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A violência ao serviço do poder de Estado em Clausewitz Um dos pensadores que mais contribuiu para a legitimação da guerra como instrumento adequado a uma política racional foi, indubitavelmente, Carl von Clausewitz, através da sua obra, cedo tornada em clássico do pensamento, “Da Guerra” (Vom Kriege). As principais teses de Clausewitz – que pode ser considerado como o pensador por excelência da Era de Westfália – podem ser enunciadas, crítica e sinteticamente, do seguinte modo: • O Estado nacional como sujeito organizador, princípio e alvo da acção político-militar: trata-se de um Estado concebido como organismo. Ao contrário das analogias físico-mecanistas de alguma filosofia política do século XVII, o Estado clausewitziano comporta-se como um ente biológico, uma criatura viva, possuidora de uma alma, onde se aglutinam as condições psíquicas e morais da vida dos povos (Clausewitz: 680). O Estado tem, ainda, uma vida histórica que pode ser traduzida como o processo da sua identificação com a Nação (Clausewitz: 648). • A essência da guerra pertence ao domínio da política: na condução da violência bélica o primado dos fins políticos deve sobrepor-se às considerações de âmbito estritamente militar (Clausewitz: 677-678). A única autonomia tolerável do elemento militar situa-se na estreita esfera dos detalhes (Clausewitz: 676), no plano “gramatical”, mas não no horizonte lógico que o subordina (“Ela [guerra] tem, semdúvida, a sua própria gramática, masnão a sua própria lógica” [Er hat freilichseine eigene Grammatik, aber nicht seineeigene Logik ], Clausewitz: 675). Só o ponto de vista político permite a visão integrada e de conjunto que a estratégia exige. Poderíamos ir mais longe, afirmando que, para Clausewitz, leitor de Hegel, a política ganha supremacia sobre as considerações particulares e técnicas de foro estritamente militar, porque só na política se realiza o momento sintético da totalidade (Schramm: 1977, 19). • A guerra implica uma gestão gradual da violência teleologicamente orientada pelo objectivo de uma “decisão pelas armas” (Waffenentscheidung): Clausewitz não considera que a natureza da guerra se avalie pela quantidade de danos e sofrimentos causados aos beligerantes. A natureza da guerra define-se pelo objectivo de impor a vontade política de um Estado a outro. Todavia, ao contrário de Sun Tzu, Clausewitz não se demora em demasiado na consideração da guerra mínima, que consistiria na eficácia da simples ameaça do uso da força, em alternativa ao uso da força propriamente dito (seria preciso subir todo o calvário armamentista até à estação nuclear para o bluff e a dissuasão voltarem a ter significado). A partir de um determinado momento, a vontade de um Estado só pode ser vergada se forem destruídas as suas forças armadas (Clausewitz: 640). É por aqui, por este imperativo combativo, que o próprio desenvolvimento das armas de fogo torna inevitável, que entra a razão calculista da acção recíproca, dos contrapesos, da combinação de forças, da organização da escalada e da retaliação. E os cálculos da razão combatente têm como pressuposto inquestionável uma geografia estratégica baseada num espaço-tempo servindo como coordenadas newtonianas, apenas acessíveis pela lenta mobilização de recursos humanos e materiais finitos postos gradualmente ao serviço das operações bélicas.
A violência como ameaça ao poder: racionalidade estratégica e armas nucleares Em Clausewitz, um dos elementos, simultaneamente mais implícitos e essenciais, é aquilo que poderemos designar como “o carácter discursivo e finito dos recursos envolvidos nas acções bélicas: entre a decisão de fazer a guerra e a vitória exigia-se, para a razão clausewitziana, a necessidade de organizar, mediatamente, no espaço e no tempo, uma série de recursos materiais e humanos, da mobilização das tropas ao envolvimento nas operações militares directas. A vitória implicava um jogo dialéctico entre os inimigos, manifestado através da acção recíproca, sangrenta, de forças militares finitas no espaço-tempo newtoniano em que as guerras podiam ser contidas. Ora, aquilo que a introdução de armas de destruição maciça, em especial as armas nucleares, vai produzir no pensamento estratégico no decurso dos quarenta anos decisivos da Guerra-fria (1949-1989) é a destruição da sóbria arquitectura clausewitziana: com uma voracidade crescente, as novas armas vão forçar um “pensamento do impensável”. As armas nucleares conduzem à produção de um novo conceito de racionalidade bélica capaz de conviver com o eclipse do conceito de vitória, exigindo a gestão de forças militares tornadas, pela capacidade de overkill, numa quantidade infinita capaz de implodir a harmonia do espaço-tempo newtoniano. A Guerra Fria conduziu à cooperação compulsiva, mesmo entre as super potências. A desmesura da violência bélica potencial obrigou a lógica do poder a defender-se do predomínio da violência. A détente, primeiro, e a implosão da União Soviética, depois, permitiram evitar a hecatombe, mantendo o primado da lógica do poder sobre a da violência.
A caminho do primado da violência sobre o poder? Erros e omissões na “guerra contra o terrorismo” Desde a queda do Muro de Berlim que milhares de páginas foram escritas sobre o futuro do sistema internacional. As vozes mais sensatas apostavam na capacidade americana para compreender que a sua situação unipolar era, necessariamente, um estado transitório. Os mais optimistas acreditaram na possibilidade de os EUA enveredarem pelo caminho da hegemoniabenévola, associando o prolongar da sua supremacia à produção de serviços vantajosos para a maioria esmagadora dos participantes no sistema internacional (um modelo win-win). Em 1992, o então senador Al Gore deu um claro sinal desse caminho possível quando aconselhou os EUA a desencadearem um Plano Marshall ecológico, para tornar a América no líder mundial do combate à crise ambiental. Em 1998, a poderosa Madeleine Albright, a mais importante mulher do círculo de Clinton, chamava a atenção para a exiguidade da ajuda externa americana ao desenvolvimento, catorze vezes menor do que a praticada no tempo de Truman. A entrada em cena da administração Bush constituiu um balde de água fria nessas expectativas. Em vez de se mostrar sensível aos novos desafios incontornáveis do ambiente, do desenvolvimento, da justiça, da cooperação compulsiva num mundo plural e complexo, Bush rompeu com o Protocolo de Quioto e recusou o Tribunal Penal Internacional. Dois exemplos de como Washington se recusa a assumir a liderança em torno de causas que deveriam ser entendidas como fios condutores da (re) construção de uma ordem internacional, pacífica e sustentável. A nova doutrina nada deve à incontinência verbal de Rumsfeld, antes tem na conselheira presidencial de segurança, Condolezza Rice, a sua voz mais nítida. Em primeiro e último lugar o interesse nacional americano, eis o novo axioma de Washington. Comparados com os textos da senhora Rice, as meditações do astuto Kissinger parecem inspiradas pelo mais desinteressado idealismo. Kissinger sabia que a primeira tarefa de uma superpotência é a de combater a desordem desnecessária no sistema internacional. Mas qual é a sustentabilidade de uma ordem internacional em que o seu protagonista principal faz do egoísmo estratégico de vistas curtas a sua convicção de base dogmática?
Erros e omissões na “guerra contra o terrorismo” Alguns dos primeiros gestos da administração Bush após a tragédia do 11 de Setembro de 2001 apontavam no sentido contrário do que está a suceder. O pagamento de parte das dívidas dos EUA às Nações Unidas parecia sugerir que Washington retirava da prova da sua vulnerabilidade perante ataques terroristas realizados com meios mais do que exíguos a lição da humildade e do reforço do multilateralismo. O ataque ao Afeganistão, como parte da estratégia para atingir Bin Laden e o coração da sua rede terrorista, foi acompanhado com simpatia e compreensão pela comunidade internacional, até porque sugeria uma relação compreensível do tipo instrumento/sujeito entre a violência terrorista e um Estado. Pelo contrário, a campanha contra o Iraque coloca esta perspectiva de prudência e multilateralismo completamente em causa. Ao decidir atacar o Iraque – na base de uma argumentação hoje totalmente desacreditada – ao arrepio de aliados fundamentais e sem o consentimento das Nações Unidas, a Administração Bush parece antes possuída por um inquietante sentimento de desmesura. Na verdade, se os EUA são actualmente a única super potência militar, isso não lhes confere, como já se viu, nenhum estatuto de invulnerabilidade. O PIB dos EUA é, a título de exemplo, inferior ao da União Europeia (se incluirmos a nova dezena de aderentes), e a verdade é que o desmantelamento da União Soviética não retirou à Rússia a capacidade nuclear estratégica. Acresce que os sinais de proliferação nuclear acentuam-se com clareza. Desde o Tratado de Westfáia (1648) até ao começo da “guerra contra o terrorismo” que o poder (traduzido pelas instituições do Estado e/ou da comunidade internacional de Estados) tem sido preponderante na gestão da violência. O poder tem usado a violência como instrumento para os seus fins (modelo clássico de Clausewitz), e foi capaz de dela prescindir quando estava em causa a possibilidade de catástrofe atómica. Desde 1648 que as questões da violência têm sido geridas por um discurso do poder dominante secular e realista. Pelo contrário, as novidades trazidas pela “guerra contra o terrorismo” são inquietantes. O inimigo é deliberadamente mantido numa neblina onde tudo se confunde, a sua caracterização não é política mas moralista e diabolizante. Não são estabelecidas análises nem distinções. Os meios para combater o terrorismo não respeitam nem as convenções do direito internacional público, nem as do próprio direito constitucional da grande potência (umas e outras situadas na esfera do poder). Nas vésperas da invasão do Iraque, figuras ligadas à Administração de Bush propunham, abertamente, o fim das Nações Unidas e a entrada numa era onde a violência seria usada, sem constrangimentos, ao serviço do “interesse nacional” da única super potência. O terceiro tipo de relações entre violência e poder, posto em prática pela actual liderança dos EUA, não promete nada de bom para o sistema internacional. Pelo contrário, ao destruir a perspectiva de moderação que só pode ser introduzida pela legitimidade de um poder legitimado – o que só pode ser traduzido, hoje, no quadro das Nações Unidas – a “guerra contra o terrorismo” ameaça conduzir o sistema internacional para uma entropia generalizada. Em vez de ultrapassarmos a era de Westfália, corremos o risco de recuarmos para aquém dela. Quando o poder é dominado pela violência, a “política torna-se na continuação da guerra por outros meios”, não anunciando outra coisa senão mais sangue e sofrimento inúteis.
Informação Complementar A DESTRUIÇÃO DO MODELO DE CLAUSEWITZ PELAS ARMAS NUCLEARES A volatilização da noção de frente: num universo de forças finitas, que necessitam de tempo para se deslocarem no espaço ao encontro do inimigo, a possibilidade – permitida pela panóplia das armas nucleares – de mobilização praticamente instantânea (o tempo de chegada aos alvos dos mísseis intercontinentais balísticos, lançados de silos terrestres, é no máximo de 30 minutos) de forças destrutivas capazes de arrasarem várias vezes as áreas urbanas e os alvos militares do planeta seria um pesadelo apocalíptico inimaginável ao tempo de Clausewitz. Essa dura realidade, que aliás foi sendo preparada pelo advento da artilharia convencional de longo alcance e pela utilização da aviação para fins militares, obrigou a alterar completamente conceitos clássicos como os de ‘mobilização’, ‘concentração de forças’, edificação de ‘linhas defensivas’, ‘escalada’, etc. A relativização espaço-tempo estratégicos: Na guerra o espaço-tempo é função da capacidade de mobilização de forças, que, de acordo com Clausewitz, devem ser consideradas necessariamente finitas. Por isso podemos afirmar que os acontecimentos militares, no universo clausewitziano, ocorrem dentro, ou estão contidos no espaço-tempo. A ‘frente’, por exemplo, é um ponto de atrito entre forças finitas, contido pelo horizonte mais vasto das coordenadas espacio-temporais da guerra. No novo quadro nuclear, quando qualquer ponto da Terra pode ser várias vezes varrido, quase em simultâneo, pela devastação atómica, então o que ocorre é uma alteração do espaço-tempo estratégico tão radical como, por analogia com a física, o foi a transição do paradigma newtoniano para o paradigma relativista einsteiniano. O relativismo físico introduziu uma leitura pluralista da concepção de espaço-tempo. As leis consideradas absolutas da física newtoniana não foram abolidas – como também não o foi a guerra convencional onde a doutrina de Clausewitz continua a ser válida –, mas foram relativizadas, deixaram de ser válidas em todo o universo para passarem a conviver com outros tipos de fenómenos, ‘singularidades’ que as desafiam, que exigem um outro quadro legal, que se oferece apenas numa representação probabilística da (in)certeza. A simples possibilidade de uma guerra nuclear central significa que, doravante, os estrategistas têm de incluir a categoria de implosão do espaço-tempo estratégico como uma hipótese de trabalho para a realização da qual todos os meios materiais já estão efectivamente reunidos. A implosão significaria que as forças mobilizadas por uma guerra nuclear total já não seriam finitas face ao universo de referência, antes o transbordariam. Numa guerra nuclear total, os acontecimentos bélicos não ocorreriam dentro do espaço-tempo. Pelo contrário, o espaço-tempo clausewitziano seria distorcido, contraído e, finalmente, destruído pelo potencial de caos contido nas quinze ou vinte mil megatoneladas que aguardam pela sua vez nos silos subterrâneos, no ventre dos submarinos, ou no bojo dos bombardeiros estratégicos. O eclipse da categoria de vitória: O culminar da derrocada do mundo clássico de Vom Kriege ocorre com a colocação em causa do centro nevrálgico teleológico da doutrina estratégica, i.e., o conceito reitor de vitória. A paridade nuclear transformou o conceito de vitória num sinónimo absurdo: “destruição mútua assegurada” (mutualassured destruction-MAD). No plano da confrontação central entre as super potências atómicas, o objectivo já não consistia em preparar as condições propícias à vitória no cenário extremo da confrontação aberta e generalizada. Em vez de um plano de guerra vitorioso (a categoria de vitória foi deslocada para os conflitos periféricos convencionais de baixa intensidade) o máximo que as grandes potências do mundo bipolar da Guerra-fria poderiam almejar seria uma dispendiosa simulação da guerra, uma dissuasão convincente (deterrence) que evitasse a eclosão de um conflito de dimensões estritamente escatológicas: equivalente a um fim real da história humana. CLAUSEWITZ, Carl von (1980) – Vom Kriege, Frankfurt am Main: Ullstein. GORE, Al (1992) – Earth in the Balance, Boston: Houghton Mifflin Company. SCHRAMM, Wilhelm von (1977) – Clausewitz: Leben und Werk, Esslingen am Neckar: Bechtle. SOROMENHO-MARQUES, Viriato (2001) -“Reinventar la ciudadanía en la era de la globalización: Esbozo de un programa de investigación”. Revista Internacional deFilosofía Política, Madrid, n.º 17, julio 2001, pp. 77-99. SOROMENHO-MARQUES, Viriato (2002) - “The USA and the EU: Beyond Power and Weakness”. Instituto deEstudos Estratégicos e Internacionais (Novembro-Dezembro de 2002), http://www.ieei.pt/index.php?article=824&visual=5.
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