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A Europa no século XX: bosquejo de “cartografia” intelectual (II)

Pedro Alves *

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Como vimos na introdução antecedente, as grandes coordenadas da matriz intelectual europeia giram em torno de três ideais, o da Verdade, o da Justiça e o da Felicidade. Podemos agora explorar cada uma destas vertentes.

 

Primeiro: da ciência, ou do ideal da Verdade

A racionalidade moderna foi, no seu fundo, determinista e mecânica. Ela emergiu na obra de Galileu e teve o seu momento de maturação em Newton. Subjacente a ela estava uma rígida partição entre os fenómenos físicos e mentais e a redução do universo material aos conceitos de massa, força e comunicação de movimento num espaço e num tempo absolutos (se bem que a questão do espaço e do tempo absolutos tivesse conhecido os seus críticos ferozes, como, por exemplo, Leibniz e posteriormente Mach). Esta visão mecânica do universo material, sobre a qual assentou todo o progresso da física moderna e das demais ciências naturais, fora brilhantemente fundamentada por Descartes, no século XVII, com a sua “distinção real” entre substância extensa e substância pensante.

O século XX vê emergir, por fim, uma outra figura da racionalidade, apta a fornecer uma inteligibilidade para os fenómenos humanos. Ela tem já os seus antecedentes remotos a partir do século XVIII, com o surgimento de um interesse consistente em torno dos temas da raça, dos tipos antropológicos e da linguagem (com Forster, Meiners, Herder, Humboldt e o próprio Kant), mas os seus antecedentes imediatos são, no século XIX, a constituição da “escola histórica alemã”, de Ranke e Droysen, e o projecto de uma hermenêutica universal, de Schleiermacher. A ideia de força é a da riqueza de manifestações do humano e a construção de um outro padrão de inteligibilidade alicerçado não sobre a ciência físico-matemática da natureza, mas sobre a consciência histórica.

A plena percepção de uma diferença na metodologia e nas formas da racionalidade das ciências humanas emerge com as obras de Max Weber (1864-1920) e de Wilhelm Dilthey (1833-1911). A tese de fundo de Weber, fundador da moderna sociologia, é que os fenómenos económicos e sociais não podem ser indutiva e descritivamente compreendidos. A regularidade em que se inscrevem não é a de uma lei, à semelhança das ciências da natureza; porque se lida com comportamentos humanos, estes devem antes ser compreendidos no horizonte de tipos-ideais, que se estribam nos fenómenos estudados, mas não correspondem a nenhum em particular. Dilthey aprofunda, por seu lado, a diferença metodológica entre ciências naturais e humanas a partir da oposição entre explicar (erklären) e compreender (verstehen).

As ciências humanas, doravante definidas como ciências da compreensão, não têm apenas um objecto distinto, mas sobretudo uma forma radicalmente diversa de inteligibilidade; o seu organon não é a lógica indutiva ou dedutiva, mas a hermenêutica. O debate entre “explicação” e “compreensão” haveria de atravessar todo o século XX e conheceria no estruturalismo de Lévi-Strauss um momento decisivo de reavaliação. Nele se joga a autonomia metodológica das ciências do homem. O século XX é, por outro lado, o século filosófico por excelência. A grande tradição da filosofia na Europa continua a desempenhar o seu papel de configuração da racionalidade e de abertura de horizontes. Para lá dos vários “retornos”, por exemplo, a Kant ou a Hegel, que marcaram a actualidade filosófica, duas correntes originais de pensamento determinaram a reflexão filosófica no século XX. Uma delas, instauradora de um paradigma descritivo-reflexivo, é a fenomenologia. O seu fundador foi Edmund Husserl (1859-1937).

Nascida de um projecto de fundamentação da lógica pura por retorno aos actos de consciência em que as objectividades lógicas são dadas, a fenomenologia haveria de se estender à totalidade das áreas e disciplinas tradicionais da Filosofia. Os seus temas directores são o da intencionalidade da consciência e o projecto de fundamentação da ciência a partir de um retorno à certeza cartesiana do “eu penso”. A fenomenologia depressa se transformou num rio de múltiplos canais progredindo em direcções diversas e em constante debate sobre os seus próprios fundamentos. Personalidades tão díspares do ponto de vista teórico como Max Scheler, Martin Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty ou Levinas, para só citar os maiores, pertencem todas elas ao largo espectro da filosofia de inspiração fenomenológica.

Paralelamente, uma outra figura da racionalidade, de cariz lógico-argumentativo, haveria de surgir a partir dos trabalhos do matemático e filósofo Gotlob Frege (1848-1925). Frege e Husserl trabalhavam no mesmo programa teórico e chegaram independentemente a posições muito próximas. No entanto, as tradições fenomenológica e analítica não pararam de divergir durante todo o século XX e de constituírem mesmo duas correntes de pensamento quase incomunicáveis. A ideia comum de que tal divergência se deve ao facto de a tradição de Frege se ter continuado principalmente em Inglaterra, e depois nos Estados Unidos (enquanto a fenomenologia seria uma corrente “continental”), não é, porém, inteiramente exacta. Isso é válido para Moore e Russell, mas já não o é para Wittgenstein, Carnap, Schlick e tantos outros.

O corte entre as duas tradições tem o seu momento simbólico no artigo de Carnap “Überwindung der Metaphysikdurch logische Analyse der Sprache”, dirigido contra a orientação “metafísica” da fenomenologia de Heidegger. De facto, a separação das duas escolas, as únicas originais e vivas durante todo o século XX, constitui-se como um verdadeiro choque das formas da racionalidade e do questionário filosófico – enquanto a fenomenologia estava evoluindo, com Heidegger e outros, no sentido da recuperação da metafísica e dos seus temas, a racionalidade analítica caminhava no sentido de uma circunscrição do questionário filosófico à positividade do que é dizível numa linguagem logicamente bem formada (“Sobre aquilo de que não se pode falar devemos calar-nos” – tal é a célebre proposição com que Wittgenstein fecha o seu Tractatus). A sua experiência do carácter estruturante da linguagem conduziu-a ao bem conhecido linguistic turn. Este é, contudo, quer ela queira quer não, ainda uma forma “semântica” de idealismo.

 

Da física à “naturalização” da vida e da mente

As mutações mais profundas viriam, porém, do sector onde menos eram esperadas: das ciências naturais e, em particular, da física. De facto, dois movimentos tensionais atravessam o desenvolvimento das ciências naturais no século XX. De um lado, uma das forças mais estuantes do progresso da ciência natural está apontada à naturalização da vida e da mente, ou seja, a uma compreensão da vida e da inteligência como fenómenos inteiramente naturais, o mesmo é dizer, como fenómenos inteiramente explicáveis no horizonte estrito das leis físicas e químicas.

É preciso ponderar bem a força desta tendência. O século XVIII havia ainda comungado na ideia de que o fenómeno da vida só seria explicável a partir de uma organização finalística. Kant defendera, na segunda parte da sua Kritik der Urteilskraft, que a vida só era pensável a partir de uma reflexão teleológica. O vitalismo concentrara-se na tese de que os seres vivos possuiriam uma força interna não-física que lhes daria justamente a propriedade da vida. A ideia de uma irredutibilidade da vida à estrutura físico-material do mundo corpóreo é, aliás, uma opinião tão antiga quanto a teoria da “alma” de Aristóteles. Ela foi um dos lugares por excelência de cruzamento entre ciência e concepções teológicas. Com a sua ideia dos animais-máquinas, Descartes foi uma das grandes excepções. Mas a sua compreensão limitada das leis da física como leis mecânicas não lhe poderia fornecer um suporte teórico suficiente para uma efectiva explicação natural do fenómeno da vida.

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Se há revolução maior no século XX, ela reside justamente no facto de este programa naturalista se ter tornado por fim possível: a teoria da evolução e a genética, de que Darwin, Mendel, Oparin, Watson e Crick foram alguns dos esteios maiores, culminou no mapeamento do genoma humano, um feito inimaginável ainda há um século e que nos devolve, a nós, homens, a auto-imagem de dominadores finais de um dos arcanos mais fundos do universo.

Uma outra revolução – não menor na ousadia teórica e não menos importante no seu significado simbólico – está-se operando sob os nossos olhos. Mais radicalmente ainda que a vida, a inteligência ou o pensamento foram vistos como um domínio que não é já da ordem do corpo e da realidade estritamente físico natural. Tal como para a vida, as afirmações de materialistas como Cabanis a respeito da identidade do cérebro e do pensamento permaneceram inanes do ponto de vista teórico. Elas eram mais teses metafísicas do que programas científicos de investigação. O século XX vê nascer, por fim, um programa consistente de explicação naturalística do pensamento.

A partir da obra pioneira do matemático Alain Turing (cujo artigo premonitório, ComputingMachinery and Intelligence, abria com a pergunta “Can machines think?”) e da criação dos computadores a partir dos trabalhos de von Newman, o projecto da Inteligência Artificial põe-nos diante da hipótese extraordinária não de uma simples simulação da inteligência, mas de uma construção artificial da inteligência ou de verdadeiras mentes que pensam. Esta revolução está longe de ser tão consistente e segura quanto a compreensão naturalística da vida. Mas, apesar de críticos como Searle ou Dreyfus, ela parece ser capaz de destronar definitivamente uma das ideias que, desde o roubo do fogo divino no mito de Prometeu, organizaram toda a nossa visão do mundo – a da origem não natural da inteligência ou pensamento.

A naturalização da inteligência e da vida são uma das forças mais estuantes do progresso científico no século XX. Simultaneamente, porém, o desenvolvimento da física conduziu a uma renovada perplexidade em torno da própria Natureza. Os conceitos directores da compreensão clássica dos fenómenos naturais, de Galileu a Newton, e as próprias barreiras entre o mental e o físico, tão rigorosamente traçadas desde Descartes, estão sendo, senão subvertidos, pelo menos seriamente abalados. No momento em que os programas de naturalização da vida e da mente parecem triunfar absolutamente, é de novo o significado da própria Natureza que, no horizonte da física contemporânea, se levanta como enigma maior.

Efectivamente, a acção conjugada da relatividade e da física quântica subverteram totalmente a representação clássica do universo. Desde a ideia de um espaço e de um tempo universais e absolutos até ao princípio de que na natureza tudo está determinado, ou à ideia de um universo estático e da separação estrita entre o mental e o material, a física contemporânea fez cair um a um os princípios modernos da compreensão do universo material. Não pode ser aqui o lugar de apresentação dessa revolução decisiva, que tem em Einstein, Heisenberg, Schrödinger, Niels Bohr e Max Born algumas das suas figuras maiores.

Mas interessa sublinhar que a física hodierna nos põe diante de objectos paradoxais, ao mesmo tempo exigidos pelas suas leis e inexplicáveis no seu horizonte. Os buracos negros e as singularidades no seu interior, os primeiros instantes de vida do universo segundo a teoria do big bang, a ideia de uma unificação das quatro forças fundamentais (a gravitação, a electromagnética, as forças fraca e forte) – tudo isso são, ao mesmo tempo, resultados incontornáveis da física contemporânea e objectos-limite, que ultrapassam os seus poderes explicativos e exigem a edificação de uma nova física.

A física pôs-nos, assim, outra vez perante o grande espanto da Natureza. Estamos decerto mergulhados na perplexidade, mas numa perplexidade promissora. Tal como para os gregos antigos, a physis é o lugar de um confronto entre o homem e a grandeza do universo num trabalho de Sísifo para o compreender racionalmente, mais além da segurança do mito ou de qualquer verdade revelada. É neste confronto racional com o enigma da Natureza que se mostra uma das dimensões maiores do homem “europeu”. A partir dele, todas as grandes perguntas, mesmo as mais ingénuas, mesmo aquelas que sempre despertaram ressonâncias teológicas, são perguntas de novo possíveis – Que havia “antes” do universo e qual a sua “origem”? Como se operou a separação da matéria e da energia? Como surgiu a vida e como, a partir dela, o pensamento e a consciência? E que é, afinal, o homem, esse ser inquieto e inquietante que é o lugar de todas estas questões?

 

Segundo: da política, ou do ideal da Justiça

A cidade (civitas, polis) é o reino dos homens. No plano ideal, três recusas a constituem. Primeira: a de um poder que se justifique num putativo direito exterior ou anterior à própria cidade. Essa é a recusa da organização teológico-política. Segunda: a de um governo dos homens que se alicerce na dominação e não no consentimento. Essa é a recusa do despotismo. Terceira: a de uma ordem desigual no seio da comunidade política, em que o benefício de alguns se volva em prejuízo de todos. Essa é a recusa do privilégio. No sinuoso percurso da história europeia, estas três recusas foram encontrando, cada uma delas, a sua, muitas vezes bem precária, formulação positiva – a soberania popular, a democraciarepresentativa (com a divisão de poderes), o império da lei, e a lei como consagração de direitos cívicos e sociais. No seu conjunto, elas são a resposta à exigência basilar de Justiça. Grócio, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, Kant – eis algumas das figuras decisivas deste processo.

Na Europa, a primeira metade do século XX é um período em que as exigências mais fundas da comunidade política são jogadas contra as formas positivas em que a modernidade tentou objectivá-las. Momento de crise, portanto. Em particular, a ferida aberta pelo marxismo está toda ela na decisão de estabelecer uma oposição entre a exigência de realização dos direitos sociais e a realidade dos direitos cívicos conquistados na modernidade. Tais direitos cívicos, que o Estado consagra e suporta, serão doravante denunciados como puramente “formais” e inaptos para satisfazer a reivindicação de Justiça. Eles serão próprios do modo capitalista de produção, em que a representação abstracta do cidadão como livre e igual vai a par com uma efectiva dominação e exploração no plano mais profundo da vida social.

A exigência de Justiça entra, pois, em força no século XX na sua versão marxista: as forças sociais ao assalto do Estado (simples “superestrutura jurídico-política”). Ela apela não à reforma, mas sim à revolução. Para lá do Kommunistisches Manifest, de 1848, depressa traduzido numa miríade de línguas, dois livros maiores a suportam: Das Kapital, do próprio Marx, no qual se determina a morte do modo de produção capitalista pelas próprias leis internas da sua evolução, e The Condition of theWorking Class in England, de Friedrich Engels, um relato impressionante de uma sociedade onde coabitam opulência e miséria, onde a miséria de muitos é a própria condição da opulência de poucos. Trata-se de uma denúncia vívida e feroz. Ela povoará o imaginário de gerações de militantes e legitimará o comunismo por esta pulsão basilar de Justiça, independentemente da sua justificação teórica pelas “inevitabilidades” da economia política ou pela visão “materialista” da história.

Estribado nesta exigência de Justiça, o marxismo haveria de estar vivo por todo o século XX, nas suas várias versões e correntes, quer alimentando-se de um milenarismo utópico puramente negativo (que hoje se continua, metamorfoseado, nos movimentos “alternativos”), quer das suas realizações concretas, primeiro na URSS, depois na China e na Europa de Leste. Do imenso trabalho teórico, quase sempre suportado por uma efectiva “prática revolucionária”, que o marxismo produziu ao longo do século, alguns nomes são de reter: Kautsky, Lenin, Trotsky, Lukács, Fromm, Mandel, Althusser. Faltam, porém, outras abordagens do pensamento político, que veremos de seguida.

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* Pedro Alves

Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Vice-Presidente da Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica.

 

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