: Éditions Albin Michel S.A. ISBN 2-226-03402-1.

MORIN, Edgar (1988) – “De la difficulté de définir une “identité” culturelle européenne”. In Europe Sans Rivage;De l’identité culturelle européenne. Paris: Éditions Albin Michel S.A. ISBN 2-226-03402-1.

PICHT, Robert (1988) – “Conclusions”. In Europe Sans Rivage; De l’identité culturelle européenne. Paris: Éditions Albin Michel S.A. ISBN 2-226-03402-1.

MEZEI, Balázs M. (2000) – The Enlargement of NATO: Cultural Lessons and Philosophical Perspectives: An Essay in Geocultural Philosophy. Budapest: Eötvös Loránd University of Budapest, Institute of Philosophy.

EMERSON, Michael (1998) – Redrawing the Map of Europe. Basingstoke: Macmillan Press. ISBN 0-333-734-475-5.

HILLARD, Pierre (2002) – Minorités et régionalismes: Enquête sur le plan allemand qui va bouleverser l’Europe. Paris: Editions François-Xavier de Guibert.

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